Graciosa: Santa Cruz da Graciosa, uma vila serena

O silêncio que habita a ilha perpetua-se pelas ruas de casario branco da pacata vila de Santa Cruz da Graciosa, principal povoação da ilha e sede do único concelho. As ruelas de pavimento empedrado vão-se ramificando a partir da Praça Fontes Pereira de Melo, onde se destacam, ao centro, dois grandes pauis de muros pintados a branco e a vermelho. Os largos tanques, construídos no início do século XX, serviam para recolher águas pluviais, um para uso da população, outro para o gado.

À volta, a pitoresca vila vai-se compondo de casas de porte senhorial, de fachada alva imaculada e janelas emolduradas. O quotidiano sereno, mal se vê vivalma. Entre os telhados de barro, salta à vista a fachada da Igreja Matriz, com a sua torre sineira a despontar em chapéu piramidal até aos céus. O edifício branco e negro basáltico é o único monumento que temos tempo de visitar durante o curto passeio pela vila.

A construção original remontará aos finais do século XVI, erguida no local onde teria sido a casa do primeiro capitão-donatário da Graciosa, mas sofreu profundas alterações duzentos anos depois, misturando características manuelinas e barrocas. No interior, destacam-se a primitiva pia baptismal e o retábulo da capela-mor, com tábuas quinhentistas pintadas a óleo, representando a temática da Cruz de Cristo entre a talha dourada reluzente.

Já no miradouro do Monte de Nossa Senhora da Ajuda, junto à homónima ermida do século XVI, é onde se tem a melhor vista sobre a vila e toda a vertente Norte da ilha, o mar a bordejar de espuma os recortes das encostas. É na ermida, de paredes inclinadas e merlões salientes com listas de basalto a dar-lhe um ar de fortaleza em miniatura, que termina a procissão da Nossa Senhora de Guadalupe, a 24 de Maio, “a maior em comprimento dos Açores”.

Nas costas do edifício, escondida no fundo de uma espécie de cratera formada pelo abatimento de dois pequenos vulcões, está a única praça de touros da vila, normalmente só utilizada duas vezes por ano, durante as Festas do Santo Cristo dos Milagres. Ao lado, no topo dos cerros vizinhos, duas outras ermidas, São João e São Salvador.

Cemitério solitário à beira-mar plantado

Descemos de novo a encosta e abeiramo-nos do mar, agora junto ao Cais da Barra, localizado a cerca de 500 metros da vila. É naquela redonda baía que em breve deverá nascer uma marina recreativa, o que tem motivado alguma polémica entre a população. Mas o motivo que aqui nos traz é outro, um velho mistério: um cemitério judaico, de campa única e incógnita sobre a falésia.

Quem nos guia é Mercês Coelho, antiga deputada no Parlamento Regional. “É uma história que o meu pai contava como sendo uma coisa intrigante: gente muito importante tinha feito aqui um túmulo, nunca referindo propriamente quem era a pessoa e sem ninguém perceber bem porquê”, recorda.

Vamos caminhando pelo trilho pedestre assinalado, de um lado o mar dobrado em pequenas ondas, do outro um muro contínuo de cerrados a parcelar o terreno, até que surge o estranho cemitério, quase camuflado junto a um desvio do muro. A mesma pedra escura protege o túmulo, mas os blocos são rectos, austeros. À frente, um degrau ao centro e uma palavra de cada lado, compondo a única inscrição: cemitério judaico. Lá dentro, uma campa deixa-se adivinhar ao centro do chão empedrado.

“Sabe-se muito pouco sobre isto e, por isso, é uma história que sempre me intriga”, confessa Mercês Coelho. Há quem diga que a sepultura pertence a um antigo comerciante instalado na Graciosa, outros que ele vinha doente num barco, desembarcou e morreu cá, outros que já teria falecido a bordo. “Depois ouvi num programa televisivo da historiadora Susana Goulart Costa que seria José Bensaúde, irmão do primeiro Bensaúde a vir para os Açores, Abraão”, conta. Teria falecido em 1827 e cem anos depois a família terá ordenado a construção do túmulo em sua homenagem. “Foi um senhor cá da ilha, comandante de um navio, que foi o intermediário nessa operação económica, porque o túmulo é todo feito em pedra lavrada e foi ele que contratou a gente que fez aqui o túmulo”, acrescenta. Mais do que isso, pouco se sabe, talvez nunca se venha a saber. Um pequeno mistério que adensa o corpo de lendas da Graciosa.

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