Uma emissora nacional online para miúdos dos zero aos 12 anos nasceu em Novembro do ano passado e já foi escutada em 60 países de todos os continentes. A Rádio Miúdos funciona 24 horas por dia e, para já, emite em directo apenas das 14h às 16h e de segunda a sexta-feira. Mas o objectivo é alargar o mais possível o horário das transmissões em directo e com cada vez mais miúdos do lado de lá do microfone.
“Queremos responsabilizá-los e torná-los donos da rádio”, diz João Pedro Costa, um dos fundadores da estação e profissional de rádio há mais de 30 anos. Passou pela RFM, RádioGeste, Rádio Macau, Euronews, entre outras emissoras. “O nosso maior sonho é que, com o passar do tempo, tenhamos sempre um locutor adulto e um locutor miúdo todos os dias, 24 horas por dia. Sempre na conversa, para praticar a oralidade”, diz, mas sublinha que a ideia foi “da visionária” Verónica Milagres.
“Há 20 anos que trabalho com crianças e sempre senti que fazia falta uma rádio para os mais novos”, contou ao PÚBLICO a professora de Música e cantora lírica, numa conversa telefónica que antecedeu a visita ao pequeno estúdio no Bombarral. “É um estúdio portátil”, diz João Pedro Costa, já no meio do equipamento, que junta material do seu espólio e outro que o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian permitiu adquirir.
Essa “portabilidade” tem-lhes permitido acompanhar iniciativas como o 2.º Encontro de Literatura Infantil da Lusofonia da Fundação O Século, que decorreu em Fevereiro. Instalaram uma espécie de tenda com todo o equipamento e aproveitaram para entrevistar escritores nacionais e dos países de expressão portuguesa que participavam no congresso. Fizeram alguns directos e muitas gravações.
Foi também na Fundação O Século que angariaram mais colaboradores para a Rádio Miúdos, como a escritora Margarida Fonseca Santos, que já tem dois programas: Histórias em 77 Palavras e Conversas de Carvão (este com a colaboração de Mariana Ramirez Sanchez, a partir de Barcelona). Os autores José Fanha e António Torrado também foram convocados e já estão a preparar rubricas que hão-de ir para o ar brevemente.
“Todos nos acolheram muito bem, deram-nos uma série de ideias e disponibilizaram-se para colaborar”, diz o radialista, muito entusiasmado com os projectos já em desenvolvimento de teatro radiofónico. “Vamos recuperar um formato que é muito divertido de realizar e também de se ouvir.”
A próxima deslocação da Rádio Miúdos será ao Festival Literário Livros a Oeste, na Lourinhã, de 3 a 7 de Maio. “Vamos instalar o estúdio na rua. Queremos estar onde estão as crianças, bem no meio da confusão. É esta a nossa natureza.”
Crianças ao leme
Leonor Tapadas e Pedro Gonçalves, ela com dez anos e ele com nove, amigos e cúmplices, eram os dois locutores-mirins presentes na Rádio Miúdos no dia da visita do PÚBLICO, no final de Março. Era dia de workshop e os miúdos acabariam por entrevistar as “entrevistadoras”. Quiseram saber se gostavam da profissão que escolheram, pediram que se lhes explicasse o que era um blogue e o que fazia uma jornalista multimédia. Tudo muito profissional, com os miúdos a testar o som, a ajustar os auscultadores e os microfones, a gerir os silêncios e a repetir as frases que saíam meio gaguejadas… Sempre com supervisão e aconselhamento de João Pedro Costa (“sejam curiosos, perguntem o que não percebem”, “olhem para as entrevistadas”, “agradeçam no final”), numa relação bem-disposta e em atmosfera descontraída.
Antes de Pedro chegar, Leonor, filha da directora Verónica Milagres, tinha explicado que o seu colega de escola e amigo, depois de escutar algumas emissões da rádio, lhe pedira para participar: “Eu também gostava de fazer alguma coisa na Rádio Miúdos.” Depois de obtida a autorização dos pais, fizeram um directo com o rapaz nas férias de Carnaval. “Revelou ter muito jeito e adorou”, completa Verónica.
Leonor, que diz gostar de “dar notícias”, prossegue, embora timidamente e com várias hesitações: “Estamos os dois a gravar um programa sobre instrumentos musicais. Eu sou uma harpa e ele é um violoncelo.” Quem escolheu o tema? “Fomos nós. Gostamos de música. Eu toco flauta transversal e o Pedro quer ir aprender trombone”, justifica. Para dizer depois, entre risos: “Mas o trombone é maior que ele!”
Verónica Milagres já tinha informado que dois miúdos estavam a preparar um programa só deles: “Ali não se vai escutar a voz de adultos. São eles que estão a escolher o tema, que o estão a preparar e que o vão gravar. Quando tiverem tudo oleado e já conseguirem funcionar bem sozinhos, então experimentamos directos apenas com eles.” Ambos já participam em emissões em directo, mas sempre com os adultos na retaguarda.
A directora da Rádio sublinha: “Quando estamos a planear entrevistas ou outros programas, surgem dos miúdos perguntas e ideias que à partida não nos ocorreriam. É mesmo isso que queremos, que eles se identifiquem com os projectos. Porque os miúdos fazem parte da rádio.”
O jovem Pedro diz mesmo que “a Rádio Miúdos é uma ideia genial”. Vê-se que está feliz “no meio das máquinas e botões”. Tem um ar doce e calmo e anota no papel o texto que vai dizer quando se der início à gravação.
O prémio da Gulbenkian
Verónica Milagres recorda, feliz, como chegaram até aqui: “Criar uma rádio com emissão terrestre era impensável, pelos custos e burocracia, mas não desisti. Com a evolução das redes sociais, comecei a pensar numa rádio online. Abriu-se logo um leque enorme de possibilidades, não só por ser menos dispendioso mas porque podíamos chegar ao mundo inteiro.”
Foi o que aconteceu entretanto, mas antes começaram por participar no concurso Faz – Ideias de Origem Portuguesa 2015, da Fundação Calouste Gulbenkian. “Recebemos o 3.º prémio”, lembra orgulhosa. Esta distinção valeu-lhes 10 mil euros e apoio jurídico para várias questões legais, como acautelar o respeito por direitos de autor e de imagem, “mais complexos ainda quando envolve crianças”.
A primeira emissão experimental aconteceu simbolicamente a 20 de Novembro de 2015, Dia Internacional dos Direitos das Crianças, e em Janeiro deste ano começaram as emissões regulares em directo. E não vão parar.
“Já chegámos a 60 países dos cinco continentes”, diz Verónica. Sabem-no através dos meios tecnológicos, mas também por contacto directo dos ouvintes, via email, por mensagens no Facebook ou telefonemas. Entre o público-alvo, estão pais, educadores, professores e, claro, as crianças.
Eis alguns países onde há famílias que escutam a Rádio Miúdos: Espanha, França, Alemanha, Reino Unido, Bélgica, Dinamarca, Egipto, Canadá, Estados Unidos, ilhas Caimão, Brasil, Porto Rico, China, Macau, Japão, Austrália, Nova Zelândia e também Portugal, em toda a sua latitude.
“Os pais emigrados dizem que têm dificuldade em manter o português de uma forma menos ‘caseira’. Há muitos que não têm oportunidade de inscrever os filhos em escolas de português. As crianças são esponjas, absorvem facilmente a língua do país em que vivem, o que é óptimo. Mas também é óptimo que não percam o português.” A Rádio Miúdos propõe-se dar uma ajuda.
Esta vontade de manter a ligação com os falantes de língua portuguesa pelo mundo traduz-se por exemplo num programa semanal, à sexta-feira, em que uma criança e um adulto, estejam onde estiverem, conversam em directo com os locutores da Rádio Miúdos. Famílias a viver na Escócia, na Alemanha e na Holanda já contaram um pouco das suas vidas desde que saíram de Portugal na rubrica À Conversa com os Portugueses.
Uma rádio não infantilizada
As famílias que vivem em Portugal não são, no entanto, esquecidas, pelo contrário: “Algumas crianças, pelo ambiente familiar, não têm oportunidade de ler muito e de adquirir com um vocabulário mais alargado. Na Rádio Miúdos, isso acontece de uma forma muito descontraída.”
Por isso a directora, formada em Ensino Básico, diz: “Queremos que professores e pais estejam connosco, que participem, com ideias e histórias, que contem o que lhes vier à cabeça.” E continua a explicar a filosofia desta primeira emissora portuguesa destinada a crianças: “Não queremos infantilizar a rádio. Isto é, o nosso discurso não é abebezado e não evita algumas palavras difíceis. Nós utilizamo-las mesmo com o intuito de depois desmontá-las: ‘Atenção, isto foi uma palavra difícil. E o que é que esta palavra quer dizer?’ Paramos, explicamos um bocadinho o que é a palavra e voltamos ao discurso anterior, com naturalidade.”
Os responsáveis pela emissora querem levar esta aprendizagem da rádio a escolas do 1.º e 2.º ciclos (até ao 6.º ano). Por isso criaram workshops adaptados para cada nível etário e de escolaridade, cada vez mais elaborados à medida que a idade dos miúdos avança. O plano é que os alunos criem um programa durante a oficina, que depois há-de passar na Rádio Miúdos. “Os mais velhinhos, se por acaso tiverem uma rádio na escola, podem fazer um directo connosco. Se não tiverem, grava-se e difunde-se depois”, explica Verónica.
“Queremos que os miúdos saibam que uma rádio pode ser feita por eles. Queremos trazê-los para a rádio, mostrar-lhes as máquinas, contagiá-los pela magia do microfone”, diz João Pedro Costa. E continua, sempre em grande velocidade: “Saberem o que dizer, que ideias comunicar. Podem falar à vontade porque do outro lado há-de estar alguém da idade deles ou mais velho, que os vai admirar ou que vai reagir.” Mesmo que seja para dizer: “Ei, isto não é assim.”
Este profissional repete muito a expressão “o bichinho da rádio”. E explica: “O que contagia as pessoas é tão-só estarmos com um microfone, fechados numa sala, a falar. Sabemos que há-de haver alguém que nos ouve. Eu gosto de fazer rádio e a minha filosofia foi sempre esta: não quero saber se está lá um a ouvir ou se estão três mil. Tenho esta mania de pôr música, ir à procura de ideias e comunicá-las.” É este sentimento e prática que quer passar aos miúdos. “Eles imaginarem ideias e pensamentos que possam comunicar.”
E que música passar para crianças dos zero aos 12 anos? “Também a música não é para infantilizar, mas para puxá-los...”, diz João Pedro. “Os mais novos, se ouvem passarmos os D.A.M.A., até se sentem mais crescidos.” Mas não integram na playlist tudo o que lhes pedem nem vão atrás de sucessos comerciais. “Há música popular que já é tão popular… a Rádio Miúdos prefere ser um canal de tudo aquilo que não é popularizado nos outros meios de comunicação social mainstream.”
Também fazem escolhas musicais para os pais, têm até um jingle que diz: “A rádio dos miúdos que os pais adoram.” O locutor põe-se agora no papel de ouvinte. “Eu, se ouvisse a Rádio Miúdos e se o meu miúdo quisesse ouvir essa rádio e, todos os dias, desculpem o termo, ‘levasse’ com as músicas da Xana Toc Toc e do Panda…”, não acaba a frase, mas arregala os olhos e suspira, numa expressão corporal de quase desespero.
“Há escolhas a fazer e a Rádio Miúdos pretende ter um papel pedagógico e educativo também na música.” Conta que muitas vezes têm de ouvir primeiro algumas das músicas que os miúdos pedem, “para ver se não têm palavrões, se não são daqueles rap cheio de alusões esquisitas, que os miúdos até aos 12 anos possam não perceber”.
No entanto, diz que procura não fazer a “censura” a partir do que as músicas possam ou não dizer, mas sobretudo nortear-se pela sua filosofia de rádio. “Uma filosofia de rádio para miúdos que também passa tudo o que não é mainstream.”
Neste domínio, esbarraram com uma dificuldade, ao descobrirem que há uma parca produção musical portuguesa para as crianças. “De cem discos editados em Portugal, um e meio é de produção infantil”, diz, e logo nos dá conta de outra ideia da Rádio Miúdos. “Gostávamos de incentivar a produção musical para a infância, através de um prémio, de um festival. Gostávamos de ter no futuro uma estrutura que possibilitasse a gravação dos próprios discos dos autores que fazem música infantil.”
Um dos objectivos é, mais tarde, deixar também na mão dos miúdos a escolha da playlist e os adultos ficarem só com a coordenação, de que nunca prescindirão: “Se eu tivesse dez anos, andava aos pulos pelo estúdio, trazia batatas fritas para comer e gomas. Temos de ser nós a controlar e a dizer: ‘Atenção meninos, isto é material caro, isto é uma coisa séria, se abrirem um saco de batatas fritas enquanto têm o microfone aberto, o som não vai ser muito agradável’.”
João Pedro quer contrariar a ideia de alguns pais de que a Rádio Miúdos é mais uma coisa para os filhos estarem ligados ao computador e ao tablet. “Nada disso.” Argumenta: “É a liberdade da rádio, que permite que carreguem no play, fiquem a ouvir a Rádio Miúdos e vão brincar com o Lego ou com os amigos, vão fazer os trabalhos, se conseguirem estudar a ouvir música. O aparelho está lá a dar-lhes o que quiserem sem terem de estar agarrados a ele.”
E conclui: “Todos os outros meios de comunicação social obrigam a uma total atenção. Nós não precisamos de mais nada a não ser estas duas coisas que temos aqui do lado da cabeça [aponta para os ouvidos]. E, como estão muito próximas do cérebro e assim um bocadinho mais acima do coração, é o meio de comunicação social de excelência para as crianças.”
Revoluções e democracia
Para assinalar o 25 de Abril, que se comemora nesta segunda-feira, a emissora pretendia levar os miúdos ao quartel das Caldas, “para fazerem uma visita de estudo e saberem que, um mês antes do 25 Abril, houve uma outra tentativa de sublevação militar”. Não será possível, mas vão convidar alguns miúdos e falar com eles “sobre revoluções, o 25 de Abril e a democracia”.
A Rádio Miúdos tem muitas ideias e projectos a acontecer e alguns por fazer. Sendo uma organização sem fins lucrativos, conta para já com várias parcerias: a Fundação Calouste Gulbenkian, o Alto-Comissariado para as Migrações e o Instituto de Apoio à Criança. Mas ambicionam alargar o número e natureza dos parceiros para que possam aumentar a equipa (actualmente de oito pessoas) e criar uma estrutura mais sólida e complexa do que “o estúdio portátil”.
“Queremos dedicar-nos a tempo inteiro à Rádio Miúdos, mas por enquanto ainda não temos situação financeira para isso”, diz João Pedro Costa, que ainda arranja energia para nos contar a sua história.
“Comecei a fazer rádio em casa, com aqueles gira-discos de mala, que se abria e tinha dois altifalantes e a gente punha um disco que até saía do sítio. Tínhamos de ter muito cuidado para não dar um encontrão e o braço saltar do disco.” Seguiram-se várias aprendizagens: “A escola da altura era o FM da Comercial e era uma escola muito interessante para se ouvir boa música e para se aprender o que era a estilização da rádio. A Rádio Comercial e a Antena 1, que era a RDP, tinham de facto escola de rádio.”
Mais tarde, “quase fora de jovem”, fez um curso “com gente incrível, o Matos Maia e outro de que agora não me lembro o nome e que o Miguel Esteves Cardoso coloca mesmo lá em cima”. Foi com esses “sonoplastas” que percebeu “que o som pode influenciar uma vida”. Explica: “O que ouvimos numa rádio, mesmo sem estarmos atentos, pode transformar-nos a vida ou pelo menos alterar-nos naquele dia. Pode fazer-nos rir.”
Exemplo do dia: “Ainda hoje estava a ouvir uma coisa qualquer na Rádio Comercial, vinha de carro e desatei à gargalhada sozinho. É isso que a rádio nos faz. É companhia com que podemos estar ali, e essa maravilha de que o som, mesmo sem a palavra, nos possa influenciar.”
Foi um dos fundadores da Rádio Universidade Tejo (nos anos 1980), “uma rádio ímpar, exemplo de rádio criativa, em que todos podiam apresentar propostas e emitir sem a menor limitação, pena que, depois da liberalização, a academia de Lisboa não se tivesse unido para a manter”, como aconteceu em Coimbra, Algarve e Minho.
Na RFM, fez o “primeiro programa de autor, às seis da manhã, Programa do Sol Nascente”. Depois, saiu do país para aprender com a CBS, a Voice of America, a SBR Australiana. Diz que foi muito bom ter estado em Macau e ter contacto com Hong Kong e com os ingleses, “que são de facto o supra-sumo da rádio”.
João Pedro Costa, que não foi para a Al-Jazira por ter sido pai mais uma vez recentemente, não tem dúvidas: “A BBC é a melhor rádio do mundo. Essa, sim, é uma verdadeira escola.” Foi aí que, logo no início, procuraram ver e ouvir o que tinham para miúdos dos zero aos dois anos, por exemplo.
“Eles têm tudo. Quando é preciso, a BBC tem. As melhores rádios infantis são anglófonas. Mas o nosso site é o mais bonito, é mais limpinho”, conclui, com uma gargalhada sonora e genuína. Para exclamar em seguida: “Xi... eu falo que me farto!” É verdade. Por isso está no lugar certo.
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