Endividamento Privado

A Croácia viveu, após a crise de 2008, o fim do seu sonho de expansão. Desde então, o país luta com a recessão. Tal como em Portugal, o problema tem um nome: dívida privada. Uma em cada quatro pessoas tem a conta penhorada. O Governo criou o programa “Começar de Novo”, que perdoa dívidas dos cidadãos carenciados. Em Portugal, fomos falar com um magistrado que lidou com centenas de processos de falência privada. E conhecemos um ex-empreiteiro que foi obrigado a recomeçar do zero.

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Fonte: Pordata; Banco Mundial

Duração média (meses) de processos cíveis nos Tribunais Judiciais

Fonte: Pordata

Na Croácia perdoam-se as dívidas privadas para “começar de novo”

Ivan Šcuric sobe as escadas do centro de segurança social de Zagreb, no último prédio da rua Eugena Kumicica, já depois da uma da tarde. Aqui, os serviços não param à hora de almoço dos funcionários que trabalham das 8 à 16 – e o gabinete que Ivan procura não é excepção. “Szlužba za otpis duga”, diz o cartaz, em croata. “Serviço de anulação de dívidas” é a estranha tradução, em português.

Lá dentro, Biljana Banjac, uma jovem funcionária, recebe os papéis. Os dois estão de pé e nem se chegam a sentar. O caso de Ivan é simples. Deve 5600 kunas, cerca de 740 euros, bastante abaixo do limite máximo de 35 mil que a lei estabelece, e está a ser alvo de uma penhora pela companhia de telecomunicações a quem deixou de pagar a factura. Este estudante de agronomia, de 31 anos, faz parte de uma das estatísticas mais preocupantes da Croácia, a que mostra que há mais de 48% de jovens em idade de trabalhar que não conseguem ter emprego. Ivan faz parte de um outro universo terrível: o dos mais de 320 mil cidadãos desta república que têm a sua conta penhorada por terem dívidas pessoais.

Portugal e a Croácia têm mais em comum do que a preferência pelas sardinhas, o catolicismo e o futebol. A dívida das famílias e a das empresas portuguesas, somada, chega quase aos 200% do Produto Interno Bruto. “Elevados níveis de dívida do sector privado continuam a ser um obstáculo ao crescimento e à estabilidade financeira”, alertou o mais recente relatório do FMI sobre o assunto, em Maio deste ano. Reduzir essa dívida deve ser uma prioridade. Em Zagreb há uma forma inovadora.

Nas mãos de Biljana estão agora os três formulários exigidos pela lei que o Governo de Zagreb aprovou no dia 15 de Janeiro último. Um requerimento, preenchido por Ivan, que pede a anulação da dívida; a lista de dívidas tal como consta dos registos da autoridade financeira croata (FINA) que recebe todas as ordens dos credores para as execuções de penhoras (e onde o nome de Ivan consta, um dos requisitos para se poder candidatar); e a sua declaração de registo de propriedades, porque ninguém pode ver as suas dívidas anuladas se for proprietário de mais alguma casa além daquela onde reside.

Sem emprego fixo, “apenas com alguns trabalhos esporádicos”, Ivan vive com menos de 250 euros mensais. Para piorar, a renda da casa subiu e as propinas da universidade custam, por ano, 500 euros, para ele que é um “aluno externo”, ou seja, um estudante que completa cadeiras ao ritmo que escolhe e não no tempo previsto para a licenciatura.

Falta um dia para o fim do prazo. Na sexta-feira, 31 de Julho, acabam as candidaturas para esta anulação de dívidas, “única e irrepetível”, como repete o Governo de Zagreb, da coligação de centro-esquerda liderada pelo SDP. A coligação chama-se “có-có-ró-cócó”, (Kukuriku, tal como o restaurante onde foi selado o acordo entre os quarto partidos que têm a maioria absoluta no Parlamento de Zagreb).

Até ao último registo tinham-se candidatado 18 mil croatas, uma percentagem pequena dos devedores (cerca de 5%), justificada pelos apertados critérios de selecção. A medida estava pensada para muitos mais: 60 mil.

Essa era a expectativa de Milanka Opacic, 47 anos, a vice-primeira-ministra que tem a pasta das Políticas Sociais e da Juventude. Foi neste edifício de 11 andares, numa das principais avenidas de Zagreb, que nasceu a ideia que, agora, a imprensa internacional considera “pioneira” e até “utópica”. Todos os media de referência, da CNN ao Financial Times, dedicaram a sua atenção ao cancelamento das dívidas dos cidadãos pobres no mais recente membro da União Europeia, numa fase em que a outra dívida, a pública, ameaça a estabilidade comunitária. Fora da Croácia, o programa chama-se “Começar de Novo”, nome por que foi baptizado pela imprensa internacional, mas o passado regressa quando menos se espera.
 
A ministra quer “equilibrar” as coisas
À porta do ministério há três tendas toscas armadas. Veteranos croatas da guerra civil da ex-Jugoslávia (91/95) acampam à porta de Opacic. Vestem camuflados e exigem que o Estado lhes reconheça o direito a uma pensão vitalícia. Mas o tema está longe de ser um capítulo encerrado na vida pública do país. Há poucos meses, um homem imolou-se dentro de uma das tendas, regando com gasolina tudo à sua volta.

Talvez por isso, dentro de um pequeno cubículo de vidro, à entrada do Ministério das Políticas Sociais e da Juventude, se acotovelam seis seguranças, de uma empresa privada, vestindo um uniforme de camisas brancas com uma águia desenhada na manga. No chão do átrio, uma caixa de cartão espalmada faz as vezes de uma passadeira vermelha. Elevador acima, 11º andar, a ministra recebe-nos numa sala de reuniões.
 
“Esta medida apontava para um universo de 60 mil pessoas elegíveis, das 320 mil que são alvo de penhoras por dívidas, na Croácia. Desses 60 mil, sabíamos que 10 mil estavam automaticamente incluídos, por preencherem o primeiro requisito desta medida, que é serem beneficiários de prestações sociais. Dos restantes 40 mil não conhecíamos a situação financeira e de rendimentos. Estabelecemos um tecto de rendimentos. E por essa via não recebemos muitos pedidos de anulação de dívidas”, explica Opacic.

A ministra tem uma explicação para o baixo número de candidaturas – apenas 11 mil – de cidadãos, como Ivan Šcuric, que apresentam rendimentos abaixo dos 250 euros mensais, o tal tecto de que falava a governante. “Percebemos que não há muitos cidadãos na Croácia a viver abaixo da linha de pobreza. Isto tem um lado bom, porque é bom para a coesão social, mas leva-nos a perguntar o que fez com que estas pessoas, apesar de não viverem abaixo do limiar da pobreza, tenham chegado a esta situação de sobreendividamento”. Ou isso, “ou não queriam submeter a sua situação financeira ao escrutínio das autoridades...”

Não é assim tão simples, mostra-nos Ðurdica Vukovic, 46, na sala da sua casa em Novi Jelkove, no subúrbio de Sesvete. “Ninguém pode dizer que tenho luxos…”

Esta mulher de brilhantes olhos azuis e sorriso doce vive num bairro de prédios de habitação social, bloco atrás de bloco, rodeados por estradas vazias e passeios desertos. Vukovic cabia no primeiro critério da medida, ser beneficiária de apoios sociais, porque recebe uma pensão de invalidez de 1600 kunas (pouco menos de 200 euros) desde que padeceu de um cancro da mama, em 2006. Deve 40 mil kunas ao banco. Para entrar no programa criado pelo Governo até tentou pedir um novo empréstimo, de 5 mil kunas, para poder caber no limite da lei. Mas o banco não lhe quis emprestar o valor, tendo de seguida que lhe perdoar a maior parte da dívida.

É que a principal novidade no programa de anulação de dívidas da Croácia é a participação dos credores. O Governo, na prática, apenas interveio como árbitro numa relação contratual, “desproporcionada”, entre as empresas credoras e os cidadãos com dívidas. Ou seja, não é ao Estado que compete pagar as dívidas dos cidadãos. São os credores (229 no total) que aceitaram “esquecer” estas dívidas. Tirá-las dos seus balanços. Entre eles sete bancos, três operadoras de telecomunicações, empresas de serviços (gás, água e eletricidade) e quase todas as empresas públicas e municipais.
 
A filha de Ðurdica
O Governo demorou seis meses a convencer os credores das virtudes do programa. Damir Cemir, conselheiro de Milanka Opacic, foi o negociador principal e ri-se quando lhe perguntamos como foi a experiência. Fácil? “Hell, no!” (C’os diabos, não!), responde, em inglês. Por uma simples razão: “O sistema funciona muito bem para os credores. Por 50 kunas (cerca de 7 euros), qualquer credor pode accionar a agência financeira estatal (FINA) e automaticamente penhorar a conta bancária do devedor. Se este tiver dinheiro suficiente para pagar, fica saldada a dívida. Se não tiver, a conta fica bloqueada e a pessoa só pode movimentar o rendimento fixado pela lei como mínimo, até à dívida estar paga. Se perguntar a qualquer credor ele dirá que este sistema é excelente. Mas é difícil para as pessoas, e a função do Governo é equilibrar esta relação.”

Um limite, como o das 35 mil kunas de dívidas, é sempre arbitrário. Mas a vice-primeira-ministra (ver entrevista) explica que esse foi o valor acordado dentro dos limites das capacidades financeiras das empresas, muitas delas filiais de multinacionais sem autonomia para decidir sobre valores mais altos. “Mas todos tinham a consciência de que estas dívidas eram antigas, que podiam prescrever. E para as pessoas isto também significa o fim de um pesadelo”, acrescenta Damir.

Para Ðurdica Vukovic o pesadelo continua. A pensão de invalidez é igual ao valor que paga de renda. Separada, pela segunda vez, recebe do último ex-marido uma pensão de alimentos. “Não sei como viveríamos sem isso...”

A sua filha de seis anos está na escola. Voltará às 16 horas, e é essa a hora a que a nossa conversa tem de acabar, porque a mãe não quer que a criança se aperceba da entrevista. “Não me exporia desta maneira a falar das minhas dívidas se tivesse culpa, mas eu não tenho culpa nenhuma desta situação.”

A conversa começou horas antes da chegada da filha. Houve tempo para um café e muitos copos de água na sala despojada do bairro de Novi Jelkove. Numa prateleira na parede, uma estátua de Jesus Cristo e vários tomos de uma edição da Bíblia. Um sofá grande, uma mesa e quatro cadeiras, poucos móveis, de madeira clara. Nas paredes brancas várias fotografias da filha, sempre vestida com o mesmo fato lilás de princesa. Uma pequena televisão de ecrã plano, do tamanho de um monitor de computador.

Em Maio passado, o infantário estatal onde tem a filha organizou uma visita de estudo a um dos muitos parques naturais da Croácia. Custava 140 kunas por criança (cerca de 20 euros). “Eu fiquei desolada. Disse-lhe para esperar, que iria se tivéssemos dinheiro, mas a resposta dela desconcertou-me: ‘Mamã, eles sabem que nós mal temos dinheiro para comer, porque são tão maus?’ ”

Todos os meses, no dia 14 ou no dia 15, desaparecem 500 kunas da conta da mãe, para pagar a dívida. A este ritmo, e estando a pagar 40 mil desde 2012, ainda lhe restam cerca de quatro anos de sacrifícios.    

Não tendo direito ao perdão de dívida, Jukovic acha que se lhe fossem perdoados, ao menos, os juros (14%) “poderia pagar”.

É impossível não reparar na similitude entre estes casos individuais e a nossa história colectiva recente. Os cidadãos devedores não são muito diferentes dos países devedores. Até mesmo na forma como se diferenciam uns dos outros. Ðurdica não é como Ivan, Portugal não é como a Grécia. A verdade e a mentira destas afirmações é evidente.

Ðurdica não é Ivan. “Fui empresária durante 20 anos. A minha família tinha uma fábrica de alumínios. Em 2006 fui operada a um cancro na mama. Ainda estava a recuperar quando o meu marido pediu o divórcio. O que eu não sabia é que ele tinha criado uma empresa de segurança em meu nome e tinha contraído dívidas ao banco, em meu nome. A casa estava no nome dele. Perdi tudo e ainda fiquei com as dívidas. Arranjei um mau advogado e nem no tribunal consegui que percebessem que nada daquilo era dívida minha.”
 
“Toda a gente deve pagar as suas dívidas”
Veio para Zagreb em 2009, casou de novo e teve uma filha. Desde 2012, quando perdeu o último recurso, tem a conta bancária bloqueada. O último marido, ao menos, paga-lhe uma pensão de alimentos. Com a sua situação financeira teria direito a uma casa com renda social, mas as regras ditam que, para isso, precisaria de residir em Zagreb há mais de 10 anos. Só em 2019 é que vai conseguir... Por isso dispara para os vizinhos do lado: “Os ciganos e as minorias nacionais (sérvios da Bósnia) recebem casas de graça e destroem-nas. Não se percebe este critério...”

Anton Rupa, 62 anos, também não percebe a razão para se perdoar uma dívida com a de Ivan. “Toda a gente deve pagar as suas dívidas”, garante, com cara séria, este homem alto, magro, de barba e cabelo grisalhos. Depois de já ter saldado parte das suas, Rupa ainda não pode movimentar livremente a sua conta bancária, penhorada desde 2012. Nesta altura deve 621 kunas à empresa que fornece o aquecimento às casas de Zagreb. A que se somam 300 de “custas notariais” e 888 de “honorários de advogados” contratados pela empresa credora. Total: cerca de 190 euros... No caso deste homem, de calças e camisa cinzentas, os advogados eram sempre da mesma firma, em todos os casos de dívida por que passou. E cobravam invariavelmente mais do que o valor da própria dívida...

E se Vukovic não podia aceder ao perdão de dívidas do Governo por exceder o montante máximo da lei, Rupa, além de se opor à ideia, não pode porque ganha um pouco mais do que o rendimento mínimo admissível para o perdão.

Trabalhou, até 1995, como técnico de manutenção na principal empresa estatal de petroquímica da Croácia. Nessa altura foi despedido. Ele e outros 10 mil trabalhadores. Foram ficando, apesar de tudo, com a promessa de serem readmitidos após a privatização. Quando isso aconteceu, garante Rupa, “a empresa que valia 10 milhões foi vendida por um milhão”, e veio o que se esperava. Em 2003 a fábrica fechou. Faliu. “Deixei de poder pagar as minhas contas, enquanto não arranjei emprego. Eram sobretudo contas básicas: água, luz, aquecimento.”

Em 2012 o Governo anterior, do HZP, de centro-direita, aprovou uma lei de execução de dívidas e penhoras que tornou fácil aos credores, como vimos, reivindicar os valores em atraso. Desde então, Rupa também faz parte do universo de 320 mil “bloqueados”. Em 2010 eram apenas 25 mil, hoje são, se contarmos com as respectivas famílias, um quarto da população croata. Em Portugal há mais de 100 mil pessoas na mesma situação de Rupa, com os salários penhorados por dívidas.

E uma dívida, por mais pequena que seja, pode ser um caso de vida ou morte. Em 2012, um homem lançou-se da janela do seu apartamento em Pula, cidade costeira próxima de Veneza. Miriam Kervatin recorda-se bem:  “Estava desempregado há muito tempo, antes era um pequeno empresário. A empresa fechou, não conseguia pagar as contas. Tinha mulher, filhos, problemas...”
 
O medo do “dia seguinte”
Foi o “gatilho para a acção”. Miriam criou, em poucos meses, em Julho de 2013, a associação “blokirani”, que significa em português “bloqueados”. Miriam é uma figura pública na Croácia. Especialista em relações públicas, foi uma das primeiras activistas pelos direitos humanos e, sobretudo, uma defensora da igualdade de género, na transição do regime pós-titista. Recebeu formação da USAID, escreveu livros.

“Com 330 mil bloqueados, que multiplicados por três membros do agregado familiar são um milhão, a economia do país está bloqueada. A energia da Croácia está bloqueada.” Na sua associação, conta, há de tudo: “Pessoas normais: pensionistas, vizinhos, estudantes, pescadores, agricultores, polícias, bombeiros, médicos, desempregados, mães solteiras, doentes a fazer quimioterapia. Muitos estão a tomar anti-depressivos … Sermos bloqueados significa que nos mantêm num estado de quase escravatura em que o aparelho de Estado funciona como uma máquina multibanco para os credores.”

A própria fundadora tem uma dívida, cerca de 150 mil euros por uma casa, que deixou de poder pagar quando a crise fez disparar o preço da mensalidade e dos juros. Mas o seu discurso centra-se, sobretudo, o quadro geral. “Nos últimos anos, a Croácia perdeu 250 mil postos de trabalho. Isto são mais 250 mil bloqueados.” Em Portugal, no mesmo período, perderam-se 290 mil empregos.

“É um assunto de vida ou morte. Ser-se bloqueado, na Croácia, é uma longa e lenta morte, uma tortura, um desespero, um medo constante do dia seguinte…”, desabafa.

Talvez por isso, todos os croatas endividados com que falámos mantêm as suas memórias organizadas em pastas, caixas, dossiês. Anton Rupa usa um envelope A4 para guardar os seus documentos.

Ivan traz a sua pasta debaixo do braço. Ðurdica guarda uma caixa de cartão azul no armário da sala.

A meio da conversa, quando nos fala da sua antiga casa, uma vivenda de dois andares, levanta-se e pega na caixa azul. Abre a tampa com cuidado e tira vários recortes de jornais. “Para que não acreditem só na minha palavra e possam ver com os vossos olhos…” As notícias mostram uma avioneta de dois lugares que se despenhou no telhado de uma casa. “Esta era a minha casa….” A mulher ri. O acidente não provocou vítimas, e a destruição já não pesou nas suas contas, porque já não era ela que lá morava. O ex-marido, que ficou com a casa, foi também ele declarado insolvente e perdeu todos os seus bens.

A senhora Vukovic fala de tudo com energia. Guarda um sorriso, mesmo quando revela que a sua filha de seis anos aprendeu a mentir, na escola, para manter a dignidade. “Ela contou-me que como todas as outras crianças iam de férias em Julho e Agosto, começou a dizer que nós não fazemos isso porque vamos todos os fins-de-semana para uma casa na praia.” A pequena mentira até é verosímil. As amigas da filha não vão a sua casa brincar nos fins-de-semana porque não há nada para lhes oferecer de lanche. “Sumos só uma vez por ano…”

Os olhos azuis enchem-se de lágrimas uma única vez, já de pé, perto da porta da rua, quando arruma a caixa azul e se prepara para as despedidas. “Eu tenho uma irmã rica na Alemanha, sabem? Até hoje, nem uma prenda para a sobrinha mandou…”

O “Jorge Mendes dos penhores”
Falar de dívidas, de dramas familiares, de casas que se perderam, de contas ridículas que não se conseguem pagar, é como cruzar uma daquelas passagens entre prédios, tão comuns em Zagreb. Cada uma destas veža é diferente das outras. Uma pode acabar num pátio cheio de jovens americanos que tiraram um ano para viajar pela Europa e estão há meses em Zagreb, trabalhando num hostel a troco da pernoita. Aí há guitarras, MacBooks, wi-fi e café expresso. Noutra, quase ao lado, Venhar está sentado numa pequena loja atrás de uma secretária. Do lado de fora um letreiro anuncia: “Loja de penhores”.

“Compro tudo, mesmo coisas que não me interessam para nada…”, diz a rir, enquanto se levanta e nos aponta para prateleiras que quase parecem uma instalação artística pós-moderna: cabos SCART usados, fruteiras de cristal – “toda a gente tem uma destas em casa…” –, livros. “Para que é que eu quero livros?!”

“As pessoas estão desesperadas, não têm dinheiro para comer. Vendem tudo…”, conta. Recebe uma média de “150 clientes por dia”, mais vendedores que compradores. E este jovem, de 25 anos, viu aí uma oportunidade de negócio. “Há três anos estava a tomar café com amigos e a pensar alto no que podia fazer. Decidi abrir esta loja porque havia um reality show americano sobre uma loja de penhores. Foi a primeira na Croácia. Agora só em Zagreb há sete e três delas são minhas.”

Por isso, quando descobre que somos portugueses, Venhar diz-se “o Jorge Mendes dos penhores”. Mas em melhor: “Ele compra jogadores de futebol talentosos, eu compro tralha.” Mesmo sobre futebol, o jovem empresário regateia. Ronaldo, por exemplo, nunca seria o que é se não tivesse um jogador, talentoso e incompreendido, como Quaresma, a seu lado, nos júniores do Sporting.

A lição a extrair talvez seja aquela que John Donne forneceu para uma célebre epígrafe de Hemingway em “Por quem os Sinos Dobram”: “Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório (…)”

Se não somos ilhas, isolados, parecemos. Sarajko Baksa, que assina “PhD”, de doutorado, e é um dos endividados com quem só conseguimos falar por e-mail, refere, por exemplo, que a Croácia tem um problema único na Europa: a emigração de jovens qualificados. Božena Horvat-Alajbegovic, que dirige o centro de segurança social de Zagreb, por seu lado, aponta-nos outra característica “incomum” deste país dos Balcãs: “A Croácia é um dos raros casos na Europa onde as pessoas em vez de arrendarem casa se endividaram para ter casa própria.”

Não adianta explicar que essas “especificidades” são sinais comuns de um problema que é algo mais do que croata, grego, português, espanhol ou irlandês.

A directora, “com 20 anos de experiência em serviço social”, testemunha “como as pessoas ficaram gratas” por este perdão de dívidas que nos trouxe a nós, e sobretudo a Ivan Šcuric, ao centro de atendimento da rua Eugena Kumicica.

Numa tradução livre do nome que a imprensa internacional atribuiu ao programa de perdão das dívidas – “Começar de Novo” – Božena Horvat-Alajbegovic chama-lhe “Novas Oportunidades”. O nome pode não ser novo, tal como a ideia (que já vem de tempos tão recuados, que foi precisamente a partir de um perdão deste tipo que se conseguiu decifrar a escrita hieroglífica do antigo Egipto na Pedra da Roseta), mas para todos os efeitos, é uma novidade, esta, de perdoar dívidas pessoais em larga escala. O que bate certo com esta Europa, com o nosso isolamento dentro dela, e com o desabafo final de Venhar, o dono da casa de penhores: “Isto não é a Europa. Aqui não há direitos. Só o de estar calado…” E esperar por melhores dias, não? “Sim. Temos o direito de esperar por melhores dias.”

Ivan Šcuric
Ðurdica Vukovic
A loja de penhores de Venhar