Goitom está deitado no chão da sala de aula, corpo completamente contorcido em posição fetal. A professora Adélia aproxima-se dele: “Estás no deserto, não estás?” Virando-se para o resto da turma, pede aos alunos que completem a frase: “Ele precisa de água para…” E todos, em coro: “Viveer!!!” O pequeno teatro improvisado permite aos alunos aprenderem vocabulário sobre necessidades vitais como “comer”, “respirar”, viver”, mas Adélia aproveita o momento para introduzir um leque de palavras mais complexas. Agarrando Goitom pela cintura, fá-lo deslizar pelos quadros da sala de aula e insiste com ele para que repita as frases: “Eu preciso de rir para viver”, “eu preciso de trabalhar para viver”, “eu preciso de amar para viver”. Os alunos repetem as frases ou variações das mesmas, mas Adélia preparou uma última para ensinar Goitom a falar sobre um problema que o ensombra. “Eu preciso de sentir a minha filha que está na Itália”, lê Goitom com dificuldade.
Goitom foi um dos últimos refugiados a chegar a Guimarães, cidade que desde Fevereiro deste ano já acolheu 24 cidadãos sírios, eritreus e da República Centro-Africana no âmbito do programa de recolocação promovido pela União Europeia. No fim de 2015, a Câmara Municipal de Guimarães, juntamente com mais de 20 entidades do município, o apoio do Conselho Português para os Refugiados (CPR) e vários voluntários, desenhou um plano de acção para acolher pessoas com necessidade de protecção internacional ao abrigo do projecto “Guimarães Acolhe”.
Adélia Pires Gamboa, 61 anos, foi uma das professoras voluntárias para ensinar português aos refugiados e é isso mesmo que faz, três vezes por semana, durante duas horas, na Escola Secundária Francisco de Holanda. Adélia não tinha tido ainda a experiência de ensinar a refugiados uma nova língua e, além de seguir a metodologia da profissão, muitas vezes deixa que sejam as necessidades dos refugiados ou as suas emoções a ditar o rumo da aula. Neste momento, está particularmente preocupada com Goitom, um eritreu que deixou a companheira, grávida, em Itália. “Eu a dar a aula tenho em consideração as emoções deles — não precisamos só de comida, precisamos de amor, de afecto, de um abraço. Eu às vezes choro com eles”, diz Adélia, num estilo muito afectuoso que parece conquistar os refugiados, que riem à gargalhada e aproveitam as aulas para desabafar com ela e procurar soluções para o que os preocupa.
Há uns tempos, quando tentava ensinar as palavras do corpo humano, Adélia lembrou-se de levantar a questão da hemodiálise, feita por três sírios do grupo. A professora perguntou-lhes: “E fazer um transplante?” E logo os sírios: “Outro rim, outro rim!” E Adélia, de novo, voltando-se para a turma: “Há aqui alguém que queira dar um rim?” Mohammed, um dos sírios, disse de imediato: “Para mim, para mim!” E Adélia serviu de intermediária, questionando Mohamed, refugiado da República Centro-Africana (RCA), que aceitou doar o rim. Nesse momento, Mohammed, o sírio, levantou-se e deu um abraço forte a Mohamed, da RCA. “Daí nasceu a aula. Surgiram as frases todas — Mohamed vai dar, Mohammed vai receber”, diz Adélia. Os dois refugiados saíram da sala de aula directos ao hospital para falar sobre esta possibilidade com a médica que os tem acompanhado.
O acolhimento e a integração de refugiados em Guimarães aproveita uma rede já montada de apoio à acção social para com os mais desfavorecidos. O projecto mobiliza desde técnicos da autarquia a professores, médicos, advogados, empregadas da limpeza, motoristas, cozinheiras e empresários locais. A Santa Casa da Misericórdia, a Venerável Ordem Terceira de São Francisco e o Centro Juvenil São José providenciaram casas e centros de acolhimento. O infantário do Lar de Santa Estefânia integrou as duas crianças sírias — de seis e sete anos — num dos grupos do pré-escolar. Além desta rede formal, desenvolveu-se uma rede informal baseada nos afectos, na amizade e na partilha de experiências como idas ao supermercado, viagens durante o fim-de-semana, festas de aniversário e jantares multiculturais. Como não há nenhum intérprete de árabe ou tigrínia disponível, a comunicação faz-se por gestos, por ferramentas de tradução digitais ou pela “linguagem dos afectos”, como diz Paula Oliveira, vereadora de Acção Social da Câmara.
“Lá vão elas ver dos sírios”
Três vezes por semana, ao final da tarde, os sírios Mohammed, Samira e Olfet deslocam-se de ambulância até à clínica de diálise Uninefro, que fica perto da casa onde vivem 12 dos 24 refugiados acolhidos por Guimarães. Quando chegam, sobem as escadas em alvoroço para cumprimentar a “amiga Joana”. Joana Bodas, socióloga e coordenadora do serviço de Endoscopia Digestiva da Santa Casa de Misericórdia, que funciona perto da clínica de diálise, não está directamente envolvida com o tratamento, mas tornou-se próxima dos sírios. “Eu faço o papel de amiga porque eles não têm ninguém e não pode ser tudo institucional. Estou aqui para o que eles precisarem”, diz.
Joana já levou o marido e os dois filhos a um jantar sírio cozinhado por Samira e Olfet e fez uma viagem ao Santuário da Penha com uma outra família síria — Omar, Mohammed e Hazaa. A socióloga explica que nestes momentos conversam sobre como as mulheres portuguesas há 50 anos também usavam mantos para ir à igreja, sobre o facto de Portugal também ter tido uma ditadura. Quando ouviu passagens do Corão pela primeira vez, Joana emocionou-se. “O que diz o Corão é o que diz a nossa Bíblia e aquilo que achamos de eles serem todos radicais não faz sentido nenhum”, diz. Joana, que passa os dias a ler sobre a Síria, está tão envolvida nas vidas dos refugiados que não consegue desligar. “Por vezes o meu sogro vê-me sair para ir ter com eles e diz assim: ‘Lá vai ela ter com os sírios’.”
Custódio Moreira, um paciente de 72 anos, está também na sala de espera da diálise e distribui rebuçados de café que traz todas as terças, quintas e sábados para alguns colegas de tratamento. Mohammed agradece e repete — “meu amigo”. Ali, comunicam através dos rebuçados e de sorrisos. “Quando eles chegaram, eu punha o aparelho e saía na língua deles. Às vezes chego à beira deles e digo: ‘Estás bom?’ Ele só sabe dizer: ‘Obrigado’”, comenta Custódio. Mas as dificuldades na comunicação não fazem com que o português desconfie dos novos habitantes. “Eles têm direito a viver como nós. São pessoas que precisam de ajuda e eu não tenho inveja nenhuma deles”, diz.
Vão dar-lhes trabalho?
Nem todos os vimaranenses estão tão confortáveis com a chegada dos refugiados como Custódio Moreira. Quando o programa “Guimarães acolhe” arrancou, a Santa Casa da Misericórdia decidiu que o lar de idosos Recolhimento das Trinas seria um bom local para o acolhimento. A Segurança Social já há alguns anos que avisava a Misericórdia de que a casa não tinha condições para mulheres idosas e perto do momento de os primeiros refugiados chegarem, as idosas foram informadas de que iriam sair do centro no período de dois meses para serem transferidas para outros lares, como explica Noémia Carneiro, provedora da SCM em Guimarães. Na altura, a imprensa local e alguma imprensa nacional noticiou que sete mulheres seriam obrigadas a sair devido à chegada dos refugiados e isso provocou polémica entre a comunidade. “A câmara assustou-se, eu assustei-me um pouco. Os portugueses, e não apenas os vimaranenses, têm uma atitude um pouco esquizofrénica neste assunto. Ou são solidários ao máximo ou são reaccionários ao máximo”, comenta Noémia Carneiro.
Na Rua das Trinas, há quem não tenha ainda esquecido o que se passou e se recuse a acreditar na versão oficial da Santa Casa. Numa padaria da zona, enquanto vai servindo os clientes da manhã, Emília da Conceição começa por dizer que não tem qualquer problema com os refugiados a viver em Guimarães. “Somos todos pessoinhas. Eu só os vejo a subir e a descer a rua. Uma delas veio aqui uma vez comprar o pão. Agora o íntimo deles não sei — há pessoas boas e más em todo o lado”, diz. Emília faz um compasso de espera e interrompe bruscamente o discurso politicamente correcto para se queixar. “Aquilo de lhes dar o lar e tirar as velhinhas é que não”, diz, lembrando que as mulheres “tinham medo” e diziam: “Vêm aí os maus, podem-nos matar.”
No gabinete de acção social na câmara municipal, Paula Oliveira sublinha que os vimaranenses “estão sempre disponíveis para qualquer causa social” e que são sensíveis às questões da emigração e da destruição provocada pelas guerras, pois tiveram muitos familiares que foram a salto para França nos anos 1960, e outros que combateram no Ultramar. Mas isso não impediu alguma tensão. “Abordavam-me na rua e perguntavam-me: ‘Vocês vão acolher os refugiados? E nós, que não temos emprego e também temos necessidades, vão deixar de nos ajudar a nós’?” A vereadora garante que o plano “Guimarães acolhe” “não tira um milímetro à ajuda que estamos a dar aos vimaranenses”, até porque muitas vezes o trabalho feito com os refugiados é realizado fora de horas e gratuitamente pelos técnicos e voluntários. As bolsas mensais atribuídas a cada refugiado — 150 euros por adulto e 75 euros por criança — chegam da União Europeia e são distribuídas aos refugiados directamente pelo CPR.
Na Casa das Trinas, Maria Amélia Lopes Silva, 79 anos, aproveita o sol do quintal no meio da correria para o almoço. Os sírios e os eritreus com quem partilha a casa abrem as embalagens de comida preparada pelas cozinheiras da Santa Casa da Misericórdia e Amélia aguarda pela sua vez de utilizar a cozinha. Dona Amélia, como é conhecida, não quis deixar o centro quando as suas companheiras foram transferidas para outros lares e decidiu ficar, vivendo agora com 12 refugiados e mais uma portuguesa. “Gosto de estar aqui e não tinha necessidade de mudar. Quando eles vieram, algumas quiseram pôr-se ao largo, mas eu não”, diz. Maria Amélia diz que “todos se entendem”, que prova a “comida deles”, que os sírios lhe dão um rebuçado de café sempre que chegam da diálise e que por vezes lhe pedem ajuda e ela está disponível para ajudar. “Há dias, um deles tinha as calças abertas e eu disse-lhe: ‘Deixe cá ver que quando puder logo lhe coso isso.’ Ele ficou todo contente: ‘Muito obrigado’”, lembra.
Omar Hazaa passa pouco tempo na Casa das Trinas porque é um dos dois refugiados que já estão a trabalhar. Começou há cerca de dois meses num dos restaurantes McDonald’s da cidade. Todos os dias, anda meia hora para chegar ao novo trabalho, numa das saídas de Guimarães. Na Síria, onde trabalhava como engenheiro mecânico, geria mais de 200 pessoas, apesar de ter apenas 21 anos. Não precisava de se deslocar a pé para lado nenhum. Tinha um carro caro, uma casa só para ele. Uma vida independente, com tudo “aquilo que queria ou de que precisava”, recorda. Mas, quando começou a guerra na sua cidade, Homs teve de partir. “Eu e o meu irmão deixámos a Síria porque não queríamos ir para o exército. O meu trabalho é muito importante durante uma guerra e eu não queria matar ninguém nem queria ser morto.” Partiu com a família para Esmirna e daí para a Grécia, num barco com 64 pessoas e uma mulher em trabalho de parto. Chegou a Guimarães no fim de Fevereiro com o pai e um dos irmãos. Na Turquia, a mãe e dois outros irmãos, de 24 e 19 anos, esperam poder juntar-se à família em Portugal.
O jovem sírio está há menos de quatro meses a viver em Guimarães, mas diz sentir-se integrado, apesar de ter sido muito difícil começar de novo. “Tens as tuas coisas, dormes e acordas e tens de juntar tudo do zero”, diz, mas com a confiança de que vai recuperar a sua vida. “Quero ficar aqui algum tempo, estudar algo relacionado com engenharia mecânica e depois voltar para a Síria.” Para já, Omar tem uma vida em Guimarães. Ganha cerca de 470 euros por mês, está a pensar alugar uma casa com o irmão, que encontrou trabalho também no McDonald’s. Durante o dia, Omar compõe os menus do restaurante onde trabalha, não podendo ainda fazer atendimento ao público por não falar português. Quando tem tempo livre, sai à noite para bares e discotecas, está com raparigas, tem mais de cem amigos. “Eles dizem-me que eu sou como eles, que estou em casa, em família. Querem que eu fique aqui para sempre”, diz.
Reduzir a bondade?
Há uma sala fechada à chave na Casa das Trinas, mas os sírios Mohammed e Znati descobriram o que estava lá dentro. Uma portada no andar de cima tem vista para a divisão e, quando a abriram, os dois amigos descobriram uma capela imensa e inutilizada, praticamente às escuras. “Igreja, igreja”, dizem, divertidos. “Fazer quarto para mesquita”, continuam, em jeito de pedido. Há planos da câmara para os levar à mesquita mais próxima, no Porto, mas, por enquanto, os muçulmanos rezam nos seus quartos. Essa é uma das reclamações que por vezes vão fazendo, entre várias outras que se prendem com o baixo valor das bolsas mensais, com a comida que lhes é servida e à qual não estão habituados, com a lista de espera para o transplante renal. Talvez a principal queixa, e também a mais generalizada, é o facto de várias pessoas terem de partilhar a casa.
“As expectativas que eles traziam eram muito altas. Eles não queriam apenas fugir da guerra e encontrar um lugar pacífico. Eles trazem muitas referências em relação a outros países mais ricos onde à partida tudo corre melhor, de forma mais organizada e com mais dinheiro”, diz Noémia Carneiro. Joana Bodas diz que quem os acompanha tenta explicar que há vantagens em estar em Portugal. “Eu digo-lhes que na Alemanha nunca teriam a vida que têm aqui, no centro da cidade, com os vizinhos a abrirem-lhes as portas. Não me parece que seja assim em todo o lado.”
Para uma cidade que não estava habituada a receber refugiados, os últimos meses têm sido um desafio permanente. “Acho que ninguém estava muito preparado. Às vezes, a capacidade de resposta [das instituições] não é tão rápida quanto gostaríamos e como eles desejariam. E mesmo eles próprios muitas vezes não estão ainda prontos para assumir determinados papéis, por exemplo ao nível do trabalho. Nós não podemos pensar que vamos dar tudo e fica tudo bem. Não é assim. Há muitas questões a ultrapassar e temos de o fazer em conjunto, andando ao ritmo uns dos outros. É um processo lento, em que por um lado temos de estar sempre presentes e ao mesmo tempo não podemos estar demasiado próximo. Para construir autonomia. Podemos correr o risco de pensar — estamos a fazer isto tudo e depois queremos que eles fiquem cá. Não. Eles depois têm todo o direito de escolher ir para outro sítio”, diz Isabel Baptista, assistente social e coordenadora técnica do plano “Guimarães acolhe”.
Quando soube que havia refugiados sírios em Guimarães, Hashem Andrade, um sírio de 30 anos que vive em Portugal há três e é casado com um português, quis ajudar o projecto, servindo de mediador cultural. Uma das irmãs de Hashem é refugiada na Alemanha e a outra vive na Síria sob o domínio do autoproclamado Estado Islâmico. Hashem sabe como pode ser difícil para um sírio adaptar-se a um país em que os quadros culturais e mentais são totalmente diferentes. Apesar de estar “muito feliz” com a presença de refugiados em Guimarães, diz que gostava que a equipa “estivesse mais preparada”. “Acho que aquilo funciona de forma muito desorganizada. Eles não têm sequer um tradutor ou falante de árabe, não se prepararam para investigar a experiência alemã ou sueca porque dizem que têm recursos limitados e muito para fazer. Acho que era necessário ensinar aos refugiados as regras básicas de como viver nesta sociedade e aquilo que não é aceite. E é necessário reduzir um pouco a bondade. Eles são tratados como bebés. Não sei se esta integração solta funciona”, diz. Hashem é muito crítico do modelo de integração que vê ser aplicado não só em Guimarães, mas no resto do país, apesar de elogiar a disponibilidade para acolher que está na sua origem. “Em Portugal, as pessoas são muito simpáticas, mas ao não terem um plano de longo prazo podem provocar mais danos do que soluções”, comenta. Hashem quer ajudar a comunidade síria de Guimarães porque, diz: “Eu adoro Portugal e não quero que os sírios tenham uma má reputação por cá.”
Em Guimarães há quem tenha consciência de que não se pode cair no exagero de querer dar tudo, que é preciso educar para a autonomia. A situação é recente e há arestas a limar. Mas, por enquanto, nesta cidade, berço de Portugal, bastião de valores tradicionais relacionados com a identidade nacional, o acolhimento faz-se de modo algo informal. A professora Adélia parece estar convencida de que essa é a única forma de resultar. “Há uns dias passei com uma amiga junto a um café por debaixo daquela inscrição ‘Aqui nasceu Portugal’. Estavam quatro a tomar café e eu em vez de acenar entrei e abracei-os e beijei-os. Nem imagina a alegria que eles sentiram ao perceber que fazia aquilo à frente das pessoas que me conheciam. A minha amiga foi e beijou-os também”, diz. Isto é o acolhimento, segundo Adélia. “Não é estarmos numa sala de aula às escondidas e ninguém nos vê, não. É na rua, é em minha casa.”
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