São Jorge: O Pico sem chapéu e as mulheres de Ribeira do Nabo

Há um letreiro a avisar: “Cuidado com o cão”. Conseguimos vê-lo, preto, gordo, solta uns latidos possantes. Mas são os dois gatos imóveis em frente a uma porta que mais nos intimidam. Um é preto, outro malhado. Não se mexem, repetimos, mas têm um olhar ameaçador. Contrastam com a vaca charolesa de olhos doces que passa em cima de um atrelado puxado por uma furgoneta vermelha.

Estamos na Ribeira do Nabo, freguesia da Urzelina. O frio corta com força,  o Pico está mesmo à nossa frente, tapado por um capacete de nuvens. Já aprendemos que se o Pico “tiver chapéu”, isso quer dizer “chuva na certa”. Miramo-lo e achamos que sim, que tem chapéu,  mas isto é porque somos jorgenses de primeira viagem. “Então onde é que está o chapéu?”, pergunta, quase a zombar, Elisabete Alves, a nossa guia na ilha. “Agora só se vêem as nuvens.” Estamos conversados.

Voltemos, então, à Ribeira do Nabo. Do outro lado da rua, está o senhor Artur, muito mais que 70 anos vergados numa bengala, na sua caminhada diária. De resto, tudo é quieto neste lugar onde viverão entre “300 a 400 pessoas”, contas “do senhor padre”.  Se assim é, não sabemos onde estão. Excluindo o senhor Artur, que se arrasta, vagaroso, pelas ruas silenciosas, contamos apenas três outras habitantes. Estão todas na Cooperativa de Artesanato Nossa Senhora da Encarnação, a tecer centros de mesa e a desfiar memórias, umas melhores do que as outras.

Florinda Silva é de poucas falas, concentra-se antes nas voltas do tear. Já cá trabalha há mais de 25 anos – a cooperativa nasceu a 12 de Março de 1991 – mas não foi aqui que aprendeu a arte. “Foi com uma senhora do Topo”, explica. Nas paredes à volta, espalham-se as peças que saem das mãos destas mulheres, entre tapetes de ladrilho, colchas, rendas várias, mantas, cachecóis até. Florinda prossegue o trabalho, encostada a um cartaz de gelados Olá, o mar e o Pico a entrarem-lhe pela janela.

Zelina Pereira, 58 anos, é quem mais faz as honras da casa. É das mãos dela que saem os bordados e algumas rendas que aqui se vendem, mas admite que não se ajeita com a renda chilena, típica de São Jorge. É feita “com nós de rede de peixe”, com uma agulha de costura. O som do tear de Florinda Silva na sala ao lado vai ritmando a conversa, como que a dar-lhe um tom mais dramático.

“Há aqui muita coisa que vai acabar, como a renda chilena, por não haver quem a faça”, lamenta-se Zelina. No tear a mesma coisa. “A filha da Adelina também já vai fazendo”, interrompe Avelina Reis. Zelina outra vez: “Nos bordados é que não tenho ninguém. Já fizemos aqui uns cursos com mulheres do centro de emprego, mas depois não quiseram ficar porque não podemos pagar um ordenado. Já cá tivemos 16 pessoas na cooperativa, mas como temos os nossos salários em atraso, foram saindo”. 

Nestas prateleiras onde se mostram cobertores que chegam a custar 500 euros, mochilas a 35 euros, meias de lã natural a 20, estão arrumados os ordenados dos últimos cinco anos destas três mulheres.

Como é que sobrevivem? Zelina encolhe os ombros: “Eu sou viúva, tenho a pensão do meu marido. E vamos vendendo qualquer coisita, mas é mais entre Junho e Setembro. De resto, é pelo amor à camisola.” E também pelo gosto de preservar tradições ancestrais. “Nós ainda tingimos as nossas lãs com ervas naturais: com casca de noz, com casca de cebola. Olhe aqui esta colcha amarela, a lã foi tingida com azedas.”

Não se afigura doce o futuro destas três mulheres – tão-pouco o presente. Florinda continua ao tear. Explica que para fazer “um metro deste tecido” leva oito horas. Os individuais para a mesa que daqui serão cortados hão-de custar 16 euros. “Depois há quem ache caro”, refila Zelina. Seja como for, enquanto tiverem força, elas não vão atirar a toalha ao chão. “Assim Deus nos ajude. Já lhe disse, isto é por amor à camisola.”

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Manuel Roberto