2014: o ano em que o ébola ficou fora de controlo
Embora a maior epidemia de sempre deste mortal vírus já tenha desencadeado, através dos contributos de muitos, uma série de resultados promissores de contenção, prevenção e tratamento, o ébola ainda não foi vencido.
Fora de controlo é o título em português do filme baseado no best-seller Outbreak, do norte-americano Robin Cook, em que os EUA se defrontam com uma epidemia de febre hemorrágica em grande escala provocada pelo temível vírus de ébola. Um autêntico pesadelo para qualquer um de nós.
Ora, a 23 de Outubro passado, muitos norte-americanos terão pensado que o pesadelo descrito naquele thriller médico – ou no mais recente filme Contágio, de Steven Soderbergh – se tinha tornado realidade. É que foi nesse dia que souberam que um médico nova-iorquino – que estivera na África Ocidental a lutar contra a epidemia de ébola que lá assola vários países há quase um ano – apresentara os primeiros sintomas da doença dias após o seu regresso de África.
Três casos “domésticos”, anunciados entre finais de Setembro e meados de Outubro, no Texas – e em que o vírus fora transmitido por um homem vindo da Libéria a duas enfermeiras –, já tinham começado a gerar o alarme na população norte-americana e abalado a confiança na capacidade de as autoridades de saúde dos EUA lidarem com a doença. E agora, o vírus conseguira mesmo penetrar em Nova Iorque. Mais: desde que regressara e antes de adoecer, o jovem médico viajara várias vezes de metro, apanhara um táxi e jogara bowling em Brooklyn! Afinal, o ébola não era aquele longínquo vírus mortal confinado a uns países africanos, do outro lado do Atlântico.
Antes de mais, recorde-se que tudo começou em Dezembro 2013, quando uma criança de dois anos sucumbiu a uma febre hemorrágica não identificada em Guéckédou, Guiné-Conacri, seguida da irmã e da avó uns dias mais tarde. Pensa-se agora, com base num estudo publicado na última terça-feira na revista EMBO Molecular Medicine por cientistas alemães, que aquela criança, ou “doente zero”, terá sido infectada na sequência do contacto com um ninho de morcegos que viviam numa árvore onde os mais jovens da aldeia costumavam brincar.
Passaram-se quase três meses e morreram mais seis dezenas de pessoas antes de a Guiné-Conacri resolver confirmar que se tratava de ébola. Já vinha tarde: não foi possível impedir o surto de se espalhar para a Serra Leoa, a Libéria e, a partir de Julho, para outros países da região (Nigéria, Senegal e Mali). Actualmente, os países de longe mais afectados pela epidemia, que em Agosto a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou ser uma “emergência sanitária internacional”, continuam a ser aqueles três primeiros mencionados.
A doença não tem cura, não há vacina contra o vírus e, quando a febre se declara, a infecção é transmitida por contacto com os fluidos corporais dos doentes. E até há poucos meses, o certo é que ninguém estava disposto a investir dinheiro em fármacos e ensaios clínicos contra o ébola.
Como dizia ao PÚBLICO, em Agosto, Daniel Bausch, virologista da Universidade de Tulane (EUA), que, na qualidade de enviado da OMS, esteve no início do ano na Guiné-Conacri e na Serra Leoa: “Houve alguns ensaios muito promissores de vacina nos macacos e até um ensaio em seres humanos, que concluiu que a vacina é segura. Mas esta não é uma doença com a qual os laboratórios farmacêuticos possam ganhar muito dinheiro: é esporádica, atinge poucas pessoas e as populações mais pobres do mundo. Para mais, os surtos acabam por ser controlados. Ou seja, não há realmente mercado para uma vacina.”
Só que desta vez, nada correu como era costume. Segundo os números mais recentes da OMS (a 24 de Dezembro), o ébola já infectou 19.497 pessoas (19.483 na Guiné-Conacri, Serra Leoa e Libéria) e matou 7588 (7573 nos mesmos três países).
Pânico em Nova Iorque
Voltando ao mês de Outubro, já naquela altura vários países europeus e os Estados Unidos estavam a tratar doentes com ébola, diagnosticados em África e repatriados, dentro das suas fronteiras. Mas algo de nunca visto tinha acontecido no início do mês: uma enfermeira espanhola tinha-se tornado no primeiro caso de febre de ébola contraída fora de África – e as duas enfermeiras do Texas que tinham tratado o homem vindo da Libéria seriam diagnosticadas uma semana depois.
A detecção bastante atrapalhada daquele primeiro caso de ébola "imprevisto", em Setembro no Texas, já levara os CDC (Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA) a “reconhecer”, em comunicado de finais de Setembro, que “todos os casos de ébola diagnosticados nos EUA são preocupantes”, e a anunciar que os profissionais médicos e de saúde pública por todo o país estavam a preparar-se para reagir à eventualidade de novos casos semelhantes.
Mas agora, em finais de Outubro, não só as autoridades de saúde do Texas, como também as de Nova Iorque (e ainda as do Ohio, para onde uma das enfermeiras infectadas tinha entretanto viajado), iam ter de identificar e colocar sob vigilância médica adequada quem tivesse estado em contacto próximo com os doentes.
Reiteraram-se as garantias – cientificamente demonstradas – de que a doença só passa a ser contagiosa a partir do momento em que as pessoas infectadas manifestam os primeiros sintomas e não antes. Ou seja, o jovem médico nova-iorquino não poderia ter contagiado desconhecidos no metro. Mas apesar disso, em vésperas do último fim-de-semana antes do Halloween, o pânico estava prestes a instalar-se numa das maiores e mais populosas cidades norte-americana – e pelos Estados Unidos fora.
“As provas da existência de um sentimento de medo generalizado são claras”, escrevia a 27 de Outubro um especialista de percepção do risco no diário The Washington Post. “Um recente inquérito da Escola de Saúde Pública de Harvard [divulgado a 15 de Outubro] mostrou que cerca de 40% dos norte-americanos pensa que eles ou a família próxima estão em risco de contrair ébola durante o próximo ano.” Em Agosto, "apenas" 26% dos inquiridos acreditavam nessa possibilidade.
Será por isto tudo que o mundo acordou subitamente para o desastre africano do ébola? É pelo menos o que disse Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU, considerando-se “amargamente desiludido” pela lenta e tardia reposta internacional: “De facto, quando olhamos para a evolução da crise [do ébola], vemos que a comunidade internacional só acordou quando a doença chegou aos EUA e à Europa”, declarou Annan em Outubro à cadeia televisiva BBC.
Daniel Bausch mostra-se mais moderado, mas não deixa de concordar em parte com esta análise: “Os casos nos EUA e na Europa fizeram sem dúvida aumentar a preocupação e a percepção de que precisávamos de incrementar os esforços em África, mas não acho que essa tenha sido a única razão”, disse agora ao PÚBLICO num email.
“Penso que os Médicos sem Fronteiras, a OMS e outros grupos já tinham dado o alerta antes disso, embora de forma menos marcada e também tardia. Só que a comunidade internacional demorou ainda algum tempo a ouvir essa mensagem e a agir em consequência. As pessoas acabaram por se dar conta de que a situação não se iria resolver sem um grande esforço. Mas infelizmente, mesmo quando os países e as organizações se comprometeram a contribuir, viram que seriam precisos tempo e perícia – dois elementos que não estavam imediatamente ou facilmente disponíveis.”
Resposta tardia
De facto, como já foi referido, a OMS declarara a 8 de Agosto o ébola como emergência sanitária internacional e, em Setembro, as Nações Unidas apelavam para a necessidade de um financiamento internacional de 1000 milhões de dólares (822 milhões de euros) contra o ébola. Mais ou menos em simultâneo, o Presidente Barack Obama pedia ao Congresso dos EUA para libertar financiamento e enviar tropas para os três países africanos mais atingidos, enquanto o primeiro-ministro britânico David Cameron e o presidente do Banco Mundial também prometiam avultadas quantias de dinheiro. Ainda em Outubro, a Comissão Europeia nomeava um “coordenador do ébola” e começava a dedicar recursos monetários e outros à luta contra a epidemia.
Actualmente, estima-se que os EUA já contribuíram com cerca de 750 milhões de dólares (617 milhões de euros) e os países da União Europeia e a Comissão mais de mil milhões de euros. Sem esquecer a OMS, várias outras agências da ONU e uma miríade de ONG, o Banco Mundial, instituições bancárias, fundações privadas e empresas, particulares ou o Fundo Monetário Internacional (FMI). O total, a 19 de Dezembro, somava, segundo o diário britânico The Guardian, perto de 3000 milhões de dólares (2700 milhões de euros).
Do ponto de vista da investigação científica, já há vacinas e fármacos em fase de ensaios clínicos que, se tudo correr bem, deverão permitir salvar mais vidas – sem esquecer a potencial utilização do sangue dos que sobreviveram ao ébola para tratar os doentes (uma prática já antiga, dita de “imunização passiva”, que agora ganhou novo fôlego).
Contudo, vencer o ébola não passa apenas por desenvolver medicamentos. É também – e talvez sobretudo – uma questão de recursos humanos, equipamentos e logística para prevenir novos casos, que passa não só pela ajuda internacional, mas também pela qualidade dos sistemas de saúde locais. Ora, a este propósito, há quem afirme que um dos grandes responsáveis pela situação a que se chegou em África é, nomeadamente, o FMI. “Em 2013, logo antes da erupção do ébola, os três países mais afectados foram confrontados com as directivas económicas do FMI e nenhum deles conseguiu aumentar as suas despesas sociais, apesar das necessidades prementes na área da saúde”, declarou há dias o sociólogo Lawrence King, da Universidade de Cambridge (Reino Unido) e co-autor de um estudo sobre a questão, citado pela agência noticiosa AFP. A isto, o FMI responde que se trata de se trata de acusações “totalmente falsas”.
Uma coisa é certa: nas suas declarações públicas dos últimos dias, os especialistas de epidemiologia parecem unânimes em afirmar que nada garante que se consiga acabar com a epidemia em 2015. “Os casos de ébola em África Ocidental não atingiram o número previsto pelos cenários mais pessimistas, mas até descerem para zero o mundo continua em risco”, disse Tom Frieden, director dos CDC, citado pela CNN, após uma visita à Guiné-Conacri, Libéria e Serra Leoa. A Libéria é o país que suscita maiores esperanças, acrescentou, enquanto a Serra Leoa está neste momento numa fase de aumento dos casos. “O problema é que há focos [de infecção] por toda a parte e há sempre novos focos a surgir. E enquanto cada um dos três países não erradicar até ao último foco, o risco subsiste.”
Também para Peter Piotr, da Escola de Higiene e de Medicina Tropical de Londres – que descobriu o vírus de ébola nos anos 1970 –, a epidemia está longe de ter sido vencida. “Devemos estar preparados para um longo e sustentado esforço, que se prolongará provavelmente durante todo o ano de 2015”, disse no seu regresso da Serra Leoa. “A epidemia poderá vir a ter uma cauda muito longa, com muitos altos e baixos. Ainda estão a morrer pessoas e novos casos estão a ser detectados” naquele país, salientou à BBC.
“Sou prudentemente optimista quanto à nossa capacidade de acabar com esta epidemia em 2015”, diz-nos por seu lado Daniel Bausch. “De qualquer maneira, não vai acontecer no início do ano e só acontecerá se persistirmos no nosso esforço internacional. Ora, isso torna-se frequentemente difícil de fazer à medida que uma questão como esta deixa de ser notícia e de preocupar a opinião pública – o que está agora a começar a acontecer.”
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