As pessoas dizem que vivo sempre num nível de ficção científica”, ri-se Miguel Rios. Ao mesmo tempo que o seu gabinete de design faz as fardas para a ANA-Aeroportos de Portugal, também projecta gabardines inteligentes que nos tornam anónimos num tempo pós-apocalíptico. Porque “numa altura em que Portugal e a Grécia estavam em pleno fogo, naquele Verão horrível” de 2003, desenhou o primeiro uniforme inteligente de combate a incêndios florestais.
“Inteligente” parece ser aqui a palavra-chave, mas na verdade a palavra mágica é “sistema”. Nascido em Lisboa em 1965, ainda com os 50 anos por cumprir, Miguel Rios estudou desenho (Ar.Co) e moda (CITEX) e nunca largou as artes plásticas nem o vestuário. Mas no início da década de 1990, sem Internet para todos e com o planeta longe da globalização, esse mundo não lhe chegava. Bolsas da Fundação Gulbenkian e da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento levam-no a estudar na Domus Academy, em Milão. A sua tese de mestrado foca-se num corpo dinâmico, sobre “a libertação das tensões de uma peça de vestuário numa parte do corpo”. Desponta o que viria a marcar o seu trabalho: “Pensar no vestuário como um sistema. Como é que pode ser no futuro”, explica. E sempre “no indivíduo enquanto sistema e a sua relação com os outros”. Com ajuda de tecnologia aplicada à nossa camada protectora, a roupa.
“Em 1993, antecipava um mundo com preocupações muito centradas no indivíduo” e, “se calhar, em muita paz”. Eram tempos diferentes, uma guerra no Golfo, um buraco no ozono, informação a circular calmamente. “Nessa altura, eu queria era antecipar onde poderíamos estar”, explica Miguel Rios, cujo trabalho está na colecção do Museu do Design e da Moda de Lisboa e que entretanto foi professor, Prémio Nacional de Design Sena da Silva (2009) e consultor do extinto Centro Português de Design (CPD). Foi como consultor do CPD que começou a pensar nos materiais têxteis e como protecção e sempre a evoluir. Falamos em “novas potencialidades de protecções microscópicas — a bactéria, o suor, questões hidrófilas...” nos têxteis técnicos, explica-nos — mas falamos também de grupos. Do seu trabalho como consultor e de uma ligação mais convencional com a indústria, passa a pensar conceitos e produtos inovadores como os de nómada urbano ou o blusão de temperatura regulável pelo utilizador Urban Warriors Máxima Segurança (2003, já em parceria com a empresa portuguesa YDreams e com peritos em tecidos e confecção).
E, já em pleno século XXI, trabalha para os bombeiros e para Agência Espacial Europeia (AEE) num novo uniforme. Porque é na viragem do século que Miguel Rios, que é representado pela conceituada galeria de arte contemporânea Cristina Guerra quando empurra as fronteiras do design até ao território das artes em alguns dos seus projectos, passa do “indivíduo e do design utilitário” aos “manifestos, à utilização do vestuário como modo de protecção e como veículo de comunicação individual e de grupo. Aí, em 2000, já começo a sentir a preocupação da comunidade”, recorda.
Não serão muitos os pequenos gabinetes de design pelo mundo que têm como uma parte fulcral do seu trabalho a pesquisa conceptual. Investigação e desenvolvimento que obviamente envolve consórcios e parceiros com nomes como a YDreams ou a AEE — “isso é a minha vida, arranjar consórcios, o que me toma muito tempo”, lamenta Miguel Rios. Em 2003, quando a YDreams o chama para o projecto para a AEE em parceria com o Instituto de Telecomunicações (Pólo de Aveiro), faz um fato para os bombeiros europeus. Ou melhor, um fato com um sistema integrado de localização em tempo real, via satélite, para combate de incêndios em floresta que foi testado pelos bombeiros e protecção civil portugueses. Confeccionados com a ajuda da Lousafil e da Iberomoldes, está equipado com sistemas de detecção de movimento e mudanças ambientais.
Hoje, “está patenteado na Europa, EUA, China, Austrália, países onde em determinadas zonas há fogos muito grandes, mas para o desenvolver do ponto de vista comercial tínhamos de passar para outro estágio do projecto, que já não foi considerado... Não ficou na prateleira, ficou na patente”, diz, não negando a sua vontade na altura de avançar com a sua produção. Mas não tinha estrutura para o fazer sozinho.
Também não são muitos os gabinetes de design portugueses com possibilidade de investir três anos e cerca de 70 mil euros num projecto como o Storm System (2010-13), uma edição própria que foi registada e cujo uso comercial está ainda a ser estudado. No I-Garment usava cablagem, agora já pode usar wireless, assinala. Poluição, fenómenos climáticos extremos, “paisagens pós-urbanas”, “florestas de aço densas e estéreis” — este é o cenário de Storm System, um projecto que resume todas as questões que Miguel Rios se foi colocando e que ao mesmo tempo desencadeia outras perguntas.
O Storm System existe para ser usado no que o designer estabelece como “Tempo Alfa”, um futuro ainda por acontecer, e trata-se de uma “peça de vestuário de inteligência contextual e tecnológica”, uma gabardine que é um manifesto para que mudemos a forma como nos relacionamos com o clima e com a tecnologia, mas é também “um produto conceptual para um ambiente urbano, precursor de uma peça de vestuário comercial destinada às cidades de hoje”. Tem um sistema de iluminação própria, sendo a candeia que alumia o caminho de cada indivíduo, outro de aquecimento, um sistema de controlo por toque — e quase uma camuflagem, ocultando-nos o rosto e normalizando-nos as formas do corpo, “a solução torna-nos anónimos”, como remata Miguel Rios no seu texto de apresentação da gabardine polissémica.
O Storm System levou-o às conferências internacionais sobre inovação às universidades. “Era um dos meus sonhos”, confessa, essa presença portuguesa entre as Nokias e as Apples do mundo, embora o retorno financeiro ainda não exista. “O Storm System abre-me portas para as conferências, mas encerra-me financeiramente”, admite. “Nunca me tinha candidatado a fundos comunitários e é a primeira vez que o estou a tentar fazer”, revela sobre os seus planos futuros, que podem passar pela desmontagem das várias tecnologias usadas na gabardine do “Tempo Alfa” e noutros pequenos produtos para comercialização. Tal como nunca estabelece um tempo para os seus projectos, “nunca encerro conclusões num projecto desta natureza”.
Por trás da secretária prateada onde se senta todos os dias, Rios tem uma parede de design gráfico. Cartazes, folhetos, folhas de sala, Richard Serra ou Max Frey, Rui Chafes ou apelos como “tactics not systems” ou, melhor ainda, “late breakfast”. Falámos de tempo cronológico e de tempo atmosférico, de cabos e satélites. Miguel Rios está optimista em relação ao futuro do design e “da engenharia nas suas diferentes vertentes, das arquitecturas — são realmente as ferramentas do futuro” na política, nas empresas. E o papel do futuro no design também o entusiasma. “Rodeio-me disso. Para mim, é um desafio, estou a observar tudo o que aparece de novo e a minha necessidade é sempre antecipar um pouco. Não conheço muita gente que fale comigo do mesmo modo ou que me entenda.”
O design prospectivo tem um preço. “Sou completamente estrangulado porque deixei quase de ser um designer para ser um manager”, suspira, e é preciso investir quase a fundo perdido para criar alguns destes produtos aparentemente futuristas. E depois há questões bem mais prosaicas mas não menos desestabilizadoras para o designer. “A tecnologia tem um grande problema ainda para mim — e para todos — que são as baterias. Têm de ser flexíveis e ainda não são. E menos volumosas.”
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