Cinema
Escolhas de Jorge Mourinha, Luís Miguel Oliveira e Vasco Câmara
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10
As Nuvens de Sils Maria
De Olivier Assayas
Um glorioso melodrama feminino desconstruído e reinventado, sobre o tempo que passa por uma actriz (maravilhosa Juliette Binoche) que dá por si a “fechar o círculo” da sua carreira. Contado com uma fluidez de rio a vogar sem pressas, confirma o francês como um dos cineastas mais vitais dos nossos dias. Jorge Mourinha
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9
Minha Mãe
De Nanni Moretti
O velho affair entre Moretti e a depressão, ou as personagens deprimidas, conhece em Minha Mãe um capítulo belíssimo. Traçado entre a angústia da mortalidade e as decepções da vida, o conjunto de personagens, se vale por ele próprio, também permite, numa espécie de surdina, o desenho de um “estado das coisas” mais geral. Como é que vai a vida, pessoalmente, socialmente, politicamente, como é que vai o cinema? Minha Mãe diz que tudo vai mal, sem atirar o seu pessimismo à cara do espectador mas também sem ver exactamente onde está o consolo. Luís Miguel Oliveira
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8
Três Irmãs
De Wang Bing
Houve uma explosão, o boom económico chinês. Wang Bing tem sido o grande documentarista dos estilhaços: pessoas e memórias apagadas pela economia, a intimidade e a família destruídas, os afectos a deixarem de poder falar. Como historiador de uma memória esquecida, enterrada viva, Wang Bing — este ano estreado em Portugal com A Fossa e Três Irmãs — vem-se opondo à narrativa oficial do seu país. Abeira-se das pessoas, infiltra-se na sua intimidade não para lhes roubar momentos, mas para lhes dar direito a uma epopeia. Vasco Câmara
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6 ex-aequo
Táxi
De Jafar Panahi
É o filme mais “distribuível” de Jafar Panahi, não só da sua “obra ao negro” rodada na clandestinidade como provavelmente de toda a sua obra. É o filme onde o realizador que o antigo regime iraniano “sai da casca” e abre a cortina para deixar entrar um cinema do humano, atento e compreensivo, onde a tragédia e a comédia seguem paredes-meias. J.M.
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6 ex-aequo
Adeus à Linguagem
De Jean-Luc Godard
É o filme em que Jean-Luc Godard experimentou com as três dimensões para as utilizar de modo mais surpreendente e imaginativo do que qualquer coisa dos últimos anos — nesse passo, em simultâneo, condenando o processo 3D a uma espécie de irrelevância. Mas na complexidade da sua estrutura, na beleza desmedida da sua “saturação de signos”, na collage entre texto, música e imagens novas ou antigas, também podemos dizer que não houve filme mais encantatório nem desafiante. L.M.O.
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5
Blackhat
De Michael Mann
Vai ficar como o “filme maldito” de Michael Mann, um flop colossal que inclusivamente limitou a sua circulação internacional. Mas não nos deixemos enganar: Blackhat exprime todo o entendimento da mise en scène segundo Mann (de modo mais próximo de Miami Vice do que de Inimigos Públicos, os seus títulos anteriores), e todo o seu mundo poético, que encharca de melancolia um universo narrativo de thriller. A sequência final é de antologia, com os seus ecos do climax de Apocalypse Now!. L.M.O.
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4
A Fossa
De Wang Bing
A estreia de Wang Bing no circuito comercial português tem que ser saudada, ele tem feito — com um sentido de brutalidade que não existe por exemplo em Jia Zhang-ke, mais delicado — os filmes mais poderosos sobre as contradições e iniquidades da vida chinesa contemporânea. A Fossa, ficção alicerçada em documentos sobre um campo de trabalho para contestatários do regime, é uma experiência que desaba em cima do espectador como uma avalanche. Quem o vir, não o esquecerá. L.M.O.
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3
O Último dos Injustos
De Claude Lanzmann
Claude Lanzmann regressa a uma figura que interrogara durante os trabalhos para Shoah — Benjamin Murmelstein, o último “ancião” do Conselho Judeu do gueto de Theresienstadt. Regressando a esse material que não incluíra naquele seu monumento de nove horas, finaliza a sua história com o Holocausto, essa colossal fixação da memória que foram Shoah (1985), Sobibor, Oct 14, 1943, 4pm (2001) ou Le rapport Karski (2010). Lanzmann inscreve os seus gestos no filme, os de um octogenário já com dificuldades em subir as escadas do seu caminho. Nessa vibração de tenacidade e fragilidade (física), na “respiração” de Lanzmann de ontem e Lanzmann hoje, há um sopro de “testamento”. V.C.
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2
Phoenix
De Christian Petzold
Christian Petzold continua a afinar o seu cinema trespassado pela história da Alemanha enquanto país “dividido” e “recomposto” a partir das cinzas da Segunda Guerra. Pelo meio de uma série de invocações cinematográficas cinéfilas (com Hitchcock à cabeça), Phoenix é um notável retrato de mulher, feito à medida de uma extraordinária Nina Hoss. J.M.
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1
As Mil e Uma Noites
De Miguel Gomes
Muito naturalmente, As Mil e uma Noites é o “nosso” filme do ano. Talvez seja abuso dizer assim — “muito naturalmente”. Para começar, porque esta escolha é a soma de uma maioria, resultado das listas individuais dos três críticos deste jornal, não é o efeito de uma unanimidade. Depois, porque “nosso” é imposição totalitária. A cada um, é claro, o seu cinema. O “naturalmente” quer tão só dizer que a trilogia de Gomes, O Inquieto, O Desolado, O Encantado, fala de nós, hoje — nós, portugueses, e mais do que isso, nós espectadores de cinema. Somos também aquilo que vemos. Muitas vezes percebemo-lo mais tarde, quando compreendemos o que fomos “ali”. Com As Mil e uma Noites somos, espectadores e filme, um work in progress de realidade e de ficção. A coisa está-se a construir. Aqui, agora. Por isso... “naturalmente” As Mil e uma Noites instalou-se nesta lista. Há a desmesura do gesto, a invenção de regras de produção — Portugal documentado durante um ano em directo, a realidade e a fantasia numa dança de cadeiras, o jornalismo na linha de partida para a efabulação. Contudo, há algo de mais íntimo em causa: o olhar a participar de uma aprendizagem. De há alguns anos para cá, cineastas portugueses — do André Príncipe de Campo de Flamingos sem Flamingos (2013) ao Rio Corgo (2015) de Sérgio da Costa e Maya Kosa... — vêm assumindo uma dissidência em relação à forma como o país e as suas gentes foram engavetados pelo audiovisual. Não querendo participar disso, partiram à procura, com o road movie querendo empossar os desapossados das suas narrativas. As Mil e uma Noites é câmara de eco onde se amplia este “país, precisa-se!”. Há exibicionismo na proeza, há dificuldades em permanecer sempre no encanto. Mas sobra muita delicadeza. V.C.