Um postal ilustrado. Sucedem-se tonalidades de verde. O silêncio é entrecortado pelos chocalhos das vacas que pastam em frente. Avista-se uma ave de rapina. De repente, uma sinfonia. É Véronique Gaillard a oferecer milho a um galo, dez galinhas, dois gansos e dois perus.
Fosse Véronique mais nova não trocaria a cidade pelo campo. “Ó, nem pensar.” Quando era mais nova, volta e meia sentia uma vontade incontrolável de mudar de cenário. Tantas vezes alterou a morada em Lyon. Durante cinco anos, fez trabalhos sazonais só para poder viajar mais.
Ninguém diria que aos 44 anos compraria uma casa a cair, a 900 metros de altitude, entre florestas, charnecas, pântanos e lagos. E, no entanto, ei-la com o marido, Jérôme, o cão, Fly, o gato, Ponpon, em Artense, no Parque Natural Regional dos Vulcões de Auvergne, no Maciço Central francês.
Às vezes, quando menos se espera, a vida fica virada de pernas para o ar. Véronique foi despedida da empresa de exportação de máquinas de soldar que a empregou ao longo de 16 anos – o pai passou o negócio ao filho e o filho despediu os empregados mais velhos. Não foi devorada pelos sentimentos obscuros que tendem a atacar quem fica sem emprego. “Vamos viver para Auvergne”, propôs-lhe Jérôme.
Jérôme conhecia bem a região. Trabalhara três anos no centro de pesca no Lago Landie. Regressara a Lyon só para estar mais perto de Verónique. Pediu uma rescisão amigável. Iam “à procura de serenidade, longe do stress da cidade”. Um dia, um amigo ligou-lhes a falar no que já fora a morada de um velho lavrador, um sítio isolado, perto de Marchal, uma aldeia de 88 habitantes.
Era uma casa, um estábulo e um barracão, mesmo ao pé do Lago Tact, com vista para os montes do Cantal e para o pico de Sancy, o ponto mais alto do Maciço Central. Perfeito para eles. “Ele queria a água, eu queria a vista”, recorda. Só que estava tudo a ruir, não havia sanita nem chuveiro. Conseguiriam reunir dinheiro para renovar, para modernizar, para ter um modo de vida?
Nem imaginavam que o Conselho Regional de Auvergne tivesse políticas próprias para recém-chegados. Souberam numa feira organizada pela Câmara de Comércio. “Há muito pouca gente aqui, então eles encorajam a vir”, diz ela. E muitos têm ido, sobretudo, casais entre os 30 e os 40 anos, que avançaram para um segundo filho e precisam de ter uma casa maior, de perder menos tempo no trânsito, e casais que estão perto dos 50, que já viram partir os filhos e/ou têm algum sonho por cumprir.
Uma agência para inverter o declínio
Eleito um novo Conselho Regional de Auvergne em 2004, por toda a região se organizaram reuniões para perceber o que era prioritário para os cidadãos. E em todo o lado se pediu solução para o esvaziamento das aldeias, o seu envelhecimento abrupto, o desaparecimento do mundo rural.
Onde já ia o apogeu demográfico de 1886, ano em que a região contou mais de 1,5 milhões de habitantes. Houve um grande êxodo rural no final do século XIX (impulsionado pela industrialização) e duas grandes guerras no século XX (causadoras de muitas mortes de homens em idade activa). Em 1954, quando foram ver, Auvergne estava reduzido a 1,2 milhões.
A situação melhorou. E para isso muito contribuiu quem de Portugal fugiu à pobreza, à ditadura e à guerra colonial. Eram os chamados “gloriosos trinta”, o período 1954-1982, no qual a França viveu grande crescimento económico e demográfico. Só que Auvergne faz-se de montanhas e planaltos: a taxa de natalidade manteve-se inferior à média e o saldo migratório também.
Não por acaso, das estradas avistam-se extensos campos de cereais e girassóis e irregulares zonas de pasto. Nos anos 80 e 90, até pelas políticas da Comunidade Económica Europeia, as propriedades agrícolas concentraram-se e mecanizaram-se. Auvergne assistiu ao segundo maior êxodo rural da sua história. Entre 1982 e 1999, continuava a morrer mais gente do que a nascer e a sair mais do que a entrar.
Perante as previsões catastróficas do Instituto Nacional de Estatística e a vontade expressa pelos cidadãos, em 2005 o Conselho Regional criou a Agência Regional de Desenvolvimento dos Territórios de Auvergne. E é lá que, sob a direcção de Pascal Guittard, 20 peritos de áreas diversas desenvolvem programas para atrair pessoas, estruturar ofertas, formar e monitorizar agentes territoriais.
“Foi um grande desafio”, recorda Guittard. “Não tínhamos nenhuma referência. Estávamos a fazer algo que não existia em nenhum lugar.”
Há na Europa lugares com problemas semelhantes – talvez nenhum com a gravidade de o interior de Portugal – só que os contextos sociodemográficos e culturais são tão diversos que é difícil fazer comparações. Limousin, mesmo ali ao lado, emergia como exemplo de boas práticas. O Conselho Regional de Limousin esforçava-se para “vender” a região. Instalara uma “célula de acolhimento”, encarregada de informar, orientar e acompanhar projectos de recém-chegados, e montara uma rede para os apoiar nos diversos territórios. Fizera também parceria com a Collectif Ville-Campagne, uma associação nacional empenhada no repovoamento das zonas rurais.
Já se notava algum movimento das cidades para os campos em França. Membros do Collectif Ville-Campagne, como o escritor Bernard Farinelli, tornaram-se porta-vozes dessa nova tendência. Alguma imprensa, como a revista Village”, ia mostrando entraves: resistência nas comunidades rurais, receosas dos recém-chegados; desconhecimento das potencialidades de cada território; custos de instalação; obstáculos administrativos motivados por desarticulação entre sectores e serviços…
Respostas integradas
O que estava a ser feito em Limousin era inspirador – sobretudo o facto de trabalharem com os territórios –, mas insuficiente, enfatiza Pascal Guittard. Precisavam de atacar em diversas frentes, de forma articulada. Trataram de delinear um plano, servindo-se do marketing territorial e da internet.
Para atrair pessoas, dita Gérard Lombardi, responsável pelo departamento de marketing territorial e emprego da agência, “é preciso pelo menos três coisas: primeiro, temos de dizer: venham!; segundo, temos de ter algo para oferecer; terceiro, temos de ajudar a fazer acontecer.”
Se um município se pusesse a trabalhar sozinho, não lhe parece que pudesse obter resultados significativos. “É preciso ter uma escala relevante”, enfatiza Lombardi. Também é importante ter um nome conhecido. Qual seria a escala relevante em Portugal? Trás-os-Montes, por exemplo? Interior?
Auvergne é conhecida pelos vulcões, pelos queijos, pela História (foi ali que Vercingetórix derrotou Júlio César). Valendo-se da natureza e investindo na cobertura de banda larga, ia apresentar-se como um lugar onde vida rural e vida moderna se combinam – para maior harmonia entre vida profissional e vida privada.
Decidiram criar um site, www.auvergnelife.tv, que é uma espécie de vitrine da região. Começaram por reunir oportunidades de negócio. O dono da padaria morreu ou quer reformar-se? Não há na aldeia quem tome conta? Estão há que pô-lo na Internet para que possa ser visto pelo padeiro que em Paris sonha com Auvergne.
“No primeiro ano, só colocámos quarenta ofertas no site”, recorda o director da agência. Volvidos dois anos, tinham 200. Agora, 900. O número foi aumentado à medida que a estratégia foi sendo reconhecida pelos parceiros locais. “Os territórios têm de estar atentos, têm de reagir, de nos dizer.”
Não são decisões que se possam tomar de olhos fechados. A agência paga um, dois, três fins-de-semana para que a pessoa conheça o sítio, faça contactos, compreenda a dinâmica local. E tem um programa mais extenso, exclusivo a nível nacional e reconhecido pela União Europeia, a que chamaram “residências de empresários”. Para incentivar quem quer recuperar ou criar uma empresa a fazê-lo já no próprio local, mediante certas condições, atribui-lhe uma verba mensal – dois a seis meses.
A equipa de Guittard sabe que só 40% de uma tomada de decisão destas é racional. Investe nos 60% emocionais. A mensagem que lhe compete passar é: “Nós podemos ajudá-lo a encontrar casa para a família, infantário ou escola para as suas crianças. Na verdade, nós podemos ajudá-lo a tentar.”
Indispensável envolver os territórios. Em muitos deles há alguém, que faz parte dos serviços locais, a ajudar os recém-chegados a encontrar o que precisa. A agência está agora a criar uma rede de “life coaches”, isto é, a desafiar moradores a “adoptarem” um recém-chegado, ou melhor, a serem a pessoa a quem pode ligar a perguntar onde há festa ou qual o melhor sítio para comer “truffade”.
Aposta no ecoturismo
O ecoturismo é um desígnio da região. Jérôme recebeu 1700 euros durante cinco meses. “Foi muito bom”, diz. Ainda não tinham assinado a escritura da casa. Compraram-na. E compraram 4 mil metros quadrados de terreno, junto ao Lago Lastioulles, exclusivo para projectos turísticos.
Nunca trabalharam tanto. “Fizemos tudo”, orgulha-se Véronique. Só o que exigia perícia ficou para quem a tinha. Às vezes, nos fins-de-semana, familiares ou amigos apareciam para dar uma mão. Já lá vão quase quatro anos, abriram o centro de pesca. E eis Jérôme, ex-gerente de equipas de pesca à mosca, instrutor certificado, ao dispor de quem aparecer, com a sua selecção de artigos. Vende-os, mas também passa licenças, dá conselhos, aluga barcos e outros equipamentos. Depois, é que abriram a unidade de turismo rural. E eis Véronique, feita gerente, relações públicas, contabilista, recepcionista, empregada de mesa, mulher de limpeza.
Ele ri-se só de se lembrar da descrença alheia. Quando anunciavam que iriam criar um centro de pesca numa aldeia com menos de 100 habitantes, a família, os amigos, os vizinhos arregalaram os olhos: ‘Estão doidos? Não vai resultar. Não há ninguém aqui.’” Está a funcionar. A loja é especializada. Não há igual num raio de cem quilómetros. E há muita truta para pescar nos lagos de Artense.
Nada os preocupava mais do que não ter o dinheiro necessário. Nada os preocupa mais ainda agora. Empataram as poupanças e pediram um empréstimo. A agência prontificou-se para orientar, ajudar a obter financiamento, pagar alguma curta formação. E ofereceu acompanhamento jurídico, comercial ou técnico nos primeiros três anos. E eles tiveram ajudas de outras entidades, incluindo 20% do total do investimento e isenção fiscal durante cinco anos (a partir daí pagam uma percentagem cada vez maior até ao décimo ano, altura em que passam a pagar tudo).
À agência não interessa só que as pessoas venham, interessa que fiquem. Prontifica-se para fazer estudos de mercado para perceber se o negócio vale a pena ou se tem de ser repensado. Um apoio precioso, por exemplo, para Xavier Condroyer e a mulher, Christine, que viraram as costas a Bordéus e abriram uma pequena unidade de produção de cerveja em Picherande. A cerveja que ele faz com água dali e ela vende a 30 bares e lojas da zona chama-se “Gaia”, mãe terra na mitologia grega.
Não basta atrair empresários. Um dos problemas de um território despovoado é responder às necessidades de mão-de-obra especializada, aponta Lombardi. A oferta de emprego está elencada no site e as vagas para as quais é difícil encontrar candidato na região têm a etiqueta “new deal”. Quer isto dizer que a agência paga a renda nos três meses de período experimental. Como chegam a quem está longe? “As pessoas vão ao Google, digitam o que procuram e a nossa oferta aparece. ‘Por que não pensas em Auvergne? Nós temos um trabalho para ti. Não custa tentar.’
A agência gere um orçamento anual de quatro milhões de euros. É um esforço da região – embora 20% venham da União Europeia – com resultados. Guittard cita um estudo feito por uma entidade externa segundo o qual os três milhões de euros investidos pela agência entre 2006-2011 em “residências de empresários” tiveram um retorno de 47 milhões para a região, mas não se detém a esmiuçar cada programa. Tem a certeza de que mais de duas mil “residências de empresários” ou perto de 400 “new deal” representam uma pequena parte do movimento migratório.
Auvergne está a acolher 17 mil novos residentes por ano e isso tem muitas explicações, desde logo as campanhas provocatórias que fizeram sobre o quanto é mau viver em Paris e o quanto é bom viver em Auvergne. O campo tornou-se apetecível em França, sobretudo desde que a crise despontou, mas a batalha de Auvergne estaria perdida se a região tivesse desinvestido nos serviços de proximidade, sublinha Guittard. Se o tivesse feito, não poderia “vender-se” como a segunda região de França em qualidade de vida e em serviços de proximidade, com 100% de cobertura de banda larga, taxa de desemprego abaixo da média. “Ninguém se muda para o deserto.”
O repovoamento deverá manter-se uma prioridade quando, em 2016, Auvergne se fundir com Rhône-Alpes. “Por ora, o aumento da população deve-se todo aos recém-chegados. Temos de aumentar em 10% o fluxo migratório de modo a ter um impacto no saldo natural”, reconhece Guittard. E os territórios que beneficiam do maior crescimento populacional ficam perto dos principais centros urbanos. O repovoamento das zonas mais rurais faz-se a ritmo bem mais lento.
A equipa desenvolveu uma nova campanha de valorização, muito assente na tal ideia de ruralidade moderna, e inventou mais dois programas para chamar gente e impulsionar projectos inovadores: o “new deal digital”, com seis meses de salário, seis meses de casa, seis meses de escritório, e “new deal biotecnologia”, com um ano de salário, um ano de casa, um ano de laboratório.
Olhando para trás, o director regional lamenta não ter envolvido mais os cidadãos de cada localidade, sobretudo os eleitos. “Seriam mais positivos, o que tornaria tudo mais eficaz”, considera. Poderiam reforçar a oferta, como fez a Comunidade de Comunas dos Países de Murat, uma associação de 13 aldeias perdidas no Cantal, mas a uma hora e meia de Clermont-Ferrand.
No centro de Murat abriu-se uma Casa de Serviços, que permite, por exemplo, ler os jornais, consultar ofertas de emprego, aceder a serviços públicos online e imprimir formulários, falar com funcionários de diversas entidades públicas e privadas. Há 36 serviços que ali vão, à vez, atender cidadãos. No mesmo edifício funciona um centro de teletrabalho. “Construímos uma formação especial para ajudar as pessoas a criarem a sua actividade económica em teletrabalho”, explica a directora, Corinne Ibarra. “Pessoas de toda a França vêm aqui. Todos os anos organizamos quatro acções de formação. E todos os anos cinco a sete pessoas decidem ficar.”
“Isto é um sucesso porque a região está a trabalhar connosco”, acredita. “Se o projecto é interessante, podemos ajudar. Durante seis meses, têm aqui um escritório, um “coach”, mil euros de salário, renda de casa paga.” E auxílio não só para encontrar casa, escola, mas também trabalho para o cônjuge.
Inspirada naquele pacote, no ano passado a própria Comunidade de Comunas lançou um concurso de ideias. Victoria Bechon, de 26 anos, venceu uma das três bolsas. Natural da Sibéria, está a desenvolver um projecto dirigido a turistas russos, que inclui transfer, serviço de guia/intérprete, sessão fotográfica.
Há num lado pessoal na opção dela e do marido, Bastien: querem ter dois ou três filhos e vê-los crescer no campo. E um lado profissional: ela estudou Engenharia de Comunicação, ele Turismo e ambos querem trabalhar em ecoturismo. Os serviços, diz ela, também contaram: “Quando decides mudar, tens de saber o que há. Aqui, há centro de saúde, escola, comércio. E ajuda para trabalhar.”
Corinne bem se lembra de como no princípio era difícil explicar à comunidade local a utilidade daquilo tudo. “Agora entendem.” O saldo migratório, que chegou a ser de menos quatro nos anos 90, é agora de mais quatro. Desde 2008, ali nasceram 36 negócios digitais, que trouxeram 94 novos residentes, o que tem impacte num território com seis mil habitantes dispersos por 13 aldeias. “Mostramos que no mundo rural também é possível atrair jovens e trabalhar pela Net.”
Nem toda a gente se adapta. Véronique está convencida de que é preciso apreciar a natureza, mas também ter uma certa personalidade ou estar numa certa fase da vida. “Estamos aqui há cinco anos e meio”, suspira. “É o segundo ano que temos tudo pronto. É muito trabalho! O Jérôme não tem dificuldades em viver aqui. Eu…depende. Há 3 meses estava um bocado…. Acho que estava muito cansada… É o começo… mais dois anos e estamos mais confortáveis financeiramente. Podemos sair.”
Imagina-se a envelhecer ali. Nunca teve problemas com vizinhança, como outros neo-rurais. “Gostam de nos ver. Quando viemos, diziam-nos: ó, é tão bom ter gente nova a viver aqui.” Vai a conduzir pelas estradas estreitinhas e sorri e acena a toda a gente. Acha que o melhor é “meter conversa, participar nas festas, fazer parte do desenvolvimento local”. O pior “é criticar a região, achar que se é superior” a quem é dali. “Não há como ser humilde e estar pronto para aprender.”
José deixou uma aldeia em Portugal e ajudou a revitalizar outra em França
Quando José Pereira da Silva partiu, nem sinal de declínio demográfico em Portugal. Pelo contrário. Na década de 50, o saldo natural foi o mais elevado de sempre. Não havia trabalho nem casa para todos. Antes de ir à tropa, até viveu num estábulo com a mulher e os três filhos. “Ai Jesus!”
A indústria desenvolvia-se, por fim. Muitos deixavam as aldeias, virando costas à agricultura, que os prendia à penúria. Só que o sector não absorvia toda a mão-de-obra. Para escapar, primeiro, à pobreza, depois, também à guerra, o movimento migratório virou-se, sobretudo, para França.
“Com base na representação étnica, o Governo francês privilegiava a entrada de imigrantes portugueses, em detrimento de extra-europeus, em particular argelinos”, explica o historiador Victor Pereira. Tentava aumentar as entradas regulares e facilitava a regularização de quem ia a “salto”.
Entre 1957 e 1974, 900 mil portugueses entram em França e só 350 mil deles levaram “passaporte de emigrante”. Apesar do discurso oficial, Portugal não se esforçava para travar o fluxo migratório, que aliviava o excedente de mão-de-obra rural e garantia remessas, esclarece ainda.
Já tudo isso corria quando, finda a tropa, José se fez fiscal. “O Estado pagava-me a renda da casa. Iam de jipe buscar-me para o trabalho. Parecia um doutor!” Já não vivia mal como antes, mas não perdeu a oportunidade de ir para França. “Gajos iam daqui para lá de carro. Eu também queria ter um!” E agora tem três, um dos quais descapotável.
Decorria 1962. Com uma “carta de chamada” enviada por um familiar, fez o “passaporte de emigrante” e partiu para Auvergne. “Trabalhei numa empresa de construção 40 anos. Fui chefe de equipa, encarregado. Vinham muitos ter comigo, que eu tinha possibilidade de documentar e dar trabalho.”
Clermont-Ferrand era uma etapa no trajecto ferroviário para Paris. Na gare, angariadores de mão-de-obra procuravam portugueses dispostos a aceitar a primeira oferta. O departamento de Puy-de-Dôme foi dos primeiros a praticar regularização em massa, o que encorajou outros a tentar. Só a grande Paris concentrava mais portugueses.
Na sua história da imigração de Auvergne, Jacques Barou refere o papel desempenhado pelos portugueses em vários domínios. Entraram em força na construção, ganharam espaço na indústria (a Michelin até fez recrutamento directo em Portugal). Ajudaram a reequilibrar a demografia, recuperaram diversas comunas vinícolas da periferia de Clermont-Ferrand que se tinham esvaziado no pós-guerra.
O realizador José Vieira fez um documentário sobre a recuperação de uma dessas aldeias, La Roche-Blanche. E notou como muitos ali encontraram uma possibilidade de reinventar o mundo rural que ficara para trás. Não se fixaram pela oferta de emprego, mas de casa para instalar a família.
José comprou casa na Roche-Blanche em 1966. Tinha de ter habitação digna para chamar a mulher e os filhos, que já iam em cinco. “Isto estava ao abandono”, recorda. As obras faziam-se nos fins-de-semana, com a ajuda de familiares e amigos. “Éramos todos pedreiros. Uns não sabiam o que era uma colher para botar massa à parede quando vieram, mas foram aprendendo.”
Ele viera do Largo da Pedreira, Santo Emilião, Póvoa do Lenhoso. E muitos vizinhos de outras aldeias dos distritos de Braga e Porto. Em 1968, 75% dos residentes eram portugueses. Já não são. “Uns morreram, outros foram embora”, diz. “Alguns dos que voltaram para Portugal tornaram a vir”, ri-se. Não são só por terem os filhos em França. “Aqui, a assistência medical é melhor.”
Auvergne já deixou há muito de fazer recrutamento directo em Portugal, mas mantém a preferência por europeus. Assinou acordo com duas universidades romenas para receber internos e, com isso, aumentar o número de médicos a trabalhar nas zonas rurais. E todos os anos vai a uma feira de migração em Utreque na tentativa de atrair holandeses que sonham com casas antigas e isoladas.
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