O conto chama-se Emancipação e pode ser visto como a mais antiga história de escravatura e libertação. É sobre as mitocôndrias. Estes organelos estão dentro das células e produzem energia a partir da glicose, usada pela célula para funcionar. É um tema caro ao cientista.
“No meu centro, somos muito fortes a estudar mitocôndrias”, diz o investigador de 48 anos, numa visita ao seu laboratório de Biologia da Reprodução e Células Estaminais, no Centro para a Neurociência e Biologia Celular da Universidade de Coimbra. A universidade viu passar João Ramalho Santos da licenciatura de Biologia para o doutoramento e finalmente para o centro do qual é hoje presidente.
Hoje, o laboratório vive de duas vertentes, explica-nos, na sua conversa veloz e animada: “Tem a parte de biologia de reprodução mais ligada à parte clínica e tem a parte das células estaminais mais ligada a testes de toxicologia e diferenciação celular. O que une tudo isto é a mitocôndria e o metabolismo.”
Os cientistas pensam que as mitocôndrias tiveram origem, há milhares de milhões de anos, em organismos unicelulares sem núcleo. Um antepassado das mitocôndrias foi engolido por outro organismo unicelular com núcleo e os dois passaram a ter uma relação simbiótica. Há dados que apoiam a teoria: as mitocôndrias têm material genético próprio e dividem-se dentro das células.
Durante a evolução, o material genético da célula terá ganho genes das mitocôndrias, permitindo controlá-las. Hoje, os eucariotas — seres vivos com núcleo nas células como a paramécia, o plasmódio da malária, os fungos, as plantas ou os animais — têm, em geral, muitas mitocôndrias em cada célula.
Mas os verdadeiros limites desta conversa entre o núcleo das células, onde está armazenado o material genético na forma dos cromossomas, e as mitocôndrias, continuam por se definir. “A ciência estudava a transmissão de ADN para ARN para as proteínas”, diz João Ramalho Santos, referindo-se à expressão dos genes, pedaços de ADN inseridos nos cromossomas que comandam a produção de proteínas. Os genes definem tudo no corpo, desde aspectos como a cor dos olhos ou do cabelo, até processos fisiológicos complexos que estão na origem de doenças como a diabetes ou a esquizofrenia.
“Agora sabemos que há a epigenética na regulação [dos genes]”, prossegue o cientista. A epigenética mostra que há substâncias dependentes de mudanças no ambiente que se ligam às proteínas dos cromossomas e aos próprios genes e influenciam a sua actividade.
“Por outro lado, estudávamos as vias metabólicas. Agora, a genética e o metabolismo vão cruzar-se”, diz, apontando para o futuro. “[Isso] não nos deve surpreender, uma célula deve ser capaz de perceber que, quando tem pouco ATP [a molécula que dá energia para as reacções na célula], se calhar não pode expressar tanto determinados genes e tem de os regular epigeneticamente.”
No conto de João Ramalho Santos, as mitocôndrias lembram-se do seu passado, sentem-se escravas das células e revoltam-se. Por isso, abandonam violentamente os humanos. Tanto na ficção como na investigação real do cientista, o desafio está em perceber o metabolismo.
Há alguns exemplos históricos que ajudam. Um deles passa-se no final da II Guerra Mundial, quando parte da Holanda deixou de ser abastecida com alimentos. “Passou-se ali muita fome e houve crianças que nasceram. É expectável que estas crianças possam ter mais problemas por terem nascido num ambiente mais adverso. No entanto, já não é expectável que os filhos dessas crianças tenham problemas”, diz o cientista. “E no entanto têm.” Experiências em ratinhos mostram fenómenos semelhantes.
“Na carência alimentar, o metabolismo [das células] reorganiza-se para fazer mais com menos. Quando a comida volta a ser abundante, o metabolismo demora tempo a ajustar-se. E temos obesidade, diabetes e problemas cardiovasculares”, explica o investigador. “A questão é que se transmite algumas destas predisposições à descendência que não tem culpa.”
Até há pouco tempo, pensava-se que o ambiente não tinha importância na informação genética que passa dos pais para filhos. Sabe-se que as células destinadas a produzir os ovócitos, nos ovários das mulheres, e os espermatozóides, nos testículos dos homens, sofrem uma limpeza epigenética para que o novo embrião possa dar origem a todas as células do corpo. Mas afinal este processo não limpa todas as marcas epigenéticas deixadas pelo ambiente.
A equipa de João Ramalho Santos está a analisar estes efeitos epigenéticos em células estaminais pluripotentes, que têm a capacidade de se diferenciar em células de diferentes tecidos, tal como a célula que resulta da fusão entre o ovócito e o espermatozóide: “Estamos a estudar como é que se faz a regulação desses mecanismos epigenéticos nas células estaminais que fazem com que a célula deixe de usar uma fonte de energia e passe a usar outra.”
“Estamos a tentar ver se as mesmas marcas epigenéticas estão nas células sexuais. Se soubermos porque é que estas alterações epigenéticas alteram o metabolismo da célula podemos tentar arranjar estratégias para evitar a transmissão dessas características de pais para filhos”, conta João Ramalho Santos. “Até eu me reformar, espero ter algumas respostas.”
Ao mesmo tempo, o cientista está a aplicar o seu trabalho científico na área da reprodução. “Fiz uma ligação com os hospitais da Universidade de Coimbra, com o serviço de reprodução”, diz. “A taxa de sucesso das técnicas de biologia de reprodução assistida anda nos 30%, 40%, a nível mundial. E ninguém sabe muito bem porquê.”
Há muitas causas para este insucesso, como a qualidade dos gâmetas, o stress ou factores hormonais. A equipa conta com psicólogos, mas o investigador quer melhorar a técnica: “Estamos a testar métodos de selecção de espermatozóides e de cultura dos embriões para passar a barreira dos 50%.”
A par e passo da sua carreira científica, a paixão pela banda desenhada (o cientista é um dos donos da livraria de BD Dr. Kartoon, em Coimbra) continua a dar frutos. João Ramalho Santos fez o argumento da banda desenhada Uma Aventura Estaminal, com desenhos de André Caetano, publicada no final de 2013.
A história conta o que são as células estaminais e fez parte do projecto de divulgação científica sobre o tema. Pensada para um público juvenil, a dificuldade foi “tentar fazer uma mensagem simples sem ser simplista”. Mas o resultado foi positivo. André Caetano recebeu prémios pelo seu trabalho artístico e colegas cientistas já pediram a João Ramalho Santos uma versão da BD em inglês.
O projecto contava ainda com textos mais aprofundados para os adultos, incluídos no livro, e vídeos sobre as células estaminais. Mas um estudo sobre o impacto dos vários materiais agradou a João Ramalho Santos: “Chegámos à conclusão de que as pessoas aprenderam. E que aprenderam sobretudo com a banda desenhada.”
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