Repovoar o interior

Depois de duas décadas a perder população, Auvergne, no Maciço Central francês, decidiu dar prioridade ao repovoamento. Há uma agência regional só para atrair novos residentes. Em Portugal, as zonas do interior esvaziam-se e envelhecem. Até 2040, perderão 157 mil habitantes, se nada for feito. Fomos a várias localidade de Arganil perceber porque tendem a ficar vazias as aldeias deste concelho.

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Índice de envelhecimento

Fonte: Pordata

População residente por grupo etário

Fonte: Pordata

Reportagem

Um mundo rural moderno está a desenvolver-se em Auvergne

Um postal ilustrado. Sucedem-se tonalidades de verde. O silêncio é entrecortado pelos chocalhos das vacas que pastam em frente. Avista-se uma ave de rapina. De repente, uma sinfonia. É Véronique Gaillard a oferecer milho a um galo, dez galinhas, dois gansos e dois perus.

Fosse Véronique mais nova não trocaria a cidade pelo campo. “Ó, nem pensar.” Quando era mais nova, volta e meia sentia uma vontade incontrolável de mudar de cenário. Tantas vezes alterou a morada em Lyon. Durante cinco anos, fez trabalhos sazonais só para poder viajar mais.  

Ninguém diria que aos 44 anos compraria uma casa a cair, a 900 metros de altitude, entre florestas, charnecas, pântanos e lagos. E, no entanto, ei-la com o marido, Jérôme, o cão, Fly, o gato, Ponpon, em Artense, no Parque Natural Regional dos Vulcões de Auvergne, no Maciço Central francês.

Às vezes, quando menos se espera, a vida fica virada de pernas para o ar. Véronique foi despedida da empresa de exportação de máquinas de soldar que a empregou ao longo de 16 anos – o pai passou o negócio ao filho e o filho despediu os empregados mais velhos. Não foi devorada pelos sentimentos obscuros que tendem a atacar quem fica sem emprego. “Vamos viver para Auvergne”, propôs-lhe Jérôme.

Jérôme conhecia bem a região. Trabalhara três anos no centro de pesca no Lago Landie. Regressara a Lyon só para estar mais perto de Verónique. Pediu uma rescisão amigável. Iam “à procura de serenidade, longe do stress da cidade”. Um dia, um amigo ligou-lhes a falar no que já fora a morada de um velho lavrador, um sítio isolado, perto de Marchal, uma aldeia de 88 habitantes.

Era uma casa, um estábulo e um barracão, mesmo ao pé do Lago Tact, com vista para os montes do Cantal e para o pico de Sancy, o ponto mais alto do Maciço Central. Perfeito para eles. “Ele queria a água, eu queria a vista”, recorda. Só que estava tudo a ruir, não havia sanita nem chuveiro. Conseguiriam reunir dinheiro para renovar, para modernizar, para ter um modo de vida?

Nem imaginavam que o Conselho Regional de Auvergne tivesse políticas próprias para recém-chegados. Souberam numa feira organizada pela Câmara de Comércio. “Há muito pouca gente aqui, então eles encorajam a vir”, diz ela. E muitos têm ido, sobretudo, casais entre os 30 e os 40 anos, que avançaram para um segundo filho e precisam de ter uma casa maior, de perder menos tempo no trânsito, e casais que estão perto dos 50, que já viram partir os filhos e/ou têm algum sonho por cumprir.

Uma agência para inverter o declínio  

Eleito um novo Conselho Regional de Auvergne em 2004, por toda a região se organizaram reuniões para perceber o que era prioritário para os cidadãos. E em todo o lado se pediu solução para o esvaziamento das aldeias, o seu envelhecimento abrupto, o desaparecimento do mundo rural.

Onde já ia o apogeu demográfico de 1886, ano em que a região contou mais de 1,5 milhões de habitantes. Houve um grande êxodo rural no final do século XIX (impulsionado pela industrialização) e duas grandes guerras no século XX (causadoras de muitas mortes de homens em idade activa). Em 1954, quando foram ver, Auvergne estava reduzido a 1,2 milhões.

A situação melhorou. E para isso muito contribuiu quem de Portugal fugiu à pobreza, à ditadura e à guerra colonial. Eram os chamados “gloriosos trinta”, o período 1954-1982, no qual a França viveu grande crescimento económico e demográfico. Só que Auvergne faz-se de montanhas e planaltos: a taxa de natalidade manteve-se inferior à média e o saldo migratório também.

Não por acaso, das estradas avistam-se extensos campos de cereais e girassóis e irregulares zonas de pasto. Nos anos 80 e 90, até pelas políticas da Comunidade Económica Europeia, as propriedades agrícolas concentraram-se e mecanizaram-se. Auvergne assistiu ao segundo maior êxodo rural da sua história. Entre 1982 e 1999, continuava a morrer mais gente do que a nascer e a sair mais do que a entrar.

Perante as previsões catastróficas do Instituto Nacional de Estatística e a vontade expressa pelos cidadãos, em 2005 o Conselho Regional criou a Agência Regional de Desenvolvimento dos Territórios de Auvergne. E é lá que, sob a direcção de Pascal Guittard, 20 peritos de áreas diversas desenvolvem programas para atrair pessoas, estruturar ofertas, formar e monitorizar agentes territoriais.

“Foi um grande desafio”, recorda Guittard. “Não tínhamos nenhuma referência. Estávamos a fazer algo que não existia em nenhum lugar.”

Há na Europa lugares com problemas semelhantes – talvez nenhum com a gravidade de o interior de Portugal – só que os contextos sociodemográficos e culturais são tão diversos que é difícil fazer comparações. Limousin, mesmo ali ao lado, emergia como exemplo de boas práticas. O Conselho Regional de Limousin esforçava-se para “vender” a região. Instalara uma “célula de acolhimento”, encarregada de informar, orientar e acompanhar projectos de recém-chegados, e montara uma rede para os apoiar nos diversos territórios. Fizera também parceria com a Collectif Ville-Campagne, uma associação nacional empenhada no repovoamento das zonas rurais.

Já se notava algum movimento das cidades para os campos em França. Membros do Collectif Ville-Campagne, como o escritor Bernard Farinelli, tornaram-se porta-vozes dessa nova tendência. Alguma imprensa, como a revista Village”, ia mostrando entraves: resistência nas comunidades rurais, receosas dos recém-chegados; desconhecimento das potencialidades de cada território; custos de instalação; obstáculos administrativos motivados por desarticulação entre sectores e serviços…

Respostas integradas

O que estava a ser feito em Limousin era inspirador – sobretudo o facto de trabalharem com os territórios –, mas insuficiente, enfatiza Pascal Guittard. Precisavam de atacar em diversas frentes, de forma articulada. Trataram de delinear um plano, servindo-se do marketing territorial e da internet.  

Para atrair pessoas, dita Gérard Lombardi, responsável pelo departamento de marketing territorial e emprego da agência, “é preciso pelo menos três coisas: primeiro, temos de dizer: venham!; segundo, temos de ter algo para oferecer; terceiro, temos de ajudar a fazer acontecer.”

Se um município se pusesse a trabalhar sozinho, não lhe parece que pudesse obter resultados significativos. “É preciso ter uma escala relevante”, enfatiza Lombardi. Também é importante ter um nome conhecido. Qual seria a escala relevante em Portugal? Trás-os-Montes, por exemplo? Interior?

Auvergne é conhecida pelos vulcões, pelos queijos, pela História (foi ali que Vercingetórix derrotou Júlio César). Valendo-se da natureza e investindo na cobertura de banda larga, ia apresentar-se como um lugar onde vida rural e vida moderna se combinam – para maior harmonia entre vida profissional e vida privada.

Decidiram criar um site, www.auvergnelife.tv, que é uma espécie de vitrine da região. Começaram por reunir oportunidades de negócio. O dono da padaria morreu ou quer reformar-se? Não há na aldeia quem tome conta? Estão há que pô-lo na Internet para que possa ser visto pelo padeiro que em Paris sonha com Auvergne.

“No primeiro ano, só colocámos quarenta ofertas no site”, recorda o director da agência. Volvidos dois anos, tinham 200. Agora, 900. O número foi aumentado à medida que a estratégia foi sendo reconhecida pelos parceiros locais. “Os territórios têm de estar atentos, têm de reagir, de nos dizer.”

Não são decisões que se possam tomar de olhos fechados. A agência paga um, dois, três fins-de-semana para que a pessoa conheça o sítio, faça contactos, compreenda a dinâmica local. E tem um programa mais extenso, exclusivo a nível nacional e reconhecido pela União Europeia, a que chamaram “residências de empresários”. Para incentivar quem quer recuperar ou criar uma empresa a fazê-lo já no próprio local, mediante certas condições, atribui-lhe uma verba mensal – dois a seis meses.

A equipa de Guittard sabe que só 40% de uma tomada de decisão destas é racional. Investe nos 60% emocionais. A mensagem que lhe compete passar é: “Nós podemos ajudá-lo a encontrar casa para a família, infantário ou escola para as suas crianças. Na verdade, nós podemos ajudá-lo a tentar.”

Indispensável envolver os territórios. Em muitos deles há alguém, que faz parte dos serviços locais, a ajudar os recém-chegados a encontrar o que precisa. A agência está agora a criar uma rede de “life coaches”, isto é, a desafiar moradores a “adoptarem” um recém-chegado, ou melhor, a serem a pessoa a quem pode ligar a perguntar onde há festa ou qual o melhor sítio para comer “truffade”.

Aposta no ecoturismo

O ecoturismo é um desígnio da região. Jérôme recebeu 1700 euros durante cinco meses. “Foi muito bom”, diz. Ainda não tinham assinado a escritura da casa. Compraram-na. E compraram 4 mil metros quadrados de terreno, junto ao Lago Lastioulles, exclusivo para projectos turísticos.

Nunca trabalharam tanto. “Fizemos tudo”, orgulha-se Véronique. Só o que exigia perícia ficou para quem a tinha. Às vezes, nos fins-de-semana, familiares ou amigos apareciam para dar uma mão. Já lá vão quase quatro anos, abriram o centro de pesca. E eis Jérôme, ex-gerente de equipas de pesca à mosca, instrutor certificado, ao dispor de quem aparecer, com a sua selecção de artigos. Vende-os, mas também passa licenças, dá conselhos, aluga barcos e outros equipamentos. Depois, é que abriram a unidade de turismo rural. E eis Véronique, feita gerente, relações públicas, contabilista, recepcionista, empregada de mesa, mulher de limpeza.

Ele ri-se só de se lembrar da descrença alheia. Quando anunciavam que iriam criar um centro de pesca numa aldeia com menos de 100 habitantes, a família, os amigos, os vizinhos arregalaram os olhos: ‘Estão doidos? Não vai resultar. Não há ninguém aqui.’” Está a funcionar. A loja é especializada. Não há igual num raio de cem quilómetros. E há muita truta para pescar nos lagos de Artense.

Nada os preocupava mais do que não ter o dinheiro necessário. Nada os preocupa mais ainda agora. Empataram as poupanças e pediram um empréstimo. A agência prontificou-se para orientar, ajudar a obter financiamento, pagar alguma curta formação. E ofereceu acompanhamento jurídico, comercial ou técnico nos primeiros três anos. E eles tiveram ajudas de outras entidades, incluindo 20% do total do investimento e isenção fiscal durante cinco anos (a partir daí pagam uma percentagem cada vez maior até ao décimo ano, altura em que passam a pagar tudo).

À agência não interessa só que as pessoas venham, interessa que fiquem. Prontifica-se para fazer estudos de mercado para perceber se o negócio vale a pena ou se tem de ser repensado. Um apoio precioso, por exemplo, para Xavier Condroyer e a mulher, Christine, que viraram as costas a Bordéus e abriram uma pequena unidade de produção de cerveja em Picherande. A cerveja que ele faz com água dali e ela vende a 30 bares e lojas da zona chama-se “Gaia”, mãe terra na mitologia grega.

Não basta atrair empresários. Um dos problemas de um território despovoado é responder às necessidades de mão-de-obra especializada, aponta Lombardi. A oferta de emprego está elencada no site e as vagas para as quais é difícil encontrar candidato na região têm a etiqueta “new deal”. Quer isto dizer que a agência paga a renda nos três meses de período experimental. Como chegam a quem está longe? “As pessoas vão ao Google, digitam o que procuram e a nossa oferta aparece. ‘Por que não pensas em Auvergne? Nós temos um trabalho para ti. Não custa tentar.’

A agência gere um orçamento anual de quatro milhões de euros. É um esforço da região – embora 20% venham da União Europeia – com resultados. Guittard cita um estudo feito por uma entidade externa segundo o qual os três milhões de euros investidos pela agência entre 2006-2011 em “residências de empresários” tiveram um retorno de 47 milhões para a região, mas não se detém a esmiuçar cada programa. Tem a certeza de que mais de duas mil “residências de empresários” ou perto de 400 “new deal” representam uma pequena parte do movimento migratório.

Auvergne está a acolher 17 mil novos residentes por ano e isso tem muitas explicações, desde logo as campanhas provocatórias que fizeram sobre o quanto é mau viver em Paris e o quanto é bom viver em Auvergne. O campo tornou-se apetecível em França, sobretudo desde que a crise despontou, mas a batalha de Auvergne estaria perdida se a região tivesse desinvestido nos serviços de proximidade, sublinha Guittard. Se o tivesse feito, não poderia “vender-se” como a segunda região de França em qualidade de vida e em serviços de proximidade, com 100% de cobertura de banda larga, taxa de desemprego abaixo da média. “Ninguém se muda para o deserto.”

O repovoamento deverá manter-se uma prioridade quando, em 2016, Auvergne se fundir com Rhône-Alpes. “Por ora, o aumento da população deve-se todo aos recém-chegados. Temos de aumentar em 10% o fluxo migratório de modo a ter um impacto no saldo natural”, reconhece Guittard. E os territórios que beneficiam do maior crescimento populacional ficam perto dos principais centros urbanos. O repovoamento das zonas mais rurais faz-se a ritmo bem mais lento.

A equipa desenvolveu uma nova campanha de valorização, muito assente na tal ideia de ruralidade moderna, e inventou mais dois programas para chamar gente e impulsionar projectos inovadores: o “new deal digital”, com seis meses de salário, seis meses de casa, seis meses de escritório, e “new deal biotecnologia”, com um ano de salário, um ano de casa, um ano de laboratório.  

Olhando para trás, o director regional lamenta não ter envolvido mais os cidadãos de cada localidade, sobretudo os eleitos. “Seriam mais positivos, o que tornaria tudo mais eficaz”, considera. Poderiam reforçar a oferta, como fez a Comunidade de Comunas dos Países de Murat, uma associação de 13 aldeias perdidas no Cantal, mas a uma hora e meia de Clermont-Ferrand.

No centro de Murat abriu-se uma Casa de Serviços, que permite, por exemplo, ler os jornais, consultar ofertas de emprego, aceder a serviços públicos online e imprimir formulários, falar com funcionários de diversas entidades públicas e privadas. Há 36 serviços que ali vão, à vez, atender cidadãos. No mesmo edifício funciona um centro de teletrabalho. “Construímos uma formação especial para ajudar as pessoas a criarem a sua actividade económica em teletrabalho”, explica a directora, Corinne Ibarra. “Pessoas de toda a França vêm aqui. Todos os anos organizamos quatro acções de formação. E todos os anos cinco a sete pessoas decidem ficar.”

“Isto é um sucesso porque a região está a trabalhar connosco”, acredita. “Se o projecto é interessante, podemos ajudar. Durante seis meses, têm aqui um escritório, um “coach”, mil euros de salário, renda de casa paga.” E auxílio não só para encontrar casa, escola, mas também trabalho para o cônjuge.

Inspirada naquele pacote, no ano passado a própria Comunidade de Comunas lançou um concurso de ideias. Victoria Bechon, de 26 anos, venceu uma das três bolsas. Natural da Sibéria, está a desenvolver um projecto dirigido a turistas russos, que inclui transfer, serviço de guia/intérprete, sessão fotográfica.

Há num lado pessoal na opção dela e do marido, Bastien: querem ter dois ou três filhos e vê-los crescer no campo. E um lado profissional: ela estudou Engenharia de Comunicação, ele Turismo e ambos querem trabalhar em ecoturismo. Os serviços, diz ela, também contaram: “Quando decides mudar, tens de saber o que há. Aqui, há centro de saúde, escola, comércio. E ajuda para trabalhar.”

Corinne bem se lembra de como no princípio era difícil explicar à comunidade local a utilidade daquilo tudo. “Agora entendem.” O saldo migratório, que chegou a ser de menos quatro nos anos 90, é agora de mais quatro. Desde 2008, ali nasceram 36 negócios digitais, que trouxeram 94 novos residentes, o que tem impacte num território com seis mil habitantes dispersos por 13 aldeias. “Mostramos que no mundo rural também é possível atrair jovens e trabalhar pela Net.”

Nem toda a gente se adapta. Véronique está convencida de que é preciso apreciar a natureza, mas também ter uma certa personalidade ou estar numa certa fase da vida. “Estamos aqui há cinco anos e meio”, suspira. “É o segundo ano que temos tudo pronto. É muito trabalho! O Jérôme não tem dificuldades em viver aqui. Eu…depende. Há 3 meses estava um bocado…. Acho que estava muito cansada… É o começo… mais dois anos e estamos mais confortáveis financeiramente. Podemos sair.”

Imagina-se a envelhecer ali. Nunca teve problemas com vizinhança, como outros neo-rurais. “Gostam de nos ver. Quando viemos, diziam-nos: ó, é tão bom ter gente nova a viver aqui.” Vai a conduzir pelas estradas estreitinhas e sorri e acena a toda a gente. Acha que o melhor é “meter conversa, participar nas festas, fazer parte do desenvolvimento local”. O pior “é criticar a região, achar que se é superior” a quem é dali. “Não há como ser humilde e estar pronto para aprender.”

Véronique e Jêmore Gaillard abriram um centro de pesca no Parque Natural Regional dos Vulcões de Auvergne
Auvergne “vende-se” como um lugar onde natureza e vida moderna se combinam
Xavier Condroyer e a mulher, Christine, que viraram as costas a Bordéus e abriram uma pequena unidade de produção de cerveja em Picherande