Entrevista

“O clima será a economia do futuro e nesta equação o mar é fundamental”

Consultor do Presidente da República para os Assuntos do Mar, Tiago Pitta e Cunha, jurista de formação, já foi representante de Portugal na Assembleia Geral da Convenção do Mar na ONU. Defende um ministro sem pasta com poder de decisão e de veto em “em tudo o que fosse estratégia da zona azul”.

Continuamos de costas viradas para o mar?
Na ausência de desígnios e de concertações nacionais prevalecem os interesses de grupo, os únicos organizados. Mas o interesse comum não existe e por isso é que não existe uma taxa de tonelagem [imposto com base na mercadoria transportada e não nos lucros], por exemplo. Como não há essa ideia de interesse comum, e do mar como interesse comum, um ministro das Finanças não compreende que deva dar a tal ajuda de Estado ao mar, mesmo vendo que os outros países da Europa o fazem.

Mas com esses exemplos, como é que isso é possível?
Parece óbvio, mas não é. Por exemplo, eu defendo que não pode existir um Ministério do Mar. Temos um Ministério da Terra ou da Lua?

Então, o que é que devíamos fazer?
Devíamos criar o ministro Coordenador dos Assuntos do Mar e esse ministro teria de estar sem pasta na presidência do Conselho de Ministros com poder de decisão e de veto.

O mar está em todo o lado.
Exacto, temos um bocadinho no Turismo, um bocadinho na Ciência, nos Transportes, na Energia, no Ambiente. O que era importante era um governo que dissesse, ‘temos aqui uma estratégia do mar, ela existe, e temos aqui um programa para executar essa estratégia’. E uma estratégia deve ser para 20 anos. O que interessava mesmo era termos este ministro, em que ficasse estabelecido numa lei orgânica que teria poder de veto e de coordenação em tudo o que fosse estratégia da zona azul. Transformaríamos este país num instante numa potência do mar.

As pessoas perceberiam a importância do mar?
Claro, perceberiam que o mar é tudo, é a energia, é o terminal de LNG [gás natural liquefeito], que está ali em Sines. Vai levar o seu tempo mas é irreversível.

Já chegámos a esse ponto?       
Sim, chegámos a um nível de divulgação das ideias do mar que nenhum governo pode voltar atrás, mesmo que não faça o ideal. Este modelo que eu proponho, por exemplo, não existe em lado nenhum, seria revolucionário.

O mar vai ter ser cada vez mais fundamental?
Claro, porque não é só fundamental para nós, é para o planeta, para o clima – o clima vai ser a nova ideologia –, para o ambiente, para a globalização.

Para a nossa sobrevivência a tantos níveis.
A globalização não existe sem mar. Sabe que nos anos 1970 apenas 76% do comércio mundial era transportado por mar e em 2015 é mais de 90%? Isso explica-se com a criação da Organização Mundial do Comércio e culmina com a entrada da Rússia e da China, nos últimos anos, na organização. Se não fosse o transporte marítimo e estes navios que vêm agora a Sines com 19 mil contentores, nós não podíamos comprar um televisor ‘made in China’, era demasiado caro. A logística marítima, o desenvolvimento do transporte e dos portos foi o que permitiu a globalização. A segurança mundial é mar, cada vez mais.

Como é que isto tem consequências directas na economia?
Daqui a uns anos só vamos estar a discutir se usamos mais ou menos energias renováveis. E a economia vai ser a economia do clima, só as empresas amigas do clima e que descarbonizam a economia é que vão resistir. E nisto tudo o mar é fundamental. O clima todo mundial é regulado pelo mar. Não são as florestas, é o mar. Portugal absorve uma grande parte do CO2 da Europa e não temos isso estudado.

E os transportes?
Vai ser tudo transportado por mar e por ferrovias. Por mar transportamos mais toneladas com menos energia aplicada; 60% da frota europeia passa pelas nossas águas.

Hamburgo perdeu com a crise, mas continua na liderança portuária e da marinha mercante a muitos níveis.
Sim, têm pensamento estratégico. E têm a consciência das questões do clima, pensam a longo prazo. Veja-se como já há tantos armadores alemães a operar na zona franca da Madeira.

O que é que podemos fazer em relação à marinha mercante?
É um negócio gigante e era importante atrairmos investidores estrangeiros. Se conseguíssemos trazer armadores, eles podiam ajudar-nos a escoar as nossas exportações. Como isto é um negócio de capital intensivo, qualquer armador que se instale em Portugal faz a economia do mar disparar. Mas um dos grandes problemas é não termos marinha, esta é uma economia com vasos comunicantes, não pode ser vista de forma compartimentada. As pessoas pensam que o transporte marítimo já acabou, que já perdemos o comboio, mas isso não faz sentido nenhum.

Sines está a correr muito bem.
Sim, e podíamos ganhar muito mais com isso. Temos os combustíveis a vir de navio, do Golfo da Nigéria, e a chegar a Sines, mas são trazidos por navios norte-americanos com tripulações norte-americanas. Disseram que os portos não podiam crescer, que a Lisnave não se podia recuperar… O que interessa é a geografia, lutar contra a geografia não faz sentido. Claro que não podemos competir com a Maersk e com a MC para trazer os contentores de Singapura. Mas temos de encontrar os nossos nichos de mercado e não ficar só nas ilhas.

Quais poderiam ser esses nichos?
O transporte marítimo de curta distância na Europa é apoiadíssimo pela União Europeia e o rodoviário é taxadíssimo. A frota para este transporte é obsoleta, a frota europeia é a de grande carga. Vai haver oportunidades e fundos para renovar esses navios e para os tornar menos poluentes. Portugal podia pensar em ter aqui um papel, até porque estamos no meio das rotas do Mediterrâneo e do Norte. Hoje, fazemos ligações à Guiné-Bissau, por exemplo. Podíamos pensar em fazer o transbordo dos porta-contentores que vêm do Canal do Panamá, por exemplo, e levar a carga para o Norte de Europa. O que é que fazia sentido em termos de estratégia? Pensar num grande porto de águas profundas na ilha Terceira. Os navios que passam o canal do Panamá vêm da China ou de Long Beach e Los Angeles; chegavam aos Açores e descarregavam o que depois nós levaríamos ao Norte.