Cinema
Escolhas de Jorge Mourinha, Luís Miguel Oliveira e Vasco Câmara
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9 ex-aequo
Mamã
De Xavier Dolan
Sempre se viu Dolan a olhar, antes de tudo, para si próprio. Mamã, por isso, sabe a conquista: a suspensão do narcisismo. É o regresso a um motivo autobiográfico do realizador, a relação com a mãe, que estava na primeira longa, J’ai tué ma mère (2009), para o refundar de forma gloriosa. Encontrando um centro de gravidade para o histrionismo e voracidade do vernáculo quebequense. Vasco Câmara
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9 ex-aequo
Ciúme
De Philippe Garrel
Um dos filmes mais “bipolares” de Garrel, fascinado pela paz familiar e conjugal como pela dimensão irracional que faz e desfaz casais. A máxima serenidade e a máxima brutalidade, numa pintura de sentimentos secreta como uma concha fechada, filmada num soberbo preto e branco que cumpre a sua função essencial, ser um diálogo entre a luz e as trevas. Se é um filme “feliz” ou “infeliz” é difícil decidir – mas nessa indecisão se joga o toque que o filme opera sobre o espectador. Luís Miguel Oliveira
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8
A Vida Invisível
De Vítor Gonçalves
Um filme de um exaltante gosto pela vida dos mortos. O espectador pode experimentá-lo ao detectar presenças, como se tacteasse um filme secreto que se esconde debaixo de escadas ou espreita num corredor. São as zonas de sombra que constituem o habitat de Hugo, personagem que gosta mais dos mortos do que dos vivos. Vítor Gonçalves não filmava há 27 anos, quando se estreou com Uma Rapariga no Verão. O que é que lhe aconteceu? O filme, a sua melancolia e solidão dão resposta. Só temos de tacteá-la. V.C.
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7
A Imagem que Falta
De Rithy Panh
Parte da obra do cambojano Rithy Panh ergue-se em reflexão e investigação sobre o genocídio perpetrado no seu país, nos anos 70, pelos Khmers Vermelhos. A Imagem que Falta é mais um passo nessa meditação, fundindo a História e a cultura cambojanas numa relação autobiográfica com a infância do próprio cineasta. Com os seus modos de filme de animação rudimentar, feito com bonecos de barro, vê-se como uma fábula assombrada. L.M.O.
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5 ex-aequo
A Emigrante
De James Gray
O filme mais ambicioso do mais discretamente ambicioso dos cineastas americanos contemporâneos, com o seu mergulho “de época” – anos 20 – na raiz de uma ideia mítica da América, pátria de acolhimento para os desvalidos do mundo inteiro. A partir daqui, o filme desenvolve-se como um melodrama sublime, operático e viscontiano, rumo à dissolução de um triângulo amoroso consumada numa das mais extraordinárias sequências vistas este ano. Clássico, e portanto moderno, e vice-versa. L.M.O.
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5 ex-aequo
O Acto de Matar
De Joshua Oppenheimer
Impossibilitado de filmar as vítimas dos massacres ocorridos no Norte de Sumatra nos anos 1960, o americano Joshua Oppenheimer e os seus co-realizadores decidiram filmar os integrantes dos “esquadrões da morte” que os realizaram. Distorcendo a lógica do cinema “tradicional”, assombrado pelos fantasmas bem presentes de um passado recente, O Acto de Matar coloca em xeque o espectador como raros outros filmes o conseguiram na história recente do cinema. Jorge Mourinha
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4
Só os Amantes Sobrevivem
De Jim Jarmusch
Se noutros tempos – anos 80 – Jarmusch foi um símbolo de juventude no cinema americano, hoje ele representa uma “antiguidade”. E sobre a “antiguidade”, corporizada nos seus protagonistas vampiros, velhos de séculos, se constrói Só os Amantes Sobrevivem, filme eivado de um romantismo nocturno que nunca se basta a si próprio e está sempre em relação com o mundo, com a América que existe agora, por exemplo as ruínas da Detroit falida. L.M.O.
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2 ex-aequo
E Agora? Lembra-me
De Joaquim Pinto e Nuno Leonel
Uma sinopse dirá que se trata de um documentário em jeito de caderno de apontamentos sobre 20 anos de vida com o HIV e com a hepatite C. Se prescindirmos do “sobre”, agarramos o essencial: um filme de partilha. Se nos atrevermos com o pudor, tocamos numa história de amor. É esse o ADN de E Agora? Lembra-me: continuar a viver. Coisa antiga, é claro. Em termos cinematográficos, e se olharmos à volta, uma exposição e um pudor que fazem figura de coisa nova. V.C.
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2 ex-aequo
Boyhood – Momentos de uma Vida
De Richard Linklater
Ao longo de três horas, rodadas ao longo de doze anos, Linklater desafia-nos a olhar “como deve ser” para uma vida “normal”. Porque o seu tema, neste que é o seu melhor filme, é o tempo que passa, porque é a acumulação de “cenas normais” que ele vai criando que faz de nós quem somos. É por isso que temos a sensação de ter visto a vida como ela realmente é, com uma simplicidade tão desarmante quanto tocante. J.M.
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1
Cavalo Dinheiro
De Pedro Costa
Oito anos depois de Juventude em Marcha, e seguindo um rasto que inclui também um punhado de curtas-metragens feitas entretanto, o magnífico Ventura está outra vez no centro de um filme de Pedro Costa. Que o lança num labirinto que é, por sua vez, magnífico: o diálogo entre a interioridade de Ventura, espécie de sonho e alucinação permanentes, desfile de memórias e ecos, ora palpáveis ora imateriais, e um cenário que tanto é uma projecção desse sonho e dessa alucinação (como no expressionismo clássico e nos seus prolongamentos hollywoodianos, Tourneur e o noir) como é, de forma inaudita, a cidade de Lisboa e os seus arredores – como se, dissolvido esse núcleo das Fontaínhas, só pudesse haver uma errância sem pontos de referência fixos.
Admirável filme, todo conjugado, nesses termos, entre a abertura ao mundo (as fotos novaiorquinas de Jacob Riis com que Cavalo Dinheiro começa, “universalizando” a figura e o destino de Ventura) e um progressivo fechamento, concretizando naquele espantoso diálogo-monólogo-delírio final, com Ventura e um homem-estátua, zombie vindo da guerra e de Abril de 74, dentro dum ascensor.
A outro nível, impressiona o modo como Pedro Costa, servindo-se de utensílios “modernos” – a imagem digital – e puxando-os a um patamar de apuro estético com pouquíssimos precedentes, deixa o filme ser habitado por inúmeros fantasmas que vêm do cinema, do interior de uma memória, cada vez mais frágil, do que o cinema foi. Mesmo Murnau nos espreita dentro deste filme espantoso. L.M.O.