No jardim de infância do lar de Santa Estefânia em Guimarães, Khalid e Rowan Alkassem brincam sozinhos no parque enquanto esperam pelo lanche que assinala o Dia Mundial da Criança. Um colega aproxima-se do menino sírio e diz-lhe, preocupado: “Ó Ali, anda comer!” As duas crianças correm para junto das educadoras, que os sentam numa roda e lhes entregam, primeiro, um iogurte, depois um pão doce. Khalid devora o iogurte e faz questão que todos notem que foi o primeiro a comer e a entregar a embalagem vazia, o que significa que pode ser o primeiro a comer o pão. Rowan, na outra ponta da roda, vai referindo o nome de cada um dos colegas. A mãe, Olfet, senta-se a um canto a observar, olhos muito abertos de curiosidade, sorriso doce. Os filhos parecem começar a adaptar-se ao ritmo das outras crianças, depois de meses em trânsito ou a viver em campos de refugiados.
Quando chegaram ao jardim de infância, eram violentos, atropelavam as outras crianças, batiam, destruíam brinquedos. Agora estão mais calmos, pedem mimo às educadoras, tornam-se progressivamente mais sociáveis. Mas Khalid e Rowan cresceram no meio de uma guerra e as memórias que construíram são diferentes das dos colegas portugueses. Querem ser sempre os primeiros a receber a comida e a fazer a higiene. Quando a educadora lhes pede que cantem canções sírias, Khalid junta os indicadores e aponta, como se empunhasse uma arma. Por vezes, desliza o indicador pela garganta, sugerindo que sabe o que é uma decapitação. Ao brincar com os carros em miniatura, Khalid procura pequenas peças de lego em formas circulares ou rectangulares e deposita-as em cima dos brinquedos. Os automóveis ou as carrinhas que se habituou a ver estão equipados com armas e canhões e por isso o menino de sete anos adapta as miniaturas à realidade que conhece. Olfet diz que é normal. “Nós mudámos muito de casa, a criança… É como uma doença. Ele viveu com bombardeamentos, acho que vai ficar traumatizado”, diz.
Nos últimos três anos, a família Alkassem viveu em trânsito. A guerra destruiu-lhes a vida bonita que começaram a construir em Damasco, casal jovem, casa grande acabada de estrear, duas crianças pequenas que não tiveram tempo de ali construir memórias que não incluíssem imagens de morte e de violência. Quando o conflito chegou à capital, em 2012, Olfet e Znati fizeram como a maioria dos vizinhos e deixaram tudo para trás. “Não conseguimos tirar sequer a roupa”, dizem os dois em uníssono, antes de Olfet resumir que a vida deles ficou estragada naquele momento. Depois de uma breve estadia na Turquia, Olfet, Znati e os filhos Khalid, então com três anos, e a filha Rowan, com dois, mudaram-se para perto do pai de Znati, em Idlib, no Nordeste da Síria, onde a vida não era menos perigosa. “Nós vivemos a guerra, sem termos de ver em vídeo. Os aviões passam por cima de ti, bombardeiam tudo…”, diz Znati, que perdeu um irmão, morto por projécteis em 2014.
Mas se não fossem os maus rins de Olfet, a família Alkassem não teria deixado a Síria, talvez não tivesse ambicionado chegar à Alemanha e provavelmente teria continuado sem saber muito sobre Portugal. Num país dilacerado pela guerra, não era fácil, seguro ou barato encontrar os cuidados de saúde de que Olfet, doente renal, necessitava. Nos três anos que se seguiram, a família viveu entre Idlib e Nizip, cidade turca que é praticamente um campo de refugiados, para que Olfet pudesse fazer a diálise num país em paz. Três anos de desalojamento, de noites passadas em tendas, de dias passados de hospital em hospital em busca de vagas para a diálise. Três anos a esticar o dinheiro que lhes permitia viver fora da Síria, a esticar o dinheiro para pagar a contrabandistas que os levassem de novo à Síria — para que Znati pudesse trabalhar e assim continuar a financiar o equilíbrio precário de sobreviver em trânsito entre um país em guerra e um país que o jovem casal sentia hostil. Na Turquia, Olfet encontrou quem estivesse disposto a doar-lhe um rim, mas nenhum hospital que fizesse a operação. Ela e o marido correram o país em busca de uma solução. Olfet diz que ouviam sempre a mesma resposta: “Não temos essas coisas para os sírios.”
A vida do casal fora da Síria era para ter sido temporária. O plano era curar Olfet e voltar para trás. Mas, quando todas as portas se fecharam na Turquia, Znati e Olfet começaram a ouvir falar da Alemanha, uma espécie de paraíso na terra, um local que se tornou mítico pela força das histórias mais ou menos verdadeiras que se contam sobre a vida de lá. “Nós ouvíamos sempre os refugiados dizer que estavam a ir para a Alemanha. E aqueles que já lá estavam falavam de tratamentos com células estaminais, diziam-nos que a Olfet não ia precisar de um transplante e ia ficar curada. E que os refugiados são ajudados imediatamente. Todas as pessoas a quem perguntei disseram-me: ‘Vai para a Alemanha!’ Decidimos que a vida como estava já bastava, pusemo-nos nas mãos de Deus e dissemos: ‘Vamos embora'”, conta Znati.
Como arriscámos tanto?
No início de 2016, o casal, juntamente com a mãe e alguns familiares de Olfet que entretanto se lhes tinham juntado para atravessarem juntos para a Europa, seguiu para Esmirna, entre a fronteira síria e as margens do Egeu. A viagem custou a cada adulto 550 dólares (cerca de 490 euros). Fizeram três tentativas, mas foram sempre encontrados pela polícia. Tiveram de fugir e esconder-se na floresta. A viagem de barco assustava o pequeno Khalid, que implorava junto do pai: “Tem fé em Deus e vamos voltar para a Síria.” Mas, ao terceiro dia passado na floresta, sem ter o que comer e o que beber, foi ele que disse: “Vamos para o mar e acabamos já com o assunto.” O casal conta tudo isto com um sorriso nos lábios, por vezes a rir abertamente. Como quando falam da viagem num barco insuflado e pequeno que levava 73 pessoas. O que tem tanta piada? “É que só agora nos apercebemos do que fizemos — como arriscámos tanto? O que nos passou pela cabeça?”, diz Znati, entristecendo-se momentaneamente. “Ainda me pesa a consciência por termos feito esta viagem, por termos posto os nossos filhos numa situação tão perigosa. No barco olhava para eles e sentia o meu coração a arder por dentro. Às vezes choro ao pensar que os levei para a morte”, diz. O casal diz que o mar estava calmo quando o barco partiu ao nascer do sol naquele 20 de Fevereiro, que não entrou uma gota de água dentro da embarcação, a abarrotar de mulheres e crianças, e que a viagem decorreu sem problemas durante uma hora e meia, até à chegada à ilha grega de Lesbos. Mas, ainda assim, todos os que seguiam a bordo iam com medo. “O meu filho estava a rezar, agarrei a minha filha no colo, contra o meu peito e tapei-lhe os olhos para que ela não visse nada”, diz Olfet. Quando nos mostra as fotografias a bordo da embarcação de borracha, Khalid junta as mãos e desata em aflição a suplicar: “Alá, Alá, Alá.”
Em Lesbos estiveram apenas uma semana — a descansar da viagem, a ser alimentados, a escolher a Alemanha como destino único devido ao tratamento que lhes tinha sido aconselhado por mensagens telefónicas e amigos. Partiram para Atenas devido à saúde de Olfet, que não fazia diálise há vários dias. Aí disseram-lhes que para aliviar os pedidos de asilo na Alemanha outros países europeus estavam a aceitar refugiados e que em todos os países os tratamentos de saúde eram os mesmos. A mãe de Olfet, que se encontrava com ela em Atenas, quis continuar para a Alemanha pelos seus próprios meios. A família Alkassem percebeu que essa viagem seria difícil dado o estado de saúde de Olfet. “Onde íamos fazer a diálise na Macedónia, na Hungria?”, diz Znati. As autoridades gregas informaram-nos de que poderiam partir para Portugal dentro de uma semana. “O Estado português escolheu-vos”, disseram-nos, lembra Znati, cabeça erguida porque algures no processo burocrático alguém o identificou a ele e à sua família entre centenas de milhares. “Portugal escolheu-nos. Portugal escolheu-nos”, repete várias vezes. Znati diz que na Grécia lhe garantiram que Portugal estava a preparar uma casa para a sua família e que lhes daria os tratamentos de saúde que tanto desejavam. Durante a estadia na Turquia, Znati e Olfet tornaram-se inseparáveis de um casal sírio, Mohammed e Samira, ambos doentes renais e companheiros de Olfet nos tratamentos. Os dois casais, que fizeram a viagem de barco juntos, decidiram em Atenas que viriam juntos para Portugal.
O primeiro encontro no país que os escolheu, a 7 de Março de 2016, foi algo confuso. A casa para onde iam ficava em Guimarães, a quatro horas de distância da capital. Esse foi o primeiro momento de desilusão para a família Alkassem. “Era tão longe [de Lisboa]. Mas pensámos: Ok. Não há problema. O mais importante é encontrar tratamento”, diz Znati. Foram recebidos pelo sírio Omar Hazaa, que vivia em Guimarães desde Fevereiro e se voluntariou para receber os refugiados e falar com eles na sua língua. Omar disse-lhes que iam ter uma vida calma, que seriam bem tratados. Este encontro com um sírio tranquilizou-os. “Sentimo-nos esperançosos porque nos deste as boas-vindas”, diz Olfet, virando-se para Omar. O segundo momento de desilusão chegou quando informaram o casal de que teriam de despedir-se de Mohammed e Samira, que tinham sido escolhidos para viver em Faro. Os amigos protestaram, disseram que não, que não seriam separados, que voltariam para a Turquia se os dividissem. As equipas das duas câmaras municipais contactaram o ACNUR e conseguiram autorização para manter os casais juntos e os sírios seguiram para Guimarães nesse mesmo dia.
“Um frigorífico, 12 pessoas”
Znati e Mohammed estão sentados à longa mesa de cozinha, que tem capacidade para uma dezena de pessoas, enquanto as mulheres, Olfet e Samira, preparam um chá na placa de fogão que lhes foi atribuída, queixando-se de que já é tarde, que têm fome. Znati e Mohammed explicam que hoje não é o dia de serem eles a ir buscar a comida à Santa Casa da Misericórdia, e que portanto podem relaxar. Samira vai ao quarto buscar uma travessa com o pão pita que preparou de manhã cedo, uma das poucas coisas que cozinha. Ao chegarem a Guimarães, as duas famílias sírias foram apanhadas desprevenidas ao perceber que em vez de terem uma casa para cada um, como lhes havia sido prometido na Grécia, iriam viver num antigo lar de idosos onde no total estão 12 refugiados, entre sírios e eritreus, e duas mulheres portuguesas já com alguma idade e que não quiseram deixar a casa. “Eu fiquei surpreendido porque há várias famílias a ficar cá. É um sistema de hotel. Eu não encontrei aquilo que eles descreveram para mim”, diz Znati. Os dois homens sírios levantam-se para exemplificar as dificuldades de partilhar a casa com tantas pessoas. Gesticulam e apontam para um frigorífico pequeno num dos cantos da cozinha: “Um frigorífico, 12 pessoas”, dizem Znati e Mohammed, correndo para o frigorífico que se encontra na outra ponta. “Este frigorífico, Amélia”, continuam, referindo-se a uma mulher de 79 anos que ocupa um dos quartos da casa. O rol de protestos continua. Znati queixa-se de que a bolsa que a família recebe por mês (150 euros por adulto e 75 euros por criança) não é suficiente para os gastos, dizendo ainda que não é justo que as crianças recebam menos dinheiro. Hazaa Hazaa, o sírio que inaugurou, com os dois filhos maiores, o acolhimento de refugiados em Guimarães em Fevereiro de 2016, observa a cena com olhos jocosos, fazendo pouco dos queixumes. “Lá estão eles a queixar-se outra vez”, diz o homem de 49 anos, como se gozasse com estes novatos ainda a habituar-se a um outro estilo de vida.
Quando um grupo de eritreus chega com a comida, as mulheres sírias dispõem as refeições em pratos e travessas, fazendo pequenos cortes no limão ou no tomate para que se assemelhem a flores. As saladas preparadas na Santa Casa da Misericórdia e que misturam cebola com outros vegetais são desmanchadas meticulosamente, cada aro de cebola recolhido individualmente e colocado num prato à parte para ser comido em separado. Olfet serve o marido de arroz de pato — “Znati gosta” — e o casal almoça à mesa de cozinha. Mohammed e Samira querem privacidade e montam uma mesinha improvisada no quarto e sentam-se na cama a comer pão, ovos mexidos, vegetais e atum, enquanto o smartphone reproduz orações islâmicas. Como a escola onde estão a aprender português lhes ocupa as manhãs, as tardes são livres e Znati e Mohammed discutem se hão-de fumar shisha (cachimbo de água com aroma) no grande quintal da casa ou passear até ao castelo, que ainda não visitaram. Vence o passeio pelo castelo, o que constitui um desafio para Olfet e Samira, que são obrigadas a vestir longos casacos de Inverno para ficarem completamente cobertas. As mulheres já pediram tecidos mais frescos para fazerem vestidos para o Verão. Toda a roupa que trouxeram com elas coube em mochilas de criança. A subida ao castelo de Guimarães é feita em dificuldade, mas sem queixumes por parte das duas mulheres que, completamente ruborizadas, apreciam a paisagem, comparam a cidade a Homs antes da guerra e D. Afonso Henriques a Faisal I, primeiro rei sírio após o fim do domínio Otomano depois da I Guerra Mundial.
“Deus abençoe os portugueses”
No regresso a casa, os sírios descalçam-se à porta dos quartos. Em qualquer país árabe, os sapatos devem ser tirados antes de se entrar no espaço da casa. Como a casa destas famílias é o quarto, os sapatos amontoam-se nos corredores. Os Alkassem são a única família com crianças e por isso têm direito a um espaço da casa mais resguardado, no qual há três quartos e uma casa de banho, mas ainda assim sentem que não têm privacidade. Olfet queixa-se de não poder estar à vontade para tirar o hijab sem que a qualquer momento surja um dos homens solteiros com quem tem de partilhar a casa. Mas questões de privacidade e de dinheiro à parte, Znati quer concentrar as suas reclamações no tratamento da mulher. “Nós queremos aquele tratamento que nos disseram que existia na Alemanha ou um transplante. A diálise não faz diferença nenhuma, ela precisa da operação”, diz Znati. O pai de família volta a dizer que Portugal os escolheu. Desta vez, não o diz como uma questão de orgulho, mas de forma a lembrar uma responsabilidade acrescida. “Portugal escolheu-nos, mas agora estamos à espera que nos ajude mais do que aquilo que nos está a ajudar”, diz.
Os técnicos que os apoiam em Guimarães explicam-lhes que a situação é temporária, que Znati tem de encontrar um trabalho para poder alugar uma casa para a sua família. Dizem-lhes que têm de estar na lista de espera para o transplante de rim como todos os portugueses. Explicam-lhes que Portugal lhes está a dar tudo aquilo que tem e que não há dinheiro para mais. Tentam desmistificar as ideias sobre a Alemanha, dizendo-lhes que lá não teriam o calor humano que encontraram por cá. Olfet e Znati concordam neste ponto, dizem que a população os recebeu de braços abertos, que não os diferencia por serem refugiados, que são tratados como pessoas normais e desejam que “Deus abençoe os portugueses” por isso mesmo. Mas voltam ao ponto de partida e insistem no tratamento de Olfet. É comum que os sírios que chegaram à Alemanha enviem descrições idílicas da vida que têm por lá, que façam comparações, que confrontem os outros com a riqueza das suas vidas. O jogo da inveja e da provocação faz-se por mensagens telefónicas, entre os que conseguiram chegar ao Norte da Europa e os que ficaram pelo caminho. “Os irmãos da Olfet estão na Alemanha e não param de dizer: ‘Ó irmã, tens de vir para aqui. Eles aqui vão tratar-te imediatamente. Aqui eles vão levar-te ao colo’”, diz Znati, que admite: “Nós ficamos cheios de ganância.”
É essa ambição de ter o que os outros lhes prometem que teriam caso estivessem na Alemanha que lhes move a insatisfação. A família Alkassem saiu da Síria para que Olfet pudesse curar-se. Porque se Olfet estivesse bem de saúde, talvez conseguissem, melhor ou pior, sobreviver no seu país. A Alemanha surgiu nesta equação como uma resposta a esse problema. E é esse problema que querem ver resolvido em Portugal, o país que os escolheu. É que Znati e Olfet dizem ter muitos sonhos para o futuro, mas só nomeiam um. Regressar à Síria.
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