As águas do Potomac estão revoltas. É o último dia de Dezembro e sopra um vento gelado que parece vir da nascente do rio, 280 quilómetros a Oeste, e contraria o curso do caudal que segue para a grande baía de Chesapeake, a Sul de Baltimore, no estado vizinho do Maryland. Anda pouca gente pelas ruas na capital dos Estados Unidos em véspera de novo ano e a 20 dias de a Casa Branca mudar de residente. No National Mall, o amplo parque junto ao rio, imenso átrio ao ar livre para onde converge o poder da nação, as cerejeiras que em Abril estavam cobertas de flores brancas e rosa surgem agora despidas e os ramos são linhas a recortar o céu, como raios negros em fundo azul. Não há sinal de chuva, muito menos da “borrasca” com que arranca Washington D.C., o primeiro romance de sete da série Narrativas do Império, da autoria de Gore Vidal, ensaísta brilhante, escritor das grandes intrigas, das conspirações, dos subterrâneos e da mundanidade do poder da capital, o homem que afirmou: “Metade dos americanos nunca leu um jornal, metade dos americanos nunca votou para um Presidente. Espero que seja a mesma metade.”
Do interior do táxi olham-se as ruas largas, vislumbra-se a silhueta dos prédios e dos bosques na outra margem do rio, fronteira natural com o estado da Virginia. Não chega ruído do exterior, há um silêncio de frio e vem à mente uma imagem do romance de Vidal, ideia de calor a confirmar que esta é uma terra de contrastes e estações bem vincadas. Nessa imagem, um senador circula pela cidade, mas no Verão. Chama-se James Burden Day e é central na intriga. “Burden olhou pela janela do carro e observou os poucos que se aventuravam na rua, com aquele calor, andando devagar e tentando não transpirar; e o mero facto de os observar de dentro da relativa frescura do carro fê-lo sentir calor.” Fora da ficção, ao ver umas poucas pessoas encolhidas, mãos na cabeça a garantir que o gorro não foge, acontece um arrepio.
Guterres em Washington D.C.
Tudo era ameno em Abril quando Walid Issa pediu um cigarro à porta de um hotel. Moreno, barba por fazer, fato sem gravata, camisa branca, aparentava uns 30 anos, talvez menos. Não tinha o sotaque que Gore Vidal descreve como o de Washington D.C., “vogais lentas e longas e consoantes rápidas e indistintas”. Bebia um copo no bar e apeteceu-lhe fumar. Em quase todos os lugares da América, o início de conversa entre dois estranhos pode ser muito fácil. Quando percebe que o interlocutor é português, Issa fala em António Guterres. O ex-alto-comissário para os Refugiados acabara de se apresentar como candidato a secretário-geral da ONU, numa altura em que uma das perguntas mais frequentes de um americano quando percebe estar perante um europeu é: “E, então, como vai a Europa com a crise dos refugiados?” Walid Issa também se apresenta. É palestiniano, nascido num campo de refugiados e foi “adoptado” — expressão dele — por um casal americano, depois de ter assistido ao assassínio do seu professor. Tinha 16 anos. Levaram-no para o Minnesota e deram-lhe acesso a educação universitária nos Estados Unidos. “Tive sorte. Os meus pais e o resto da minha família continuam lá”, conta.
Estão em Deheishe, a Sul de Belém. Criado em 1949 para acolher temporariamente 3400 palestinianos refugiados da guerra israelo-árabe de 1948, o campo continua activo mais de seis décadas depois; aumentou de área e de população, tem agora mais de 13 mil habitantes. “Estou em Washington a fazer lobbying”, afirma Walid Issa. “Sou lobbyista pela paz naquela terra, que é a minha. Há muita gente da minha geração e da dos meus pais que não sabe o que é viver fora de um campo de refugiados”, continua, o cigarro a gastar-se entre os dedos e a outra mão a entregar um cartão com o seu nome e a informação de que faz parte da Shades, organização que junta estudantes palestinianos e israelitas e quer “treiná-los” para a paz. Issa também ajudou a fundar o SAWA, site que através de crowdfounding ajuda qualquer pessoa que esteja a viver na Palestina ou em Israel a desenvolver projectos empresariais ou artísticos. A intenção é quebrar barreiras geográficas e “trabalhar em função do desenvolvimento futuro de uma região”, explica. “Washington é um sítio estratégico para conseguir apoios”, diz Walid Issa, que já foi distinguido no Minnesota pelo esforço e resultados académicos.
A sua história tem sido contada como um caso de sucesso em todo o mundo. Encontrá-lo à porta de um hotel de Washington a pedir um cigarro foi um acaso, mas, como ele diz, “um acaso com mais hipóteses de acontecer ali, segundo a teoria do jogo”, de que se diz especialista, e se aplica também ao jogo de interesses. Mesmo os de paz.
Walid Issa tem agora 28 anos. Mas tinha a idade de Peter Sanford, alter-ego de Gore Vidal em Washington D.C. (Casa das Letras, 2010), quando percebeu que ser do Médio Oriente — “Oriente de quê?”, interroga num tom jocoso — era entender de modo muito diferente aquilo que o Ocidente e os políticos em geral chamam de “processo de paz”. Walid cresceu entre a violência. Peter no mundo privilegiado dos decisores num país que se estava a autodefinir como um império desde o período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. Peter, tal como Gore Vidal. No mundo protegido de Rock Creek Park, mansões entre árvores em ruas sinuosas, entrecortadas por rochas por onde correm riachos e os esquilos espreitam sem grande curiosidade. Passa um carro muito de vez em quando, um ou outro corredor solitário. Vidal passou ali parte da infância, no número 1500 de Broad Street Road, agora embaixada da Malásia. Era a casa do avô materno, o senador democrata do Oklahoma Thomas P. Gore, com quem aprendeu a gostar de livros e de História. “O meu avô sabia muito acerca de tudo. Não sei como nem quando aprendeu tanta coisa, mas tinha uma invejável bagagem de conhecimento. Era enciclopédico, sobretudo em história clássica e história da América. Para mim, foi um exemplo”, disse Gore ao seu biógrafo, Jay Parini. “Aprender coisas e lembrar-se delas.” Note-se que Thomas P. Gore era totalmente cego. O neto cresceu com ele, entre o luxo, a intriga política e as constantes zangas dos pais; amante de cinema e de literatura. “A minha vida parecia um tipo qualquer de alucinação”, confessaria.
Quando a ficção é a história
De Rock Creek Park, é difícil imaginar que há uma cidade grande mesmo do outro lado. D.C., como é simplesmente tratada a capital entre os americanos, iniciais de Distrito de Columbia, é o 51.º estado, distrito federal, metrópole com cinco milhões de habitantes, enclave entre o Maryland e a Virginia. É governada directamente pelo Congresso e os seus eleitores são os únicos a não eleger representantes com poder de voto para o órgão legislativo dos Estados Unidos. É a cidade que George Washington mandou construir para capital da Confederação. Seria geograficamente central em relação aos 13 estados que em 1776 se tornavam independentes da coroa britânica. Quando Alexis de Tocqueville a visitou, no início dos anos 30 do século XIX, já lhe notou a falta de centralidade. “A cidade de Washington foi fundada em 1800, em pleno centro da União; mas foram tantas as mudanças que fica agora numa das extremidades e os delegados dos mais remotos estados a oeste são obrigados a fazer uma viagem tão longa quanto a de Viena a Paris”, escreveu no seu Da Democracia na América, livro que resultou de uma viagem de nove meses, a pedido do Governo francês, com o objectivo de estudar o sistema prisional americano.
Nessa altura, a cidade não chegava aos 40 mil habitantes. Cem anos depois, quando decorre a acção de Washington D.C., entre 1937 e o final da década de 40, tinha 450 mil. Uma das personagens centrais do romance de Vidal, Clay Overbury, fala dos seus “lentos costumes sulistas” e acha-a provinciana. “Clay nunca recuperara da surpresa que sentira ao descobrir que Washington não era uma cidade mas uma vila. À excepção dos enormes e pretensiosos edifícios governamentais, as ruas eram agradavelmente familiares até para um olhar provinciano.”
Sede do poder executivo, legislativo e judicial, do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e da Organização dos Estados Americanos, é retratada de forma ambígua, sarcástica e cínica por Gore Vidal, nascido Eugene Luther Gore Vidal a 3 de Outubro de 1925, único filho de um casal que parece nunca ter-se amado e que acabou por se separar depois de uma história de muitas traições. Sabendo do meio onde vivia, não é difícil imaginar o pequeno Gore, com oito anos, a espreitar a parada oficial da tomada de posse de Franklyn D. Roosevelt a partir da janela do Willard Hotel. Como o avô, tanto admirava como detestava o Presidente. Conta Vidal sobre as conversas em Rock Creek Park: “O meu avô era um mestre de cerimónias, mas convencia sempre qualquer pessoa na sala de que ele estava certo e, sem dúvida, Franklyn Roosevelt estava errado.” Nesse dia de 1937, viu o novo Presidente e pensou em Abraham Lincoln e em como tudo teria sido em 1861. Muitos anos depois, ficcionou a cena num dos seus romances mais conseguidos, Lincoln.
Era o dia 4 de Março de 1861 e o narrador coloca-nos ao lado de John Hay, secretário pessoal de Abraham Lincoln, uma das figuras centrais do romance. Falava de um zumbido, de uma vibração que se sentia no passeio em frente ao Willard Hotel. “John Hay sentia como se ainda estivesse no interior de uma carruagem enquanto atravessava a multidão de pessoas — a maioria de cor, notou — que estava a um passo de poder ver Mr. Lincoln, que não estava visível...” Sem a Guerra Civil, escreveria Gore Vidal na introdução à edição revista de Washington D.C., “não temos História”. Esse nós é a América.
Se Gore Vidal espreitasse 2017
Não há ninguém no passeio, mas o Willard Hotel continua lá, com vista privilegiada para a frente da Casa Branca. São vizinhos na Pennsylvania Avenue. Precisamente 80 anos depois dessa visão de Roosevelt a partir da janela, outro Presidente irá tomar posse. Os palanques já estão montados, a avenida cortada, o asfalto novo pintado de fresco e a segurança reforçada. Há um sossego que contrasta com os dias de Abril e quase todos os outros dias do ano, romarias de turistas, câmaras de cadeias de televisão apontadas à Casa Branca, vários grupos de protesto.
Ouviam-se sobretudo os veteranos da Guerra do Vietname e umas associações de defesa de animais. Com um altifalante, um homem de óculos, fato escuro e livro na mão tentava catequizar para uma religião nova. No primeiro dia de 2017, ninguém reparou numa garrafa de champanhe vazia, num canteiro, a escassos metros da zona. Os turistas confundem-se com os seguranças. Há famílias a tirar fotografias de grupo. Uma criança salta para as cavalitas do pai e grita baixinho “yes, we can” [palavras de Barack Obama].
Um mendigo dorme no relvado do jardim em frente, aproveitando o sol da tarde, e um homem toca trompete sentado no degrau de um prédio virado para o novíssimo hotel com a marca Trump, também na Pennsylvania Avenue, número 1100, antiga sede dos correios de D.C. e nem aí há os protestos de dias anteriores. Duas fiadas de grades indicam agora uma zona privada junto à estátua de Benjamin Franklin, o diplomata, filósofo, jornalista, abolicionista, um dos “pais da nação”.
Um homem de farda cinza confirma a uma mulher que passa que sim, aquele é o novo hotel de Donald Trump, inaugurado durante a campanha, o que gerou mais comentários de conflito de interesses entre o empresário e o candidato a Presidente. Ela hesita em fotografar. Sorri para o homem e os dois distraem o embaraço noutro músico. Está mesmo na esquina do hotel com um colete de guerra que parece cheio de munições e entoa melodias de Natal num saxofone enquanto uma limusina deixa clientes na entrada, discretamente lateral. Tudo se passa na Pennsylvania Avenue e, não fosse a rede de vedação a delimitar a zona de cerimónias para 20 de Janeiro, via-se até muito longe num lado e no outro.
O que diria ou pensaria Gore Vidal se estivesse na mesma janela do Willard a 20 de Janeiro de 2017? Democrata, duas vezes candidato a cargos políticos, Gore nunca foi suave com os seus pares. Apoiou Barack Obama contra Hillary Clinton nas primárias de 2008, mas pouco depois confessava-se desiludido, acusando-o de falta de experiência. Era antiexpansionista, opôs-se a intervenções militares fora do país e causou escândalo com o romance A Cidade e o Pilar (original de 1948), onde o protagonista era um homossexual, como ele. Acreditava que o assumir da sua sexualidade o impedira de se candidatar a altos cargos políticos, incluído à presidência. Nunca se saberá se o terá afirmado por provocação ou convicção. Talvez pelas duas coisas. “Estaria horrorizado”, afirma ao P2 Jay Parini, que além de biógrafo e amigo foi executor testamentário de Gore, após a sua morte em Julho de 2012, aos 86 anos, vítima de pneumonia. “Ele era um liberal, mas suspeitava de todos os políticos. Mesmo de Obama, que no fundo admirava. Isso mesmo, estaria horrorizado com Trump, um arruaceiro ignorante e um mentiroso patológico. Trump, como Gore haveria de dizer, é um sociopata.”
Não se ouve falar de política nas ruas de D.C. Donald Trump e Barack Obama são personagens centrais mas como que invisíveis. A cidade prepara-se silenciosamente para a mudança quando o ano também muda. É inevitável não ir anotando contrastes. Na Primavera, com as primárias a decorrer, havia cartazes, slogans, apostas. Ao volante do seu Uber, nos 42 quilómetros do percurso entre D.C. e Dulles, um dos três aeroportos que servem a cidade, Joseph, 63 anos, apostava que no fim ganharia Bernie Sanders. “Pode crer. Quer selar a aposta?”, desafiava. Num hotel, um grupo de islandeses em pausa de um congresso fazia uma espécie de concurso de apostas entre copos de cerveja. Seria Hillary, “porque tinha de ser”. Rodrigo, estudante colombiano em Georgetown, dizia que não se falava muito de política, mas sentia algum entusiasmo por Sanders entre os colegas da universidade. “Assusta-me que Trump possa ser o candidato republicano, mas eu sou estrangeiro. Não sei se é por isso, por temer consequências externas”, dizia num inglês sem sotaque enquanto seguia para um bar no centro de Washington em noite de sábado. No último dia de 2016 e no primeiro de 2017, estas vozes, já passadas, têm uma toada parecida com a ficção histórica de Gore Vidal quando, por exemplo, escreveu em Washington D.C. que “as notícias são ficção e a ficção, muitas vezes, é a história”.
Ler as suas descrições da aristocracia — e do ambiente de Washington D.C. nos períodos pré-Guerra e pós-Guerra — é entrar na História pela via da ficção através do que o escritor apelida de “histórias exemplares”. E que tem como base a sua história pessoal. Desde logo esse sentido de aristocracia que ele não rejeita e tentou explicar desta forma por contraste com o modo de ser americano e dando como exemplo o namorado rico da mãe, Hugh D. Auchincloss, um dos herdeiros da Standard Oil, a quem chamavam Hughdie e era incapaz de qualquer tipo de trabalho. “Desde que a classe dirigente americana, antes e agora, começou a gostar de dar a impressão de que está sempre com muito trabalho ou pelo menos muito ocupada, a preguiça de Hughdie foi uma espécie de inovação. A palavra ‘aristocrata’ nunca é usada pelos nossos dirigentes, mas ele actuava suspeitosamente como um; era inerte de uma forma estrangeira”, pode ler-se na sua biografia. Gore nunca gostou dele e fê-lo personagem de um dos seus livros, The Season of Comfort (1949).
Uma América em mudança
“Gore é de D.C. e o seu avô foi um famoso senador dos Estados Unidos. Ele conhecia a política de dentro. Entendia as ambiguidades do poder. Também era cínico em relação ao poder: via como os homens (eram geralmente homens) com grandes egos manobravam para ter o controlo. Ele era céptico até em relação a F.D.R. [Franklyn Delano Roosevelt], que ele via como um homem sedento de poder, não obstante ter feito muitas coisas boas”, referiu ao P2 Jay Parini, poeta, romancista e autor de Empire of Self (2015), a biografia de Gore Vidal. “Sim, era profundamente cínico em relação a Washington e às motivações dos políticos. Tudo isso está presente nos seus sete livros sobre a história política da América”, precisa Parini.
Não é coincidência que tenha início na presidência de Roosevelt a América apresentada como um país em mudança. “De um dia para o outro, passou a ser um dado adquirido que, sem plano prévio e por desígnio divino, o império americano existia para governar o mundo. ‘Não é que queiramos o mundo’, resmungavam os magnatas, enquanto deitavam a mão a bases e rotas de negócios, mas quem mais é capaz de parar os nazis e os japoneses? Quem mais consegue manter a paz pela guerra?” Estamos agora na cabeça de Peter Sanford tal como a criou Gore Vidal nesse primeiro romance de um projecto maior onde se propunha tentar perceber como é que uma república se tornou um império. “Prefiro uma república imperfeita ao império assassino que teve início em 1898 [guerra hispano-americana]...”, escreve na introdução de Washington D.C., onde se destacam as figuras de Clay Overbury, herói de guerra, bonito, popular, aspirante a Presidente e que os democratas, críticos do livro, associaram à imagem de John F. Kennedy. E, claro, Peter Sanford, filho de uma família influente que será recorrente nos sete romances das Narrativas do Império: além de Washington D.C., Burr, 1876, Império, Hollywood, Lincoln e o livro que ata todas as pontas, A Idade do Ouro. Em Washington D.C., Vidal percorre as consequências da política do New Deal, resposta do então Presidente Roosevelt para revigorar económica e socialmente o país no pós-Depressão, o modo como os Estados Unidos entraram e saíram da Guerra numa atitude que o escritor considerou imperial. A transformação do país reflectiu-se na transformação da cidade. Estamos outra vez com Clay, recém-chegado e observador atento aos costumes. Na base da Colina do Capitólio, chamou um táxi. O motorista era um falador compulsivo que nem por um segundo se preocupou que Clay não fosse um bom ouvinte, em particular quando o assunto era ‘pretos’, uma obsessão típica de Washington. Ao que parecia, eles estavam a inundar a cidade, vindos do Sul e, como resultado, já não era seguro andar na rua a pé.”
Era o final dos anos 1930. Em 2015, segundo o Census, 48% da população de D.C. era afro-americana, ficando os brancos nos 41%, os asiáticos com 4% e os “ameríndios” com 0,6. Os brancos são, de facto, a maioria, desde a década de 50, mas estão a decrescer. Pertencem sobretudo às classes média e baixa e estão a mudar-se para os subúrbios, incapazes de suportar as rendas do centro, que nos últimos anos está a ser alvo de gentrificação.
Estamos na quarta maior economia metropolitana dos Estados Unidos, alimentada pelos serviços, negócios e pelo turismo. Por gente que chega de todo o lado, sobretudo desde a guerra, quando a idade aumentou de população e se tornou cosmopolita. Gore Vidal testemunhou isso do mesmo modo que a sua personagem, Peter Sanford, quando regressou à cidade, “num dia quente de Junho, após um treino intensivo como fuzileiro nos pântanos da Florida”. A voz é a do narrador: “O ritmo calmo da cidade do pré-guerra fora agora substituído por um aumento positivamente nova-iorquino de idas e vindas de pessoas, em especial de mulheres que corriam a desempenhar as funções dos homens: as saias curtas revelavam joelhos e grandes massas de cabelo tombavam sobre ombros enchumaçados, apesar dos insistentes avisos de que o cabelo comprido, ao ficar preso nas máquinas, não só abrandava o ritmo da produção, atrasando assim a inevitável vitória da América sobre a tirania, como arrancava o escalpe à dona. Contudo, o cabelo era necessário para a manutenção de uma feminilidade comprometida pela adaptação demasiado fácil de centenas de milhares de mulheres às funções dos maridos e amantes ausentes. Foi o exército de mulheres nas ruas (...) o que mais espantou Peter...”
No fim da guerra, Washington passou a ter uma população de 800 mil pessoas e o Pentágono estava construído. Era a confirmação da sociedade militarizada que Vidal sempre criticara, com especial veemência e sarcasmo, muito tempo depois, nos anos de George W. Bush.
O império insatisfeito
D.C. fica a três horas e meia de comboio de Nova Iorque e quatro de carro ou autocarro. E a uma hora de avião, embora não haja nenhum aeroporto dentro do Distrito de Columbia. Os aeroportos Ronald Reagan e Dulles ficam na vizinha Virginia, e o de Baltimore no Maryland. É a Dulles que chega a maior parte dos voos internacionais. Duncan está na alfândega. “É jornalista?”, começa a falar num portunhol com sotaque americano. “Ave Maria! Não me diga que vem para a tomada de posse!” Benze-se e começa ali a primeira lição de política. “Está a ver isto?”, diz, pegando na caneta e fazendo dela um pêndulo a balançar para a esquerda e para a direita. “Não há ninguém isento, quem lá está privilegia sempre alguém, vai mais para um lado e menos para o outro. Não tem que saber. Eu gosto deste que vai para lá, votei nele.” Porquê? “Porque quem lá esteve até agora deu muito a quem não faz nada e esqueceu quem trabalha. O que eu espero é que este agora não se limite ao blá-blá e faça alguma coisa.”
Será que Duncan, que votou, pertence à metade americana que lê jornais? A pergunta seria para Gore Vidal.
Há uma percepção diferente de Washington, chegando de avião ou de comboio. Entrar na cidade por vias rápidas entre árvores e colinas, ou entrar em Union Station, totalmente renovada, no centro, perto do Capitólio, junto a uma imensa rotunda disputada por automóveis e autocarros de turismo. A estação limpa, antecâmara de uma capital que se quer apresentar no seu melhor, contrasta, só na rua, com a pobreza dos sem-abrigo que por ali se movimentam lentamente. Um está sentado num degrau, sanduíche na mão, quando passa uma família com algumas crianças. A mais nova, que ficara para trás, olha-o e corre em direcção aos outros. “Mãe, olha, vamos alimentá-lo.” E voltam com um saco dando-lhe a escolher o que tirar do interior. Na colectânea de ensaios Homage to Daniel Shays, 1952-1972, Gore Vidal escreveu: “Apesar da igualdade de cada cidadão perante a lei ser a pedra onde assenta a Constituição Americana, a igualdade económica nunca foi um ideal americano.” E, mais à frente, assumindo a sua célebre atitude polémica e provocadora: “A aversão à equidade económica é algo profundamente enraizado no carácter protestante americano. Afinal de contas, deram um continente vazio por explorar a europeus vigorosos (os índios eram apenas a parte desagradável da vacuidade, como ácaros), qualquer homem de bom senso poderia fazer da sua uma boa vida. Com trabalho duro extra, qualquer homem podia fazer fortuna, provando que era melhor do que os outros. Muito antes de Darwin, o ethos americano era darwiniano.”
A ambiguidade de Washington, as suas contradições, fazem parte da análise. A cidade divide-se entre o Nordeste rico e os subúrbios pobres a sudoeste. Tem alta segurança, mas foi até há aos anos 90 recordista de assassínios. Quase não há assaltos no centro e nas zonas privilegiadas, mas há bairros pouco aconselháveis a quem não quer correr riscos. Dados de 2011 da polícia de D.C. referiam que um quarto do crime da cidade ocorria em 5% do seu território, sobretudo no lado oriental, onde há uma população de cerca de 60 mil ex-presidiários. É crime associado ao consumo de drogas e a gangues que actuam sobretudo nos bairros de Columbia Heights e Logan Circle. A polícia assegura que o crime está a diminuir. O número de assassínios diminuiu de 479 em 1991 para 154 em 2015.
Porquê lançar-se na empreitada de escrever a sua versão da história da América estando tão zangado com o rumo do país? Escreveu na introdução a Washington D.C.: “... Creio que existia uma ideia americana (talvez até de ‘excepcionalidade’) que valia a pena preservar, e por isso atirei-me ao trabalho de reconstituir a sua rota desde 1776 até ao seu enclausuramento por volta de 1952 [pleno mccarthismo e a chamada ‘caça às bruxas’], na altura em que a velha república foi substituída pelo nosso estado de segurança nacional presente, eternamente em guerra com, na falta de um inimigo mais, a sua própria gente.”
Essa consciência, conta ainda Vidal, só a teve depois de ter escrito Washington D.C., em 1966. Foi o mesmo ano em que outro escritor, John Steinbeck, terminava América e Americanos (Livros do Brasil, 2007) também num estado de grande desânimo em relação ao futuro do seu país. “Estamos no período perplexo da mudança”, afirmava. Ler um e outro, em registos muito distintos, é como assistir a uma permanência, a de um império sempre insatisfeito. “Porque é que estamos no limiar deste colapso moral e consequentemente nervoso?”, interrogava-se o autor de A Leste do Paraíso, arriscando uma resposta: “Creio que é porque chegámos ao fim da estrada e não temos um novo caminho para percorrer, nenhuma tarefa por executar nem um propósito por cumprir.” Uma crise de valores a que Gore associaria um novo actor com um papel de extrema importância: os media. Ele escreveu para jornais, revistas, argumentos de cinema, adaptações para televisão. “O seu entendimento dos media parece profético”, escreve mais uma vez Jay Parini, “como as manipulações por parte de figuras quase religiosas assumem importância na cultura americana. Antes de Marshall McLuhan, Gore percebeu que ‘o meio é a mensagem’”.
O que é que D.C. tem? Ou não tem?
A televisão está ligada num bar irlandês de Georgetown. Não fica muito longe de Rock Creek Park. É sábado à tarde, não há muita gente, mas quem está fixa-se no ecrã. A equipa da casa, em quarto lugar, joga a semifinal da liga universitária de futebol americano, a NCAA, contra o líder, o Alabama. Há cerveja, hambúrgueres e um silêncio só interrompido quando alguém marca ou está prestes a marcar. A comida é boa. Turistas misturam-se com locais e fazem a festa. Washington está a ganhar e termina num 4-1. No fim do jogo, um casal volta ao jornal que tinha dobrado. A notícia que faz manchete é a da expulsão dos diplomatas russos e a leitura é feita em silêncio.
Um pouco mais acima, na mesma rua, Makis aperta a mão a um casal que acaba de entrar no restaurante onde trabalha há muitos anos. Não diz quantos. É grego, de Creta, e saiu do país quando era estudante, nos anos 70. Era hippy, contestava o regime dos coronéis que se instalara em 1967. “Começou a haver denúncias em relação a colegas meus, eu podia ser o próximo e vim embora”, diz numa familiaridade com o lugar onde faz mais do que servir refeições e onde entram regularmente congressistas, senadores, presidentes. “O Obama ainda não veio”, diz como num falso segredo, mão a fingir que não deixa que o som da boca se espalhe pela sala cheia. Encolhe os ombros perante o nome do próximo Presidente. “Estamos habituados a estas mudanças, embora esta pareça a maior de todas. Mas a cidade não nota, pelo menos para já.” Óculos de aros finos na ponta do nariz, bigode branco, fala de economia, da vantagem de ser imigrante num país que não o rejeitou, mede os interlocutores. É um diplomata num sítio de democratas e republicanos e diz que Washington é uma espécie de outra casa. Chama à conversa um colega, sul-americano do Peru, com nacionalidade americana. Conta a sua noite de eleições, quando a mãe lhe perguntou como explicar às netas aquele resultado. “E como é que me explicam a mim este resultado?”, respondeu-lhe.
Dave Eggers, escritor, americano de Boston, autor de livros como Zeitun (Quetzal, 2010) ou Conhecereis a Nossa Velocidade (Quetzal, 2011), estava em Washington nessa noite de 8 de Novembro e fez uma viagem pela América pós-eleições para o jornal britânico The Guardian à procura da resposta para a pergunta do colega de Makis e de muita gente como ele. “A palavra ‘surreal’ é demasiado usada e com frequência mal usada, mas no caso da festa da pós-noite eleitoral em Washington a palavra era a adequada”, escreveu num artigo com o título Nenhuma das Velhas Regras se Aplica, acrescentando que a cidade “parecia Roma após a queda do império”.
“Império” é adjectivo, substantivo, metáfora para o bem e para o mal sempre que se fala, escreve sobre Washington. Talvez também sobreusada, gasta numa cidade que quase sempre surge como mal-amada na literatura. Nora Ephron, realizadora, argumentista, escritora, trocou a contragosto Nova Iorque por Washington. O seu então marido, o jornalista Carl Bernstein — um dos responsáveis pela denúncia do caso Watergate — aceitara um emprego no Washington Post. Nora transformou essa experiência em romance. Heartburn foi publicado em 1983 e conta a história de um casamento que acabou em divórcio com cenário em D.C. No livro, há um colunista “conhecido por ser perverso, de forma crónica, com a política, e que “escreve como se Washington fosse uma cidade como qualquer outra (não é), cheia de personagens ricas e interessantes (não tem)”. O que é que D.C. tem? Ou não tem? Depende de quem a vê. Continua Heartburn: “Arthur dirá que o problema com Washington é que não tinha um delicatessen decente. Julie dirá que o problema com Washington era não haver serões de cinema na televisão. Eu diria que o problema com Washington era ser demasiado gentio. Mark diria que o problema com Washington era haver demasiadas pessoas a perder tempo a tentar perceber qual era o problema de Washington.” Há intriga, desamor, tédio, traição. Nos romances de Gore Vidal, Washington é cenário de histórias de maquinações políticas, luxúria e ambição. Como escreve Jay Parini, “não há amor em Washington D.C., nem no romance, nem na cidade”. A única paixão é o poder, e o sexo nasce apenas do desejo. “Esta é a nova Roma, transfigurada”, pode ler-se em Empire of Self.
Sim, ela mostra-se imperial. Avenidas largas, cada uma com o nome de um dos estados federais, numa espécie octógono, atravessadas por ruas de passeios amplos e edifícios que reflectem os vários estádios de construção da cidade que se expandiu entre a vila de Georgetown, o mais antigo aglomerado justo às terras onde D.C. foi construída, e a margem norte do Potomac, no meio de bosques. Quase não há trânsito, quem anda nos passeios vai sem pressa, o metro, talvez com as estações mais limpas de toda a América, tem poucos passageiros, há uma penumbra quieta e notam-se mais os sem-abrigo. Parecem ser os que ficaram entre uma população composta por muitos estrangeiros, gente de outros estados ou locais que aproveitaram as “festas” para sair. Eles e os turistas não têm pressa.
“Washington D.C., com as suas ruas largas, as suas rotundas confusas, estátuas de mármore, colunas dóricas e cúpulas é suposto parecer-se com a Roma Antiga (isso no caso de que as ruas da Roma antiga estivessem repletas de sem-abrigo negros, cães farejadores de bombas, autocarros de turismo e cerejeiras)”, escreve Paul Beatty no prólogo de Sellout, romance vencedor da última edição do Man Booker Prize, uma sátira à sociedade americana feita por um escritor natural do gueto de Dickens, em Los Angeles. É para lá que a acção do livro segue depois de uma passagem pelo Supremo Tribunal, em D.C., não sem antes passar pelo Pentágono — “não há nada para fazer no Pentágono a não ser começar uma guerra”, diz a personagem que deambula como um invisível pela capital —, pela Casa Branca, pelo Lincoln Memorial, depois de subir ao Capitólio.
Não fala da livraria em Eastern Market. Dois pisos, mais uma cave, atulhados de livros que qualquer amante de leitura sente ser uma gruta preciosa mantida por um velho guardião que vai dormitando enquanto os clientes se perdem por prateleiras e pilhas que ameaçam ruir se alguém lhes tocar. No topo de uma das estantes está Lincoln, de Gore Vidal. Era aquele o livro, mas como chegar lá? Continua-se pelo labirinto. Há livros na casa de banho, Foreign Languages, na cozinha, pede-se a quem gosta de arte para não tirar os livros da ordem em que se encontram. Tudo em papéis manuscritos a marcador preto. E paga-se a dinheiro, guardado numa velha registadora. Chama-se Capitol Hill, uma razão para gostar de Washington. E depois é ir andando até ao Capitólio, que já não tem os andaimes de Abril, descer passando pelos Smithsonian, o complexo de museus que qualquer cidade inveja, já com o novíssimo Museu de História e Cultura Afro-Americana, ir até ao Monumento Nacional e seguir sempre em frente pelo espelho de água até ao Lincoln Memorial, espécie de templo.
A América sacraliza os seus símbolos. Lincoln olha a imensidão à sua frente. É um gigante num trono gigante. E pede-se silêncio aos visitantes. Um rapaz, talvez da idade que Gore Vidal tinha quando viu Roosevelt e imaginou Lincoln, sobe a escadas e em vez da estátua olha o chão. Está molhado, mas lê-se a frase. “I have a dream”, a assinalar o local do famoso discurso de Martin Luther King, em 1963. Ele repete-a e o pai interpela-o: “Já imaginaste o que é estar aqui e haver gente a ouvir até perder de vista?” O rapaz olha ao fundo. O Monumento Nacional parece pequeno. “Wow! E onde está o Martin Luther King?” O pai põe-lhe a mão no ombro enquanto caminham. “Foi assassinado no Tennessee, cinco anos depois.”
Já se perderam na multidão. Parece que Washington se concentrou ali no primeiro dia do ano, à volta de Lincoln. Os flashes disparam e um tem mais luz. É a câmara de um fotógrafo a iluminar o beijo de duas mulheres. Cada uma segura flores. Depois de Vidal, depois de tudo, pode ter acontecido um casamento de amor em Washington D.C.
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