Graciosa: Nas prateleiras desta loja está uma ilha

“Bom dia. Sejam bem-vindos à loja João Tomáz Bettencourt”, brinda-nos à chegada Maria José Quadros, anfitriã e principal impulsionadora desta casa-museu em Guadalupe. Ainda não passámos da ombreira da porta e Maria José, depois de declamar um poema popular sobre a ilha, inicia as apresentações, apontando os dois retratos a preto e branco no hall de entrada. À esquerda, “João Tomáz, o velho, o pai”. À direita, “João Tomáz, o novo, o filho”.

Foi o primeiro quem construiu o edifício onde nos encontramos, “que é único na Graciosa porque tem a particularidade de ser comercial, agrícola e senhorial”. Muito pobre, João Tomáz, o pai, começou por ser vendedor ambulante, percorrendo a ilha num burro com seirão. O pregão: “Vendo agulhas e dedais, mercearias e coisas tais”, recorda Maria José. Quando amealhou dinheiro suficiente, o comerciante ergueu esta casa na estrada principal de Guadalupe e inaugurou, em meados do século XIX, a loja que ocupa o rés-do-chão, durante décadas a mais importante da ilha.

“Todas as pessoas mais antigas com quem contactei têm uma história [ligada a esta loja] porque todas vinham aqui comprar o que precisavam”, conta Maria José. “A noiva vinha comprar tudo para o casamento e as pessoas o que necessitavam para a sua vivência na ilha.” Aqui se vendia um pouco de tudo, dos tecidos às louças, dos produtos de mercearia ao petróleo para os candeeiros. Quando o pai morreu, João Tomáz, o filho, herdou o negócio das louças e dos tecidos, o irmão António ficou com a parte da mercearia, abrindo outro espaço. Mas a loja, e a família, continuou a ser uma das mais importantes da ilha. “Aqui se faziam bailes na falsa, o primeiro filme que se passou foi nesta casa e quando chegou a electricidade no final da década de 1960 foi até aqui”, enumera a nossa anfitriã. Depois, com o desenvolvimento dos transportes e o surgimento de novo comércio em Santa Cruz da Graciosa, a procura foi decaindo e a loja acabaria por encerrar nos anos 1980. Em 2014 reabriu como casa-museu.

Para já, apenas o rés-do-chão é visitável, onde foi recriada uma antiga venda, misto do que seria a antiga loja e uma área museológica com centenas de objectos utilizados no quotidiano dos graciosenses desde o final do século XIX até meados da década de 1980. Grande parte do acervo em exposição foi sendo recolhido junto da população da ilha, ao longo dos últimos 25 anos, por Maria José Quadros.

“Nasci numa família com uma certa idade e isso conta muito porque a gente nunca é criança como os outros. Começamos a ser adultos de pequeninos e o meu pai e a minha mãe falavam-me muito das suas vivências”, recorda. As memórias dos pais, da avó, da madrinha. “Aquilo tudo junto dentro de mim fervia que nem uma panela e em 1991 comecei a fazer recolha de orações e de cantigas.” Primeiro junto dos vizinhos e amigos; em breve pela ilha toda. Primeiro apenas orações, cantigas, lendas, contos; cedo um espólio de objectos e fotografias que nunca mais acabam.

Nas prateleiras, um espelho da história, da cultura e da vivência na ilha, que Maria José vai enumerando e descodificando, chamando a atenção para esta e para aquela peça. Aqui a lanterna do navio Mazini, afundado em 1925 junto ao Calhau Miúdo (os vestígios encontram-se a 33 metros de profundidade e é um dos locais de mergulho na ilha). Ali, os candeeiros dos ricos e dos pobres, as lanternas usadas para ir ao alpendre tratar dos animais.

Muitas das peças são um retrato das dificuldades económicas sentidas na ilha. “Tudo era aproveitado.” Do escamador de peixe feito com caricas das laranjadas ao funil para fazer as linguiças. “Este é feito com os tubos usados nas fábricas na América para coser os sapatos. Mandavam para cá com os restos de linhas e quando acabavam as pessoas aproveitavam o tubo de plástico para fazer os enchidos porque não dava ferrugem.” Mais à frente, uma faca de descascar batatas tem a lâmina usada quase até ao cabo, há muitas canecas remendadas, com a pega desemparelhada. “Partiu-se mas não se deitou fora. Não se podia deitar nada fora”, repete a cada novo objecto. Entre panelas, tigelas de pão e das sopas de leite, dos utensílios da matança do porco e os canados de beber água e vinho, Maria José vai recitando poemas e lendas de memória, há sempre mais para contar. “Isto é a história do povo, aqui se vem, aqui se encontra.”

Casa Museu João Tomáz Bettencourt
Guadalupe – Santa Cruz da Graciosa
Horário: de segunda a sexta das 8h às 12h e das 13h às 16h
Preço: Entrada gratuita

PUB PUB

Comentários

Os comentários a este artigo estão fechados. Saiba porquê.
Nuno Ferreira Santos
Nuno Ferreira Santos
Nuno Ferreira Santos