É um afamado homem de negócios. E um europeísta convicto com um interesse especial por migrações. Foi comissário europeu durante a primeira presidência de Jacques Delors e, nessa categoria, propôs o programa Erasmus, que começou por incluir apenas a mobilidade de estudantes universitários dentro da União.
Nascido na Irlanda há 70 anos, Peter Sutherland desdobra-se em funções. É representante especial das Nações Unidas para as Migrações e o Desenvolvimento. Foi um dos criadores do Fórum Global sobre Migração e Desenvolvimento. Preside à Comissão Internacional Católica para as Migrações.
Parece-lhe que nada tem tanto potencial de transformar a vida como a migração. E está preocupado com o rumo da Europa. Não é só a ascensão de partidos populistas nacionalistas. Até políticos tradicionais adoptarem retórica anti-imigrante na ânsia de conquistar eleitores tomados pelo medo do “outro”, do que é diferente, sobretudo do que é extracomunitário, do que é muçulmano.
Peter Sutherland esteve no Porto a participar numa reunião do Global Advisory Board da Sonae, traduzível por Conselho Consultivo Internacional. No fim da reunião, já com a mala trolley na mão para seguir para o aeroporto, sentou-se numa sala do Palácio da Bolsa a conversar sobre a crise dos refugiados.
Esteve na Grécia há pouco. Em nome das Nações Unidas, quis agradecer ao primeiro-ministro Alexis Tsipras o que a Grécia está a fazer pelos refugiados?
Sim. Estive com o primeiro-ministro, o ministro das Migrações e o presidente da Câmara de Atenas. A Grécia está a enfrentar um grande desafio. Dentro das suas fronteiras, há cerca de 56 mil migrantes encurralados. Isso está a acontecer porque na fronteira, a começar pela Macedónia, há vedações. Isto é um problema que a Europa está a tentar empurrar para a fonte. O problema dos migrantes, e acima de tudo o dos refugiados, é um problema que todos estão a tentar empurrar.
Desde 2011, mais de quatro milhões de sírios fugiram do país. A Jordânia acolhe mais de 600 mil, o Líbano mais de um milhão, a Turquia mais de 2,7 milhões…
E, dentro da União Europeia, temos a Grécia e a Itália. Eu penso que é tarefa das Nações Unidas sublinhar que, em particular no que diz respeito aos refugiados, há uma responsabilidade global. Neste momento, nem dentro da UE estamos a mostrar solidariedade. Na Europa Central e na Europa de Leste, em particular, há relutância em aceitar refugiados. Isto é muito evidente na Eslováquia, na Hungria, na República Checa, na Roménia.
Estive há semanas na Eslováquia e ouvi muitas vezes dizer que a responsabilidade de receber quem foge à guerra não cabe aos eslovacos porque não colonizaram país algum, tão-pouco bombardearam o Afeganistão, o Iraque ou a Síria. Como pode entender-se este tipo de discurso?
Não se pode. Eu não posso entender esse discurso. Não posso entendê-lo do ponto de vista humanitário, nem do ponto de vista comunitário. A UE tem por base a solidariedade. É a solidariedade que está na origem dos fundos estruturais que chegam a países como a Irlanda ou Portugal ou a Eslováquia. Essas pessoas recusam-se a partilhar o problema até com a Grécia e a Itália. É muito preocupante que alguns tenham dito que aceitariam cristãos, mas não aceitariam muçulmanos, como se vivêssemos no tempo das Cruzadas. Vivemos num tempo em que há um desafio humanitário que temos de partilhar. Recusar essa partilha é recusar os valores da União Europeia. Não podemos ser diplomáticos neste assunto. É preciso enfrentar aqueles que desejam viver numa fortaleza. Não há obrigação de aceitar imigrantes económicos, mas há obrigação moral e legal de dar asilo a quem foge da guerra ou de alguma forma de perseguição.
Concorda com o acordo entre a União Europeia e a Turquia, que prevê o retorno de quem atravessar o mar Egeu pelas rotas clandestinas?
Não me vou pronunciar sobre os vários aspectos desse acordo. Isso é muito complicado. Vou apenas dizer que concordo com o princípio básico: os imigrantes económicos que tentam entrar ilegalmente na União Europeia não têm direito de ficar. Parte do acordo passa por substituir imigração ilegal por imigração legal [por cada imigrante clandestino enviado da Grécia para a Turquia será enviado um refugiado da Turquia para um país da UE]. Isto tem de ser parte da solução. Ter uma política europeia comum é a única maneira. Reconstruir fronteiras internas, que foram removidas, é uma loucura.
Tem dito que o fim do tratado de Schengen seria um desastre…
Para mim, é até ridículo pensar nisso. A mais recente pesquisa mostra que custaria mais de 70 mil milhões reconstruir as fronteiras internas. A nobreza da União Europeia é travar o nacionalismo. Em diversos Estados-membros o nacionalismo está a ressurgir e isso é tóxico. Para lá da preocupação com os migrantes, tenho grande preocupação com a própria alma da Europa.
Como explica o crescimento de sentimentos nacionalistas e xenófobos?
Creio que há várias explicações. Talvez o processo de globalização assuste as pessoas. Não é só na Europa que isto está a acontecer. Veja-se, por exemplo, o amplo apoio de Donald Trump [que deverá ser nomeado candidato do Partido Republicano à Presidência dos Estados Unidos]. As pessoas têm um sentido de identidade nacional que é forte. É preciso explicar-lhes que a migração não é uma ameaça à sua identidade, que a migração é uma expressão da sua verdadeira identidade.
São só alguns Estados-membros que estão a falhar ou é a União Europeia, como um todo, que está a falhar?
Quando se diz que a União Europeia falhou na resposta à crise dos refugiados, não é, na minha opinião, que tenha falhado como um todo. Não foram as instituições europeias, mas alguns países que falharam. O Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Junker, propôs partilha de responsabilidades no ano passado [a recolocação de 160 mil candidatos a asilo encurralados na Grécia, na Itália]. Alguns países portaram-se mal [a Hungria, a Eslováquia, a Roménia e a República Checa, por exemplo, opuseram-se ao sistema de quotas proposto por Bruxelas e sugeriram blindar a Grécia]. Alguns países portaram-se muito bem, como a Alemanha [que já acolheu cerca de um milhão de refugiados no ano passado]. Eu sei que, às vezes, os refugiados só querem ir para países que têm uma economia mais dinâmica, mais emprego, mais hipóteses de integração social…
Há esse debate em Portugal, que se dispôs a receber cerca de dez mil — mais do dobro dos 4486 definidos no âmbito do acordo europeu de recolocação de requerentes de proteção internacional — e, até agora, recebeu menos de 400...
Sim. O meu país, a Irlanda, também diz que se preparou para acolher mais refugiados do que aqueles que estão dispostos a ir para lá. Acho que devem ir lá vender-se. Por exemplo, os canadianos mandaram 450 funcionários do serviço civil ao Líbano falar com as pessoas, explicar-lhes o que é o Canadá, o que tem para oferecer, ajudar a tratar dos processos de reinstalação. Eles são pró-activos.
Dentro da União, muito poucos foram recolocados até agora [os últimos dados da Comissão Europeia apontam para 2280 até 10 de Junho, desde que se acordou recolocar 160 mil]...
Os países têm de perceber que para isto funcionar é preciso ter políticas que façam isto funcionar. Precisamos de uma política europeia mais coerente. Temos de lutar contra a desintegração, que seria um desastre.
Em Setembro haverá uma sessão da Assembleia Geral da ONU sobre o tema das migrações e do desenvolvimento. O que se pode esperar?
O encontro, que decorrerá na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, durará dois dias seguidos [14 e 15]. Nós entendemos que é preciso definir um novo modelo para o futuro, para não estarmos limitados a reagir a situações de emergência, termos capacidade de focar uma crise e de responder da forma adequada. Tem de haver um fundo global ao qual se possa aceder em vez de se andar a correr atrás dos Estados-membros, como se está a fazer agora. O Programa Alimentar Mundial, a espinha dorsal do sistema de refugiados, está sob pressão [obteve dois terços das necessidades de financiamento em 2015]. Estamos a ficar sem dinheiro para alimentar as pessoas.
Que mais está em cima da mesa?
A reunião irá incidir em formas de reduzir as dificuldades e de maximizar os benefícios das migrações para o desenvolvimento. Uma percentagem cada vez maior de trabalhadores que estão a mudar-se para países desenvolvidos tem habilitações superiores, e, sem migrações, a população activa do mundo desenvolvido diminui drasticamente. Veja o caso de Portugal. Está muito envelhecido. [A taxa de fecundidade é uma das mais baixas do mundo.] Tem 136 maiores de 65 anos por cada cem menores de 15 anos. Sem um novo influxo, em 25 anos o interior estará vazio. É um problema que existe em vários países da União Europeia. Precisamos de pessoas.
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