“Fui para dar vida à minha vida”

Em todas as fotografias que me tiraram nos campos de refugiados da Grécia apareço a sorrir. Documentei esta experiência nas redes sociais e ficou tudo muito surpreendido com o meu ar de felicidade. Mas não era só eu. Vi o mesmo sorriso em todos os voluntários que lá encontrei. Este é o outro lado da história, o lado luminoso da história. Os voluntários vão para lá ajudar na cozinha, nos armazéns, a dar aulas de Inglês, a entreter os miúdos. Há quem leve rolos de papel cenário e tintas para ocupar as crianças e os jovens com expressão plástica, há quem os leve à praia para os ensinar a nadar, para os distrair ou para tentar ajudá-los a superar o trauma do naufrágio nos casos em que isso aconteceu. Aquelas pessoas estão a viver ali agora. Aquela é a vida delas e a vida delas não é chorar de manhã à noite. Há momentos de brincadeira e de aparente normalidade. O nosso papel não é puxar as memórias dolorosas, mas contribuir para aliviar o peso emocional daquilo por que passaram e estão a passar. Aproximamo-nos muito das pessoas e elas agradecem.

Também me perguntaram se fiquei muito chocada com as condições nos campos, mas eu já tinha visto em fotografias e na televisão. Já sabia como era e é mesmo assim. Aquilo que me surpreendeu realmente foi a forma como os voluntários são recebidos pelos refugiados. Eles partilham a comida toda que têm connosco e convidam-nos para as suas tendas. Ao início tive receio de aceitar, mas percebi que recusar era uma ofensa.

Seria bonito dizer que fui para ajudar os outros, mas fui acima de tudo para me ajudar a mim, para dar vida à minha vida. Tenho 62 anos, sou magistrada do Ministério Público e estou de licença sem vencimento há algum tempo. Sempre me envolvi em causas e a tragédia humanitária desta crise tocou-me. Achei que podia desempenhar um papel qualquer que me ajudasse a mim própria. E aquilo que percebi foi que no fundo é mesmo assim que isto da ajuda funciona. Ninguém quer caridade. De todos os refugiados que conheci, nem um me pediu o que quer que fosse. Mas todos agradecem que haja gente de todo o mundo disposta a deixar as suas vidas para estar ali com eles, a socializar. A mostrar solidariedade.

Os voluntários independentes são aqueles que eu respeito mesmo. Há gente que está ali há dois ou três meses a viver em tendas e a trabalhar de manhã a noite. São quase todos muito jovens e podem estar agregados a projectos, mas geralmente não estão ligados às grandes organizações que funcionam quase como empresas e que têm estruturas muito pesadas e pouco próximas das pessoas. Quero voltar – não sei se para a Grécia se para outro local – e trabalhar com um grupo mais pequeno. Nunca me associaria a uma grande ONG – não quero estar ligada às desconfianças que há sobre desvio de dinheiro e todas essas polémicas.

Fazer isto está ao alcance da maioria. Quando estava a preparar a partida, dizia-me que estava a ser muito corajosa, mas não é verdade. Todos podem fazer o que eu fiz, desde que estejam abertos ao novo e saibam utilizar bem as redes sociais. Os voluntários independentes põem a informação toda no Facebook – quem contactar, como encontrar alojamento para partilhar, como tornar a viagem mais barata. Toda a gente acha que emocionalmente é muito duro, que é preciso ter uns traços românticos. Mas os voluntários que lá estão não são sobredotados, não são heróis nem heroínas. São pessoas como nós, talvez mais novos do que eu… Há sempre lugar na cozinha para descascar batatas e cortar legumes.

Quem quer mesmo participar neste movimento de solidariedade pode fazê-lo a partir de casa. Eu cheguei, mas a minha cabeça continua lá. Mantenho-me em contacto, através de WhatsApp, com muitos refugiados que conheci. E estou a tentar encontrar formas de acelerar o procedimento para pedir asilo em Portugal. Contrariamente ao que se vai lendo na comunicação social, os refugiados agora estão dispostos a vir para cá porque começam a perceber que é mais fácil do que se pedirem para ir para a Alemanha, para onde a maioria gostaria de ir. E Portugal é uma forma de saírem da Grécia, onde estão encurralados desde que em Março a situação se agravou com o acordo entre a União Europeia e a Turquia e o encerramento das fronteiras com a Macedónia. Quem pedir asilo em Portugal, teoricamente beneficia de procedimentos mais rápidos, mas antes disso tem de entrar no procedimento geral que está bloqueado e tem meses de atraso. É preciso encontrar um mecanismo paralelo para que aqueles refugiados que digam querer vir para Portugal não tenham de passar por esse processo geral. E, quando isso acontecer, é preciso fazer-lhes chegar essa informação. A ajuda humanitária no terreno tem todo o mérito, mas acho que agora há que encontrar uma forma prática de resolver esta situação.

Depoimento recolhido por Catarina Fernandes Martins

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Ninguém quer caridade. De todos os refugiados que conheci, nem um me pediu o que quer que fosse. Mas todos agradecem que haja gente de todo o mundo disposta a deixar as suas vidas para estar ali com eles