Estudei Direito e isso ensinou-me a olhar para a realidade de forma simplificada. Na lei, nada é dúbio. Cumpres a lei ou não cumpres a lei, é crime ou não é crime, as pessoas são boas ou as pessoas são más. Quando estás no meio da maior crise do momento, essa forma de ver o mundo não serve. Nada é preto no branco. Uma das coisas que compreendi com esta experiência foi que por detrás do altruísmo de querer ajudar há muito narcisismo. E isso leva-te a uma espiral. Pensas, ‘Se calhar nenhum altruísta é totalmente altruísta’; ‘mesmo o maior narcisista tem traços de altruísmo’; ‘se não houvesse narcisistas, será que haveria tanta gente a ajudar?’
E depois viras-te para dentro de ti. Às vezes pensas que és de uma determinada maneira, fazes uma certa ideia de ti própria e num momento de tensão… Começas a pensar: ‘Será que sou mesmo capaz? Passei a vida a dizer aos outros que eu era assim e afinal…’ É assustador! Eu sempre me vi como uma pessoa altruísta, mas, em determinadas situações percebi, ‘se calhar tenho uns traços que não são só altruístas’. Eu questiono-me muito, estou sempre a questionar-me. Naquelas duas semanas questionei-me tanto… ’Será que as minhas motivações foram mesmo puras?’
A cabeça pensava tanto, estava tão acelerada. Havia sempre tantas coisas para fazer, tantas coisas para resolver. A adrenalina era enorme e não me deixava dormir. Não dormi durante dias, mas nunca me senti cansada. Vives como se estivesses num filme. Parece que nada é muito real – impressionas-te muito, mas ao mesmo tempo ganhas uma distância tal que é como se aquilo fosse ficção, como se não existisse.
Apercebi-me de que era necessário ter uma estrutura emocional muito forte para conseguir viver com esses níveis de adrenalina sem te sentires invencível, para poderes descer à terra. Passou-me pela cabeça que, se eu fizesse disto a minha vida, era provável que me perdesse. O voluntariado sempre me atraiu e sempre me assustou. Aguenta-se, aguenta-se, mas vou ser honesta: eu não conseguia viver assim! O processo de ajudar o outro pode ser autodestrutivo. Tu vais para ajudar, mas pelo caminho talvez percebas que vais para preencher uma insatisfação tua. Vais para te salvar, tentando salvar os outros.
E as pessoas que se conhecem… Havia uma mulher croata que tinha criado uma organização para ajudar. Ela era imparável. Tinha sido combatente na Guerra da Bósnia e cheguei a ouvi-la e aos amigos dizer: 'Nunca fomos tão felizes como quando estávamos na guerra.' Ela tinha saudades de ouvir as bombas. E eu às vezes olhava à minha volta e sentia que conseguia identificar os vazios existenciais que nos levavam a todos ali.
Quando voltámos, o grupo não conseguiu desligar. Continuámos a trocar mensagens por WhatsApp a toda a hora. 'E se fizéssemos isto?” “E se fizéssemos aquilo?” “Aquele carregamento que deixámos na Cruz Vermelha podia ajudar alguém.’ Eu pensava: ‘Tenho de voltar à normalidade.’ Aquelas mensagens a certa altura funcionavam como terapia de grupo. Continuei a dormir mal durante muito tempo. Vinham-me todas as imagens à cabeça. Achei que ia gostar de voltar, mas com o tempo não voltei a pensar nisso. Talvez haja pessoas que acham que tudo o que fazem tem um grande impacto, mas eu sou o oposto. Mesmo tendo consciência de que ajudaste, sabe-te a pouco. Esta crise tem dimensões tão complexas e o que tu fazes é uma pequena parte de tudo o que é necessário. Montas uma operação destas e pensas: ‘Somos capazes de fazer coisas incríveis.’ Mas por mais que faças, parece sempre que é uma gota de água.
Aquilo que mais me marcou foi encontrar a bondade verdadeira em algumas pessoas. Eu sei que as tragédias existem, sei que o sofrimento existe – a maldade eu já espero. Mas vi famílias inteiras, pessoas de todas as classes sociais, mobilizarem-se e ajudarem mesmo. Os portugueses não pensam no longo prazo, não pensam de forma estratégica, mas somos exactamente isto que mostrámos durante o pico da crise dos refugiados. E depois as crianças. Temos uma empatia enorme para com as crianças. A imagem daquele miúdo… [Inês refere-se às imagens do corpo de Aylan Kurdi, o menino sírio de dois anos que deu à costa numa praia da Turquia depois de o barco onde seguia ter naufragado. A caravana de solidariedade em que Inês participou utilizou o nome da criança] Então, mobilizamo-nos de um dia para a noite e vamos, como malucos. O nosso grupo – nós nem avaliámos bem – éramos sete e fomos sem destino, confiando apenas que no final tudo se resolveria.
Mas eu acho que Portugal não foi ainda testado verdadeiramente. Não como os alemães e como os suecos que recebem milhares e milhares de refugiados e convivem com eles todos os dias. Por isso, dizer que os povos do Norte são mais frios… às vezes não é bem assim.
Eu tinha oito anos quando Portugal entrou na União Europeia e a União Europeia era um sonho. O choque que estamos a viver agora começou antes, com a crise financeira. Foi aí que começou a ruptura. O Norte, o Sul… agora isto. Eu não deixei de acreditar na Europa, ainda acho que isto é a melhor sociedade que existe, mas muita coisa vai ter de mudar. Continuo com fé de que isto vai correr bem. Mas, como cidadã europeia, não consigo deixar de sentir vergonha pelo que estamos a fazer aos refugiados.
Depoimento recolhido por Catarina Fernandes Martins
Comentários