L decidiu que deixaria o Iraque primeiro. Em Mossul, sustentava os pais e as duas irmãs mais novas com o salário de professor de Química no ensino secundário e os rendimentos de uma loja de vestidos de noiva. Mas foram os pais a pedir-lhe que fugisse, que partisse sozinho para se salvar. Os combatentes do autoproclamado Estado Islâmico, que ocupavam a sua cidade desde 2014, paravam-no na rua, queriam saber se não rezava. Um dia seria raptado, avisavam. Um dia seria morto. L teve medo. A família insistiu: “Tens de partir, tens de ir para a Europa.”
Innocent Niyonsenga foi raptado duas vezes antes de perceber que tinha de sair de África. Em 2004, envolvido nos julgamentos do genocídio do Ruanda, dez anos depois do massacre, Innocent viu-se perseguido pelo Governo do seu país. Fugiu para o Uganda, deixando para trás uma vida de que se orgulhava. Recomeçou tudo num campo de refugiados ugandense. Mas nem por isso encontrou paz. Antes que as tropas ruandeses o raptassem pela terceira vez, pediu um visto de turista para a Europa. Quando partiu para Lisboa, em 2012, Innocent despediu-se da mulher e dos filhos sem querer sequer pensar se os voltaria a ver – “a vida deles estava em perigo por causa de mim”.
W.Y.B. não vê os filhos há 12 anos. O marido deixou a Eritreia em 2002, procurando melhores condições de vida e fugindo ao exército. W.Y.B. seguiu-o dois anos depois. Viveram na Líbia até ao início da guerra civil, em 2011. Chegaram a Lisboa meses depois. O filho mais velho está a cumprir o serviço militar obrigatório e que pode estender-se por décadas. O filho mais novo fugiu com uma prima para o Sudão do Norte, para evitar um destino semelhante ao do irmão. Sem notícias do filho mais velho há quase dois anos, W.Y.B. continua à espera de que o mais novo se junte a ela em Portugal – “se tem uma fila no caminho, vai esperar, vai esperar”.
Tal como muitas outros em fuga, L, Innocent e W.Y.B. deixaram a família para trás, arriscando viagens perigosas para melhorar as suas vidas e poderem reunir-se com os seus em paz e segurança. Escolhem passar anos separados dos pais, dos filhos, das mulheres, dos maridos, para abrirem caminho, para que eles não tenham de correr os mesmos riscos. À semelhança daquilo que acontece em muitos países, a lei portuguesa prevê que os refugiados tenham direito a fazer o pedido de reagrupamento familiar com determinados membros da sua família. A legislação de asilo hoje em vigor define como elementos abrangidos por esse processo o cônjuge ou membro da união de facto, filhos menores ou incapazes a cargo do casal ou de um dos cônjuges ou de um dos membros da união de facto, filhos menores adoptados, ascendentes em primeiro grau do beneficiário de protecção internacional se este for menor, adulto responsável por menor não acompanhado.
Este elenco de membros de família foi acrescentado à lei de asilo em 2014, altura da alteração legislativa. Anteriormente, apenas se remetia para a Lei de Estrangeiros, que define que o direito ao reagrupamento familiar inclui os ascendentes em 1.º grau do residente ou do cônjuge, desde que se encontrem a seu cargo e os irmãos menores, desde que sob tutela do residente. Devido à alteração legislativa feita há dois anos, neste momento, o espectro familiar abrangido pelo reagrupamento familiar para refugiados é, na prática, mais limitado do que para os imigrantes em geral. O secretário de Estado da Administração Interna na altura da discussão, das propostas de alteração e da votação da Lei nº 26/2014, João Almeida, diz ao PÚBLICO que essa alteração resultou da “transposição de uma directiva da União Europeia” e que a mesma “mereceu largo consenso no parlamento português”, com “os votos a favor do PSD, do PS, do CDS-PP e do BE e a abstenção do PCP”.
A definição de “membros de família” tal como é agora prevista na lei é “restrita e restritiva”, considera o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS), que logo em 2014 enviou propostas de revisão legislativa para os grupos parlamentares na Assembleia da República. Actualmente, em pleno processo de acolhimento de refugiados, o JRS insiste na urgência dessas alterações. “Queremos que isto seja uma proposta da sociedade civil e que seja suportada por outras organizações para que tenha mais força e possa ser levada à prática. O reagrupamento familiar é um direito que deve ser aperfeiçoado e melhorado para garantir aquilo que é o seu objectivo – normalizar a vida das pessoas o mais amplamente possível para que isso se traduza numa melhor integração”, diz André Costa Jorge, director-geral do JRS.
“Uma das principais razões porque o reagrupamento familiar é tão importante é a de permitir aos refugiados reaver a sua tranquilidade mental. A ausência do reagrupamento familiar em relação a todos os que sejam próximos é um entrave à boa integração na sociedade portuguesa. Entrave em termos cognitivos, em termos de saúde mental. Um refugiado nestas condições muito dificilmente conseguirá uma boa integração e isso põe em risco tudo – a disponibilidade para encontrar trabalho, a disponibilidade para se relacionar tranquilamente com as pessoas ao seu redor”, diz Cristina Santinho, investigadora do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), do ISCTE. “Conheço vários casos de pessoas permanentemente em stress porque estão sempre a pensar se os familiares que estão no país de origem estão ainda vivos, se estão mortos, se foram sujeitos a um bombardeamento naquele dia, se foram raptados. Muitos dos professores de Português voluntários que se oferecem para dar aulas aos refugiados queixam-se de que eles não estão concentrados nas aulas e assim não aprendem. Eu explico-lhes que ninguém consegue estar concentrado nas aulas quando está preocupado com a situação dos familiares”, diz.
Uma das propostas de alteração prende-se com o alargamento da definição de membros de família que podem beneficiar do reagrupamento familiar. Alargamento esse que, defende André Costa Jorge, deve ir ao encontro “da realidade da população de refugiados que está a ser acompanhada”. “Quando sabemos que boa parte dos refugiados são jovens e a lei não permite que as pessoas tragam ou façam reagrupamento familiar dos seus pais, isto na nossa perspectiva é altamente restritivo. Quando a lei apenas prevê que se possa fazer reagrupamento familiar de descendentes menores e há filhos de 19 e 20 anos que não estão contemplados, isto significa que a lei não atende à realidade das pessoas que estamos a acolher no nosso país”, diz o director-geral do JRS.
Além da questão da definição de família próxima, o JRS critica as demoras no processo e o facto de apenas os beneficiários de protecção internacional poderem pedir o reagrupamento familiar, sugerindo que este procedimento se inicie também para requerentes que ainda não têm uma resposta final sobre a atribuição do estatuto de refugiado. Isto porque, dizem, pode demorar cerca de dois anos até que os requerentes de protecção internacional que têm estado a chegar da Grécia e da Itália possam reencontrar alguns membros das suas famílias.
“A lei deve ser mais ágil no que diz respeito ao tratamento de pedidos de reagrupamento familiar para que na prática as pessoas não fiquem dois anos à espera de que os seus familiares se possam juntar a eles em Portugal. O tempo que medeia entre o pedido e a possibilidade de a pessoa fazer o pedido e o processo estar concluído é demasiado longo. Isto dificulta o processo de acompanhamento e integração dos refugiados no país e na sociedade”, diz André Costa Jorge.
Uma solução possível passa por “iniciar o pedido de reagrupamento familiar enquanto se espera pela decisão final da concessão do estatuto de refugiado. Se os processos corressem em paralelo, poupava-se tempo no final para a chegada efectiva das pessoas a Portugal”, diz João Lima, do JRS.
A esperança ainda não acabou
W.Y.B tem uma vida boa em Portugal. Trabalho, segurança, paz. “País bom para mim. Tudo certo, tudo correcto. Vida segue em frente”, diz de forma determinada, parecendo não querer perder muito tempo com emoções que atrapalham. De forma racional, W.Y.B diz que quando se lembra do filho de 13 anos, a tranquilidade que sente dá lugar a outra coisa que não define. “Sofrimento com a criança está fora disto tudo”, diz, com um controlo absoluto sobre as palavras, emoções meticulosamente arrumadas em gavetas que não podem ser abertas ao mesmo tempo. Talvez por isso quase nem refira o filho mais velho, de 17 anos, cujo paradeiro desconhece há dois. “A mãe procura sempre o filho. Pensei muito nele. Sofri muito. Mas não consigo fazer nada, que vou fazer?”
A última vez que a eritreia tocou nos filhos foi em 2004, antes de deixar o país para se juntar ao marido na Líbia. Depois da Síria e do Afeganistão, a Eritreia é um dos países de onde partem mais refugiados todas as semanas para atravessar o Mediterrâneo. Desde o início de 2012 até meados deste ano, um em cada 50 eritreus pediu asilo na Europa. A ONU estima que cerca de 400 mil eritreus tenham deixado o país nos últimos anos. As razões para este êxodo podem não ser tão evidentes como no caso da Síria, assolada por uma guerra civil que dura há cinco anos e já fez mais de 250 mil mortos, forçando mais de 11 milhões a deixar as suas casas. Mas a Eritreia é um dos países mais pobres do mundo e ocupa regularmente os últimos lugares dos rankings internacionais em matéria de liberdades políticas ou direitos humanos. Um dos principais motivos de fuga é o serviço militar obrigatório, que se estende a todas as pessoas com menos de 50 anos, que podem ser recrutadas por um período indefinido e obrigadas a trabalhar em obras públicas por muito pouco dinheiro.
O filho mais velho do casal não conseguiu evitar escapar ao serviço militar obrigatório e, por isso mesmo, W.Y.B. sabe que não tem como tirá-lo do país. Quando uma prima lhe disse que ia fugir para o Sudão do Norte para evitar ser chamada para o exército, W.Y.B. pediu-lhe que levasse o seu filho mais novo com ela. Há dois anos, atravessaram a fronteira a pé e vivem agora numa casa alugada em Cartum. Desde essa altura que o menino não vai à escola. W.Y.B. e o marido fizeram o pedido de reagrupamento familiar em 2014, mas até agora, diz, não obteve resposta. “De três em três meses, ligo para o SEF. O processo está a decorrer. Dizem-me para esperar”, conta.
Recentemente, a prima de W.Y.B. informou-a de que estava a preparar-se para atravessar o Mediterrâneo e tentar a entrada na Europa. A eritreia está preocupada. “O meu filho não precisa de vir de barco. É muito perigoso”, diz, consciente de que o reagrupamento familiar protegeria o filho de uma viagem arriscada.
W.Y.B. fala com o filho mais novo duas vezes por mês. Conta-lhe que Portugal é um país bom, “com praia, com jardim, com tranquilidade”, onde ele vai poder “brincar”. O filho anima-se com as descrições, quer ver Portugal, precisa da mãe. Diz-lhe: “Saudade de ti. Quando vai chegar?” W.Y.B. não percebe por que razão o processo no SEF está tão atrasado. O Centro Português de Refugiados (CPR), que está a acompanhar o pedido de reagrupamento familiar de W.Y.B., disse ao PÚBLICO que o mesmo ainda não deu entrada no SEF porque “continua a aguardar documentos da parte dos interessados para o efeito”. Acrescentam ainda que, no que diz respeito aos pedidos de reagrupamento familiar na Direcção Regional de Lisboa do SEF, “os prazos de decisão têm sido relativamente curtos, na ordem de dois, quatro meses”. Mas W.Y.B. garante que entregou todos os documentos que lhe foram pedidos e diz desconhecer o que se passa. “Que posso fazer? Ir ao Sudão buscar o meu filho? Depois não o deixam entrar em Portugal…”, pergunta W.Y.B., um pouco mais agitada. Depois, acalma-se novamente: “Estamos sempre na esperança – este mês, este ano… A esperança ainda não acabou, vai continuar.”
Fiquei louco quando as vi
Há mais de dez anos que Innocent Niyonsenga tenta recuperar a vida que perdeu no Ruanda. Innocent não ficou livre de perigo quando a Cruz Vermelha o encontrou, único corpo com pulso numa montanha de cadáveres. Durante aqueles cem dias em 1994, vizinhos mataram vizinhos, amigos mataram amigos de infância, maridos mataram companheiras de longa data. Mas Innocent, hutu como a maioria dos ruandeses, não podia compreender o ódio, a cegueira, a matança. Ajudou e escondeu tutsis e arriscou a vida por isso. Perdeu dois dedos da mão esquerda, amputados com uma catana. Foi espancado até entrar em coma e mal se perceber se estava vivo ou morto. Sobreviveu, mas uma década depois do genocídio no seu país, descobriu que não estava ainda em segurança.
Em 2004, Innocent tinha uma vida pacífica em Gitarama, a uma hora de distância da capital, Kigali. Trabalhava na Faculdade de Comunicação Social, onde era secretário académico e professor de Inglês. Assim sustentava a mulher e os cinco filhos. Assim pagava a casa e pôde comprar um carro. Mas no Ruanda, onde 800 mil ruandeses morreram às mãos de ruandeses, o desejo de vingança e o ressentimento têm raízes mais profundas do que a paz. Innocent começou a ajudar um advogado norte-americano que trabalhava com o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda. Innocent, que protegeu tutsis e cujo nome significa inocente, foi encarregado de investigar os casos de hutus que se julgava estarem acusados erradamente, coligindo as provas necessárias para os inocentar. “Gostei muito de fazer este trabalho. Eu continuo sem perceber como é que aquelas pessoas – que conviviam, partilhavam a vida – fizeram o que fizeram. Mas ouvir os culpados é importante para descobrir o que os levou a matar indiscriminadamente. Muitos hutus mataram, mas nem todos os hutus são culpados. Defender aqueles que não tinham culpa foi um grande orgulho para mim”, diz.
O relatório provocou mal-estar junto das autoridades, maioritariamente tutsis, que voltaram a governar o país. Innocent acusou a polícia de o pressionar e denunciou a situação à Human Rights Watch, que levou a cabo uma investigação sobre a perseguição das testemunhas do genocídio no Ruanda. As autoridades disseram-lhe que estava a contribuir para passar uma imagem negra do país. Foi detido pela polícia secreta durante três dias durante os quais não teve nada para comer. A libertação chegou com uma condição: Innocent deveria escrever uma carta a pedir desculpa ao país pelo relatório que escrevera. Partiria em liberdade, mas o passaporte só lhe seria devolvido depois de se redimir por escrito. “Eu percebi que se o fizesse estava a assumir que não era inocente, que tinha mentido”, diz. Deixou a prisão sem documentos de identificação e já não voltou a casa. Com a ajuda de amigos, atravessou a fronteira para o Uganda. A mulher juntou-se a ele após ser ameaçada pela polícia. Seis meses depois, os filhos, que tinham sido entregues a duas tias no Ruanda, reencontraram os pais num campo de refugiados do país vizinho. Com a conta bancária congelada, Innocent recomeçou a vida no Uganda, fazendo trabalhos temporários como tradutor e intérprete. Mas a família não estava segura. Na primeira vez que Innocent foi raptado por ruandeses com a ajuda da polícia ugandense, um amigo pagou o resgate. Na segunda vez, os raptores não chegaram a acordo entre extorquir Innocent ou levá-lo ao Ruanda e deixaram-no numa floresta. Quando regressou a casa, já sabia que não podia continuar a viver ali. “Ao terceiro rapto, não ia ter tanta sorte”, diz. Innocent conseguiu um passaporte ugandense falso e foi bater à porta da embaixada da França, onde pediu um visto para sair de África. Só Portugal lhe concedeu um visto de turista. Em Novembro de 2012, antes de partir para Lisboa para começar do zero pela segunda vez, despediu-se da mulher e dos filhos, sem saber se voltariam a estar juntos. “Eu não fazia ideia se chegava a Portugal, se conseguia pedir asilo, se conseguia pedir o reagrupamento familiar ou quanto tempo levaria esse processo.”
Ao chegar a Lisboa, Innocent foi detido pelo SEF por ter um passaporte falso. Apresentou o pedido de asilo e após duas semanas pôde sair em liberdade, com um visto de 15 dias. Pediu apoio junto de uma instituição de apoio a refugiados e passou a viver num centro de acolhimento. O recomeço em Portugal foi muito duro. Sozinho num novo país, Innocent estava em grande sofrimento psicológico. “Não conseguia dormir a pensar na minha família. Quando pensava na vida que tinha e que perdi – perdi tudo, tudo, tudo –, não aguentei e tive de tomar medicação”, diz. Encontrou trabalho numa empresa de desinfestação, limpando ruas e esgotos pela cidade de Lisboa. Habituado a ocupações mais desafiantes do ponto de vista intelectual, o ruandês quis mudar de emprego e encontrou trabalho num call center. “Comecei a recuperar a minha vida aos poucos”, diz.
Innocent ligava à família todos os fins-de-semana, sofreu com as notícias da perda de saúde do filho mais velho e com as perguntas das filhas – “Porque é que o pai não passa o Natal connosco?” “Porque é que o pai nos abandonou?” Quando se sentiu estável e confortável em Portugal, pediu o reagrupamento familiar, em 2014. A autorização foi concedida em Novembro de 2015 – a mulher e as quatro filhas de Innocent, de 9, 17, 20 e 21 anos, poderiam juntar-se a ele. Mas antes do reencontro Innocent teve de juntar 4000 euros para cobrir os custos da emissão de vistos e das viagens das familiares, uma vez que a lei em Portugal não prevê que o Estado patrocine o reagrupamento familiar depois de emitir a autorização. O vazio legal faz com que se parta do princípio que seja o requerente a suportar os custos do reagrupamento familiar. O ruandês não tinha esse dinheiro e pediu ajuda na empresa onde trabalhava e junto da instituição que o acolheu, que conseguiram angariar fundos para ajudá-lo. No dia 29 de Abril de 2016, após quase quatro anos, Innocent abraçou de novo a mulher e as quatro filhas. “Fui ter com elas ao aeroporto”, diz, os olhos repentinamente iluminados, todas as expressões do rosto expandidas numa felicidade total. “Fiquei louco. Foi uma loucura. Eu não sabia onde estava, estava no paraíso”, diz. A vida a seis em Portugal não é fácil. Innocent teve de deixar o quarto alugado e procurar um apartamento que lhe custa mais de metade do ordenado. Mas nem por um momento se queixa. Desvaloriza o facto de carregar um saco cheio de roupa e utensílios de cozinha que pediu a uma instituição de solidariedade. Esta situação é temporária, tem a certeza. O importante é ter a família reunida. A mulher arranjará um emprego. As filhas começarão a estudar. Ele encontrará um emprego melhor, mais adequado às suas habilitações, à sua experiência, às línguas que fala com uma fluência invejável. Tudo será resolvido. Mas há ainda uma questão pendente, um espinho na felicidade familiar, um entrave a que a vida da família Niyonsenga recomece finalmente, mais de dez anos depois de ter sido interrompida. Innocent não aborda a questão, como se o problema desaparecesse ao não ser mencionado. Quando fez o pedido de reagrupamento familiar, as filhas eram todas menores ou estudantes, ou seja, dependentes dele. Por isso mesmo, puderam juntar-se ao pai em Portugal, situação que está prevista na Lei de Estrangeiros. Mas o filho mais velho, hoje com 27 anos, não pôde ser abrangido pelo estatuto e ficou para trás, no Uganda. Innocent não desistiu de ter o filho a seu lado, vai fazer o que for possível para que chegue em segurança. É que o ruandês não pensa voltar a África. Aos 49 anos, não consegue imaginar começar do zero pela terceira vez. Diz sentir-se em Portugal como em casa, por causa do clima e da empatia das pessoas. E porque, quando estava em fuga, este foi o país que o escolheu. Innocent demora-se no verbo. “Portugal escolheu-me. Tenho de respeitar isso.”
A lei como existe hoje não permite, de facto, incluir filhos maiores de idade no âmbito do reagrupamento familiar. Mas a maioridade de um filho não torna mais fácil a separação. João Lima, da JRS, pôde constatar isso mesmo quando recentemente teve de explicar a um casal de refugiados acabados de chegar a Portugal que, contrariamente àquilo que lhes foi prometido na Grécia, os dois filhos de 22 e 27 anos que deixaram na Turquia ficarão de fora do processo de reagrupamento familiar. “Quando eles perceberam isso, ficaram absolutamente devastados. Foi-lhes dito que poderiam trazer os filhos em segurança e não é verdade”, diz.
A minha mãe não consegue viver sem mim
Fugir do Estado Islâmico pode ser tão ou mais perigoso do que viver sob o seu domínio de terror, execuções e decapitações diárias, fome e escravatura. L sabia os riscos que corria quando entrou em contacto com contrabandistas que o ajudaram a deixar o Iraque e chegar à Síria. “É muito perigoso atravessar este país como iraquiano. Se o Isis [Estado Islâmico] me encontrasse, ia parecer que eu estava a fugir do exército”, diz. Na fronteira com a Turquia, L juntou-se a várias famílias sírias que tinham feito viagens semelhantes, todos a pensar na Europa. O iraquiano foi aconselhado a não falar para que o sotaque não o denunciasse, mas um dia esqueceu a regra. Gritaram-lhe que partisse, temendo que o Estado Islâmico os matasse a todos. L pagou ao contrabandista para que o ajudasse a acalmar os ânimos, para que convencesse as famílias de que não era perigoso, de que não iria pôr ninguém em perigo.
O grupo partiu em direcção à Turquia, mas foi perseguido por combatentes do Estado Islâmico. Pais, mães e crianças correram em direcções opostas, tentando fugir. L teve a certeza de que iria morrer naquele momento. Passado o perigo, os sírios em fuga reuniram-se novamente, prontos para continuar viagem. Um dos contrabandistas aproximou-se de L para o ajudar a atravessar a fronteira em primeiro lugar. “As famílias movem-se lentamente. Levo-te a ti primeiro”, disse-lhe.
L e o contrabandista atravessaram a fronteira juntos, passando por debaixo de pontes, cortando caminho pelo meio de vilas. Quando se separaram, o contrabandista disse-lhe para encontrar uma carrinha branca e para bater três vezes. O motorista estaria à sua espera e abrir-lhe-ia a porta. Deveriam aguardar pelas restantes famílias, mas a polícia turca começou a disparar balas de borracha e o motorista acelerou em direcção a um grande portão que protegia uma casa onde L encontrou turcos a descansar e a beber café. Quando o contrabandista apareceu, levou-o para Gaziantep. Daí, L partiu para Istambul, onde viveu durante três meses, procurando um “passador honesto” que o levasse a atravessar o mar de forma segura. Fechou negócio com um deles, entregando-lhe 2500 euros para viajar até à Grécia.
Foram precisas várias tentativas antes de L apanhar esse barco. Houve perseguições policiais, fugas, noites passadas ao relento na floresta, sem saber como regressar à cidade, temendo que a polícia o enviasse de regresso a Mossul. O barco que deveria levá-lo à Europa era muito diferente daquilo que esperava. “Percebi nessa altura que o contrabandista era um mentiroso. Prometeu-me um grande barco, mas afinal era um barco velho de dois andares”, diz. Pouco tempo depois de zarpar, a embarcação onde viajavam centenas de homens, mulheres e crianças, partiu-se. L descreve os cadáveres a boiar, os gritos e os choros das mães, a temperatura da água, gelada, que quase o fez perder os sentidos. “Senti-me sem poder.” O iraquiano olhou para o céu e pensou que o helicóptero que os sobrevoava estava ali para os salvar. “Estava a fotografar e a filmar-nos.” O grupo que sobreviveu esteve mais de três horas no mar antes da chegada de um grande barco enviado para o resgate. Ao aproximar-se, o barco produziu uma onda enorme. “Uma amiga minha agarrou-se à filha, mas não conseguiu segurá-la por causa da ondulação.” A menina morreu no mar. Sem forças, L trepou ao barco por uma corda com a ajuda de três refugiados.
O barco atracou na ilha grega de Lesbos (Mitilene). As autoridades gregas recolheram os cadáveres. L tinha chegado à Europa. Durante dois meses, viveu num campo de refugiados na ilha. Fez entrevistas, deu as impressões digitais, escolheu a Alemanha, a Finlândia e a Bélgica quando lhe pediram para apontar numa lista seis países europeus onde gostaria de viver. Estava interessado apenas naqueles três, onde viviam familiares e amigos. Deram-lhe uma autorização de residência de seis meses e indicaram-lhe como apanhar o barco que seguia para Atenas, onde esteve três meses num hotel. Foi aí que lhe disseram que Portugal o tinha escolhido. L protestou, que não conhecia ninguém em Portugal, que tinha primos e amigos no Norte da Europa. Disseram-lhe que Portugal lhe daria as mesmas condições que teria nesses países. “Os meus amigos na Finlândia e na Alemanha diziam-me o contrário, que Portugal era pobre e que não me iam dar nada”, diz. A opção era ficar em Atenas ou vir para Portugal. L não queria continuar a correr riscos atravessando a Europa a pé. Já bastava o que tinha vivido até ali. “Rezei e aceitei o meu destino.” L não tinha escolhido Portugal, mas Portugal escolhera-o. Além disso, segundo a JRS, que está a acompanhar o caso de L, foi-lhe prometido na Grécia que poderia pedir o reagrupamento familiar.
L chegou a Lisboa em Dezembro de 2015, um dos primeiros refugiados a chegar ao país desde o início desta crise. Ficou a viver no Centro Pedro Arrupe na Ameixoeira. Conseguiu falar com os pais. Quando a mãe ouviu a sua voz, dizendo-lhe que estava em Portugal, chorou. Os pais disseram-lhe que estavam bem, mas L sente que lhe escondem algo. A irmã mais nova, de seis anos, ficou doente e não havia dinheiro para tratá-la. Um amigo resolveu o problema. As expectativas de L relativamente ao reagrupamento familiar já foram geridas pelos membros da JRS, que o informaram de que seria muito difícil conseguir, por via da lei, trazer os pais para Portugal. “Disse-lhe que segundo a lei de asilo não é possível trazer os pais dele. Tento não lhe dar muitas esperanças e explico-lhe que há um problema de articulação entre a lei de asilo e a lei de estrangeiros, mas que à partida a resposta será negativa”, explica João Lima da JRS. L parece compreender a dificuldade da sua situação e repete várias vezes que quer encontrar um emprego para poder enviar dinheiro para casa. Mas o iraquiano quer os pais ao pé dele. “A minha mãe não consegue viver sem mim”, diz. João Lima acrescenta que “a única hipótese” que eles teriam de chegar a Portugal “seria arriscando a vida para ir para a Turquia e tentar a reinstalação a partir de lá, mas mesmo isso é muito difícil”. L, que arriscou a vida dele, afasta as mãos como que afastando essa ideia. “Se soubesse que eles podiam vir em segurança, queria-os cá hoje, antes de amanhã. Mas não quero que eles fujam do país como eu fugi.”
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