Estou num café, a meio da manhã, e vejo, na televisão, uma imagem que me faz sentir mal. Era um pai com um bebé com menos de um ano. Estavam os dois agarrados a uma bóia, no meio do mar. O bebé estava quase inanimado. Estavam encharcados, mas era possível distinguir a água do mar das lágrimas. Sou pai de quatro filhos. Ver aquela imagem mudou algo em mim. Senti a necessidade de falar daquilo com amigos. Um deles disse-me, “Mas tu não tens uma carrinha de sete lugares?” “Eu tenho, tu também tens…” Falámos sobre o que estávamos a pensar fazer, conscientes de que íamos chatear muita gente. É que o nosso plano basicamente significava pegar na Convenção de Dublin, amarrotá-la bem “amarrotadinha” e atirá-la para o lixo. [A Convenção de Dublin estabelece que os refugiados devem pedir asilo ao Estado-membro onde chegaram primeiro.]
Falei com pessoas que estavam a organizar outras campanhas de solidariedade, mas nós tínhamos um objectivo diferente. Nós não queríamos apenas levar bens e comida, não queríamos manter as famílias lá, longe, do outro lado do muro. Queríamos atravessar as fronteiras da União Europeia para fazer algo que muitos Estados consideravam ilegal: trazer para Portugal famílias que são iguais às nossas. A Europa, que nos proporcionou momentos de grande liberdade e abertura, está a ir no sentido errado da História. Se eu não tenho liberdade de circular no continente para prestar auxílio humanitário, isso significa que a minha liberdade está a ser restringida. Estão a tirar-me o direito de auxiliar quem precisa de mim. Na primeira aula de Direito Constitucional que tive, o professor explicou a diferença entre a justiça e a legalidade. Fazer o que é justo não pode ser ilegal. Se é ilegal fazer o que é justo, o que está mal são as leis.
“Vamos?” “Vamos!” Partimos uma semana depois.
No dia da partida, não sabíamos ainda quem iria connosco. Na semana anterior, surgiram mais de 100 pessoas que diziam querer juntar-se a nós. Apareceram quatro carros, além do meu e o do meu amigo. Já não foi nada mau. Ao longo da viagem fui-me apercebendo de que alguns iam com ideias românticas e de que outros estavam pouco informados sobre as possíveis consequências de tudo aquilo. Quando chegámos à Áustria, reuni o grupo e fomos falar com dois juristas austríacos que estavam a prestar apoio aos refugiados. 'É impossível.' 'É ilegal.' 'Levar uma família para Portugal? Vocês vão presos.' Era mesmo isso que eu queria que eles ouvissem. Queria que o grupo compreendesse as implicações daquilo que estávamos a fazer. 'Vejam lá bem se estão dispostos a ter problemas com isto, a passar umas noites na prisão, a ter um processo em tribunal durante anos…’ Só o meu carro acabou por trazer uma família para Portugal. Sempre tive consciência de que poderia enfrentar problemas legais, mas tenho a segurança de que não estão preenchidos os requisitos legais para ser condenado por um crime de tráfico de seres humanos – nunca houve nenhuma retribuição financeira, nem intenção de agir com dolo. Acho que isso não vai acontecer. Até hoje não fui constituído arguido. [Contactado pelo PÚBLICO, o SEF diz não ter promovido "ainda nenhuma ação legal relativamente ao cidadão nacional em causa"].
Encontrei o Ali, a mulher e os filhos depois de falar com outras duas famílias que não quiseram vir connosco. Mostrei-lhe uma fotografia da minha família e disse-lhe: ‘Esta é a minha mulher, estes são os meus filhos. Quero que tenhas a mesma vida que eu tenho. Não vos vou abandonar, vou tratar de tudo.’ Ele disse-me imediatamente: ‘Sim.’ Pedi-lhe que tivesse calma e que reflectisse sobre o que tinha acabado de ouvir. ‘Não é preciso pensar. Vamos embora.’ Se eu tivesse um autocarro e tivesse tido tempo para falar com todos os que ali estavam, tinha trazido um autocarro cheio de refugiados para Portugal.
Fomos parados na fronteira entre a Itália e a Áustria por não termos um selo para circular nas auto-estradas austríacas. Não teve nada aue ver com o facto de transportarmos uma família refugiada, mas a partir daí meti na cabeça que não podia parar mais. Depois de sairmos de França só parei quando cheguei a Portugal.
O processo foi muito duro. Tive de tomar comprimidos para conseguir adormecer, perdi quatro quilos, gastei 1000 euros em chamadas, tive a certeza de que o meu telemóvel esteve sob escuta. Recebi mensagens intimidatórias, ouvi um veterano do Ultramar prometer que faria comigo tudo aquilo que “fez aos pretos da Guiné”. Mas, mais do que isso, esta experiência serviu para higienizar as minhas relações sociais. Perdi vários daqueles que considerava amigos. Apesar de isso me ter magoado, acabei por compreender que pela persistência e pelo exemplo chamamos os outros para o nosso lado. Quando decidi que ia buscar famílias aos Balcãs, fui ter com um amigo que julguei ser o primeiro a juntar-se a mim. Nem tinha acabado de lhe explicar o plano e já ele não me olhava nos olhos, “Queres meter terroristas aqui dentro?” Depois, foi obrigado a conviver com o Ali, com a mulher e os filhos. Acabou por me dizer, “Se fosse hoje, tinha ido contigo.”
Eles não faziam ideia onde era Portugal. Conheciam o José Mourinho e o Cristiano Ronaldo, mas pensavam que Portugal era em Espanha e que falávamos todos francês. O Ali, mal entrou no carro, começou a anotar os nossos sons e as expressões que utilizávamos. Quando chegámos a São Martinho do Porto e eu os ia visitar, ele dizia-me: 'Ten minutes.' Eu já sabia que isso significava ficarmos duas horas às voltas com o português. Agora estão numa casa cedida pela Junta de Freguesia de Ovar. Eles chegaram a Portugal um mês depois de o irmão de Ali ter ido para a Alemanha. O acolhimento do irmão não teve qualquer comparação com o carinho que receberam aqui. Os portugueses acolheram-nos muito bem, de forma muito gentil. Mas agora estão a passar por dificuldades porque como não têm o estatuto de refugiado não têm uma rede de apoio. O irmão está a refazer a vida na Alemanha, recebe um subsídio todos os meses. Eu ainda não durmo absolutamente descansado, continuo preocupado com eles. Apesar de o Ali trabalhar e pagar impostos, a família tem um rendimento disponível que ronda os 500 euros, já pagando impostos e Segurança Social. Se eles tivessem chegado a Portugal através de uma organização, teria sido mais fácil. Isto é algo que me desilude profundamente no nosso país – como é que não damos estatuto de refugiados a pessoas que traziam apenas uma mochila de criança com três ou quatro peças de roupa? Mas eu não me arrependo. Se eu tinha alguma dúvida antes de ir, perdi-a depois de conviver com eles todos os dias durante um mês e meio. Eu inventei aquela coisa de 'famílias como as nossas' porque essa era a minha convicção. Mas depois de estar com eles… São mesmo! São mesmo famílias como as nossas.
Muitos terão pensado que agi de forma altruísta, mas não. Eu fiz isto porque tenho medo do contrário disto. Tenho medo que de hoje para amanhã cada um se feche na sua casa, agarrado às suas coisas – ‘Tu precisas, eu tenho mais do que tu, mas não te vou ajudar.’ Tenho medo das consequências disso: ‘Hoje estás tu por cima, amanhã vou eu estar por cima e vou-me vingar.’ Nós recebemos dos outros aquilo que lhes damos. Esta lógica da Europa-fortaleza, esta ideia de que uma união com 500 milhões não pode acolher um ou dois milhões que fogem à guerra, é profundamente errada e perigosa. Para a Europa e para os meus filhos.
Atravessei a Europa para ajudar famílias em perigo por causa dos meus quatro filhos. E por causa do meu avô. O meu avô nasceu analfabeto, ensinou-se a ele próprio a ler e a escrever, aprendeu Matemática sozinho e depois ensinou os outros. Mas sofreu muito em Portugal. Nos anos da Guerra Civil de Espanha, o Estado Novo tirava ao povo para fornecer as tropas de Franco. O meu avô sentia-se limitado aqui e um dia decidiu que aquela vida não era vida. Entrou num barco em Dezembro e partiu para os Estados Unidos. Sem documentos, sem dinheiro, sem saber falar uma palavra de inglês. Sem a mulher, que ficou, grávida, em Portugal. Esteve a morrer ao frio em Boston até encontrar um estranho com quem não voltou a cruzar-se, mas que lhe mudou a vida. Era um falsificador de documentos e deu-lhe dinheiro, um casaco, uma morada e meteu-o dentro de um comboio. No dia seguinte o meu avô estava a trabalhar com papéis falsos. O meu pai só conheceu o pai aos oito anos de idade, mas foi a primeira pessoa a poder estudar em Lisboa e a ter um trabalho qualificado. Há muita coisa que eu devo àquele estranho. O meu avô não se conformava com as imposições legais, infringiu um conjunto de regras, mas acabou por participar em algo muito maior do que ele. Fez parte da libertação da Europa na Segunda Guerra porque trabalhou na marinha mercante nos comboios que abasteciam o continente europeu. Esteve em Hiroshima em 1946. Quando regressou a Portugal, ajudou muita gente a emigrar, emprestando-lhes dinheiro.
Um dia os meus filhos podem ter de fugir da Europa e eu quero que alguém lhes abra a porta. Como alguém abriu um dia ao meu avô.
Depoimento recolhido por Catarina Fernandes Martins
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