O ano visto por António Guterres: Todos perdemos

António Guterres vive o lado mais trágico dos conflitos: o seu lado humano. Tem hoje a seu cargo o maior número de refugiados e deslocados desde a II Guerra. E, por isso mesmo, o Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados tem uma visão global e real da desordem que hoje impera no mundo.

Há um dado que nos choca particularmente: o número de refugiados e deslocados em 2014 é o maior desde o fim da II Guerra.
É verdade. No final de 2013 tínhamos mais de 51 milhões de pessoas internamente deslocadas ou refugiadas por causa de conflitos, o que aconteceu pela primeira vez desde a II Guerra Mundial. Só que 2014 não vai ser melhor. Vou dar-lhe apenas uma breve descrição de alguns dos acontecimentos que tivemos de enfrentar no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Logo no princípio do ano houve o agravamento dramático da situação na República Centro-africana e no Sudão do Sul. Na RCA a explosão de violência resultou até hoje em meio milhão de pessoas internamente deslocadas e mais de 200 mil novos refugiados nos quatro países à volta. E isto, não contando com os mais de 200 mil que já lá estavam de crises anteriores. No Sudão do Sul, a erupção de violência começou a 15 de Dezembro e já levou a 1,4 milhões de pessoas internamente deslocadas e a cerca de meio milhão de novos refugiados na Etiópia, Quénia, Uganda e Sudão.

Esses são aqueles a quem muitas vezes quase não prestamos atenção.
Essas são as crises de alguma forma negligenciadas pela comunidade internacional, uma vez que as atenções estão essencialmente concentradas no Médio Oriente e, em particular, a crise sírio-iraquiana.

Que aumentou muito o número de refugiados a que tem de responder.
Entre Síria e Iraque temos cerca de 13 milhões de pessoas deslocadas internamente ou refugiadas nos países vizinhos. Logo em Janeiro, tivemos a violência em Anbar (Iraque, na fronteira com a Síria), que originou cerca de 600 mil pessoas deslocadas no interior do Iraque. Depois, em Fevereiro, houve a evacuação de Homs e a complexidade da situação da Síria. Logo em Abril o número de refugiados sírios no Líbano atinge um milhão e podemos imaginar o impacte que teve num país que está, ele próprio, em crise política e com uma situação de segurança extremamente precária. Um terço da sua população é hoje composto por sírios e palestinianos. Ainda em Abril, no Líbano, ocorreu o rapto de vários soldados libaneses na região de Arsal, que têm vindo a ser horrivelmente degolados pelo Estado Islâmico.

Esse é o novo método de terror dos fundamentalistas
Embora com muito menos publicidade do que os ocidentais que tiveram o mesmo destino. Tudo somado, temos hoje 3,3 milhões de refugiados sírios e 7,6 milhões de pessoas internamente deslocadas. Nessa altura, tivemos de enfrentar a crise aguda de falta de financiamento do Programa Alimentar Mundial (PAM), que fornece a alimentação aos campos de refugiados e que, por falta de fundos, anunciou que iria reduzir a alimentação a cerca de 800 mil refugiados em vários países africanos. Foi um momento extremamente dramático como pode calcular.

E conseguiram resolvê-lo?
Foi parcialmente colmatado. Vai-se resolvendo mês a mês de uma forma precária e preocupante. Em Junho, começa a ofensiva do Estado Islâmico no Iraque, que tomou Mossul e Tikrit. Já temos no Iraque 2,1 milhões de pessoas internamente deslocadas. Agosto, além do Iraque, é também o mês em que um maior número de pessoas morre no Mediterrâneo: apenas em cinco dias morrem trezentas e o maior número de pessoas que hoje cruzam o Mediterrâneo têm problemas de protecção, porque são sírios e eritreus. Não são, como no passado, imigrantes económicos. Em Agosto o número de refugiados sírios atinge os três milhões, transformando a população refugiada síria no maior grupo a cargo do ACNUR. Em Setembro dá-se o ataque a Kobani [cidade curda na fronteira com a Turquia tomada pelo Estado Islâmico]. Há que sublinhar o facto de a Turquia ter aberto imediatamente a sua fronteira, acolhendo 190 mil pessoas que cruzaram essa fronteira em apenas duas semanas.

Em Outubro temos um marco importante na crise nigeriana, ultrapassando-se os 100 mil refugiados nos países limítrofes, já sem falar dos 650 mil deslocados só durante este ano. Em Novembro, lançámos a nossa campanha global visando acabar com o estatuto de apátrida em 2024. Finalmente, este mês foi particularmente difícil quando o PAM voltou a anunciar que já não tinha verbas, mas que felizmente se pode resolver rapidamente.

Isto dá-lhe um panorama incompleto dos acontecimentos de 2014 que revelam uma pressão enorme sobre o nosso trabalho. Mas, muito mais preocupante do que isso, um nível de sofrimento humano terrível, revelando que estamos hoje numa situação internacional em que a capacidade de prevenir conflitos ou de os resolver está muito diminuída.

Como explica esta situação de desordem internacional que mesmo os mais pessimistas não conseguiam prever? É apenas a ausência americana?
Se olharmos para o carácter da desordem mundial no que nos diz respeito, ela resulta de uma megacrise na Síria e no Iraque e de uma série de novos conflitos na RCA, Sudão do Sul, Ucrânia, Nigéria, sendo que, ao mesmo tempo, parece que as velhas crises não morrem. O Afeganistão continua a ter 2,6 milhões de refugiados, a Somália um milhão, a República Democrática do Congo cerca de 500 mil.

Recordo-me que, quando estudava história no liceu, as guerras tinham normalmente um vencedor e um vencido. Agora, nas guerras ninguém ganha, todos perdem. A guerra vai-se eternizando e não há capacidade para a terminar. É isso que é diferente.

As consequências do fim da Guerra Fria só agora é que nos estão a chegar?
Quando estava no Governo, vivemos o período unipolar da hegemonia norte-americana. Houve uma primeira fase complexa, com os Balcãs e o Cáucaso, mas era evidente que havia uma grande concentração de poder nos Estados Unidos. Nunca houve um sistema de governança eficaz a nível mundial, mas havia relações de poder claras. Lembro-me que, na crise de Timor, a questão decisiva era convencer o Presidente Clinton de que alguma coisa tinha de ser feita. No momento em que Clinton disse que era preciso intervir, imediatamente a Indonésia aceitou, o Conselho de Segurança votou unanimemente, a Austrália já tinha forças preparadas e o problema resolveu-se. Estou convencido de que, se o problema de Timor fosse hoje, nada disto seria possível. O que acontece é que hoje não vivemos num mundo bipolar, não vivemos num mundo unipolar, mas também não vivemos num mundo multipolar. Vivemos num mundo relativamente caótico em que, continuando a não haver um sistema de governança a nível mundial, as relações de poder deixaram de ser claras e, quando isso acontece, cria-se uma situação de imprevisibilidade e de impunidade.

Isso acontece pela perda de influência do mundo ocidental, ou a sua falta de vontade, que está a ser posta à prova pelo resto do mundo?
As relações de poder no tempo da crise de Timor eram claras. Deixaram de o ser. A influência dos EUA é hoje menor. Há novas potências emergentes, embora nem sempre seja clara a sua estratégia. A Rússia vive hoje uma situação muito complexa, que gera uma enorme imprevisibilidade. Em todas as questões decisivas, o Conselho de Segurança foi incapaz de agir e isso é particularmente preocupante. Recentemente, ouvi uma dos meus colegas comentar que ainda não tinha percebido se estávamos em transição para um mundo com uma nova estrutura ou se, pelo contrário, este já era o novo estado do mundo - de caos nas relações internacionais.

Para que lado se inclina?
Penso que a tendência, até pela evolução da economia dos diferentes actores, será para que se evolua para uma multipolaridade. Mas convém recordar que um mundo multipolar sem estruturas multilaterais fortes pode ser extremamente perigoso. A Europa era assim antes da I Guerra Mundial.

Nesse mundo, aliás, a moeda corrente volta a ser o nacionalismo. Na Rússia como na China e até na Europa. A nossa crença na interdependência da globalização afinal está a alimentar o nacionalismo.
Em relação às grandes potências, esse regresso seria facilmente previsível. Após o fim abrupto da União Soviética e até de algum sentimento de humilhação sentido pela Rússia, seria previsível uma tentativa de reafirmação nacional – independentemente da forma como está a ser feita. Da mesma forma que, sempre que um país emerge como potência económica, mais tarde ou mais cedo quer afirmar-se como uma potência política. Era também previsível que isso acabasse por acontecer na China. A questão é saber se é ou não é possível criar formas multilaterais de governance que possam enquadrar esses nacionalismos num sistema de cooperação internacional que seja eficaz.

Mas creio que enfrentamos um conjunto de outras situações que tornam mais difícil a capacidade da comunidade internacional para enfrentar os desafios do nosso tempo.

Quais são eles?
Primeiro, fala-se muito de falta de liderança e, muitas vezes, essa falta é apresentada em termos pessoais: que saudades temos de Willy Brandt, de Olof Palme, de Bruno Kraisky, para falar apenas do socialismo. Como se o problema fosse de falta dessas pessoas excepcionais. Creio que a questão é bastante mais funda. Por um lado, a forma como a vida política tem evoluído com uma crescente promiscuidade com os media transformou a política numa actividade muito pouco atractiva para as pessoas de grande qualidade. E, por outro lado, há um divórcio crescente entre estruturas políticas e a opinião pública, embora tenhamos à nossa disposição uma panóplia de novas tecnologias que poderiam ajudar a organizar de uma forma mais moderna as relações entre poder político e cidadania. O projecto europeu é de alguma forma vítima de tudo isso. E a ausência de uma Europa forte e politicamente unida em todas estas crises internacionais é um factor particularmente grave.

Obama tentou mudar a relação dos EUA com o mundo, de acordo com as transformações mundiais. Tentou durante quatro anos oferecer uma forma de cooperação com a Rússia que não resultou. Tem pela frente um movimento fundamentalista islâmico ainda mais aterrador. Conseguiu sentar os iranianos à mesa das negociações. Intervém, tarde e a más horas, na Síria…
Mas tudo o que disse apenas reforça a ideia de que a capacidade americana de influenciar é hoje muito menor. Quando olhamos para a presidência de Obama, ela também foi vítima daquilo a que eu chamaria uma vingança do passado. No início da sua presidência era muito clara uma estratégia centrada na ideia de que o futuro centro das relações internacionais era o Pacífico e que a relação crucial seria entre os Estados Unidos e a China.

De alguma maneira, é.
Não estou a dizer o contrário. Penso que esta visão de futuro faz sentido. Acontece que Obama acabou por ser vítima, não da incapacidade de responder aos desafios do futuro, mas da vingança dos problemas do passado. Não foi possível libertar-se da questão do Iraque. O problema palestiniano continua a corroer as relações entre o mundo ocidental e o mundo islâmico. Portanto, esta questão tem hoje uma centralidade ainda maior do que o início da sua presidência. E mesmo que as relações de reset com a Rússia fossem um esforço notável, de repente temos na Ucrânia a vingança de uma Guerra Fria mal acabada, de um certo excesso de optimismo em relação ao facto de o fim da União Soviética não ter sido visto com suficiente atenção De alguma forma, temos um Presidente cuja estratégia virada para o futuro é permanentemente posta em causa pelo regresso dos problemas do passado.

Mas creio que o tempo presente é marcado por uma outra série de questões para as quais ainda não foi encontrada uma resposta. Se alguma contribuição deu a civilização europeia à civilização universal, ela tem muito a ver com os valores do Iluminismo – a tolerância e o primado da razão. Ora, esses valores que tínhamos como adquiridos deixaram de existir. E há três factores que os contrariam. Em primeiro lugar, os nacionalismos agressivos; em segundo lugar, os fundamentalismos religiosos que não são apenas o fundamentalismo islâmico; e finalmente os conflitos étnicos que não têm justificação nos tempos modernos mas que estamos a ver multiplicar-se de uma forma particularmente agressiva, com o afloramento de formas de racismo e xenofobia, mesmos nas sociedades mais desenvolvidas.

Muita gente pensou que a crise financeira que se abateu sobre os EUA e, depois, sobre o resto do mundo iria acelerar o declínio americano. Hoje, a economia americana está a recuperar e são alguns desses países que estão com problemas económicos. Há aqui um factor que pode reequilibrar as coisas?
Acho que o grande erro dos analistas é pegar nas circunstâncias do momento e tentar extrapolá-las para a eternidade. É verdade que a influência relativa dos EUA no mundo diminuiu em relação ao que era há 20 anos. Mas é também verdade que os Estados Unidos continuam a ter uma capacidade económica e um dinamismo absolutamente notáveis. As duas coisas são verdade. Não se pode pensar que poderemos regressar ao período de hegemonia americana no passado, mas também não se pode pensar que os EUA deixam de ser o país mais importante na economia mundial e ainda a força militar mais significativa.

Fazendo que os outros tenham de levar em consideração de novo a sua capacidade económica e política.
Hoje é evidente que nada se pode fazer sem os EUA, mas que os EUA já não podem fazer nada sozinhos. Não há forma de combater as alterações climáticas sem envolver a China que já é o maior poluidor. O mais preocupante é a incapacidade dos países indispensáveis a um novo consenso mundial de conseguirem ultrapassar as desconfianças para se juntarem de uma forma positiva face aos grandes desafios do tempo presente, sejam eles os conflitos, as alterações climáticas, as pandemias ou a pobreza.

Mas a minha esperança é que isso, mais cedo ou mais tarde, acabe por acontecer porque hoje estão em causa questões verdadeiramente dilemáticas em relação ao futuro da humanidade. A minha visão é que, para o fazer, é necessário liderança e espírito de compromisso mas seria bom também olhar para a possibilidade de fazer algumas reformas que levassem a um multilateralismo mais efectivo.  

E nós vimos isso na própria União Europeia: o enfraquecimento das instituições europeias não ajudou à resolução dos problemas europeus.

Mas quando olhamos para o mundo é muito difícil sermos optimistas. Mesmo na Europa não há grandes razões para optimismo.
É um caso muito particular. Primeiro, porque é o continente onde, mesmo que em termos relativos, se vive uma certa decadência, quer em relação às novas potências emergentes, quer em relação aos próprios Estados Unidos. Há um sentimento de frustração evidente. Por outro lado, vivemos numa situação paradoxal: os problemas europeus obviamente não podem abdicar de um forte contributo nacional de cada país, que tem de assumir as suas responsabilidade e fazer o que lhe é devido para as soluções dos problemas que são colectivos. Mas também é óbvio que não há resposta aos problemas da Europa que não seja europeia. Infelizmente, a evolução política, a credibilidade das suas instituições e o próprio divórcio entre as elites políticas e a cidadania têm levado a que cada vez mais europeus sejam contrários ao grau acrescido de integração que seria necessário para resolver os seus problemas. Esperamos que este paradoxo se resolva, mas neste momento, a Europa enfrenta uma crise grave.

O que se vê hoje, mesmo com este crescimento dos que precisam de protecção, é uma vaga de xenofobia que varre a Europa desde a Suécia à Alemanha, que não tem a ver directamente com as dificuldades sociais e que condicionam os governos europeus.
Apesar de tudo, esses fenómenos são minoritários. O que tem havido é falta de coragem dos partidos que governam a Europa para os combater em nome de valores e de princípios. Há um tacticismo político que só tem favorecido o crescimento dessas forças. Pense num jovem na França de ascendência argelina que não teve sucesso na sua formação, que vive num bairro relativamente degradado da periferia de uma grande cidade, que não tem emprego e que está revoltado. Há 20, 30 anos, havia uma série de ofertas ideológicas para exprimir a sua revolta. Hoje não há. Para este jovem a única coisa que está disponível é o Islão radical. Da mesma forma, para um outro jovem de outra étnica que não tem emprego, que vê o seu futuro sem esperança, que sente a insegurança, a única forma de exprimir a sua revolta é o nacionalismo xenófobo. Há aqui um combate por valores e princípios que as forças políticas nacionais têm de assumir sob pena de perderem a capacidade de enquadrar positivamente as suas sociedades.

O que vemos é que as coisas não vão nesse sentido.
Mas também há exemplos positivos. Justamente nos países que mencionou: a Alemanha e a Suécia. Cerca de metade dos pedidos de asilo na Europa foram feitos nesses dois países. A Alemanha tem uma atitude muito generosa em relação aos sírios.

E começa também a ter as manifestações de segunda-feira em relação à imigração islâmica.
Isso pode ser verdade mas também tem uma enorme pressão da sua opinião pública para receber os sírios. O que é preciso é que as forças políticas centrais não deixem perder os valores da solidariedade e da generosidade. Mas se esses valores não se afirmam, se ninguém os corporiza, a única coisa que fica disponível são as respostas irracionais e de revolta.

A Alemanha impôs a sua resposta à crise da dívida, levando a quatro anos de dura austeridade. O resultado é a estagnação da economia europeia e o risco de deflação. Ninguém se lembrou de tirar as ilações políticas desta receita, que agora estão à vista.
Isso só revela que não há respostas tácticas para um problema estratégico. O euro foi concebido como o final a integração. Ora, era apenas um passo para cujo êxito era necessária mais integração. A minha esperança é que o que tem de ser tem muita força e que, um dia, as pessoas percebam que o caminho não é a renacionalização das políticas, que não leva a coisa nenhuma e que a maneira de resolver o problema é resolve-lo conjuntamente.

Mas a hegemonia alemã é um factor novo. Os interesses dos outros países têm de ser levados em conta.
Mas isso exige também que os outros países compreendam a necessidade de assumir as suas responsabilidades a todos os níveis. E isto é verdade para a economia como é verdade para o asilo. O exemplo do asilo é o contrário: a Alemanha recebe o maior número de requerentes de asilo em todo o mundo. E temos países europeus a fechar as suas fronteiras. É preciso que cada país assuma as suas responsabilidades.

Acreditar na Europa passou a ser uma matéria de fé?
A Europa, em termos relativos, vai viver uma progressiva perda de influência à escala mundial. Pode fazê-lo de forma desordenada e com um preço muitíssimo mais elevado para os europeus, ou pode fazê-lo assumindo colectivamente os seus valores e assumindo uma estratégia comum para aproveitar ao máximo o que é ainda hoje um extraordinário património europeu. Com tudo o que se possa dizer acerca da relativa decadência europeia ou da relativa ascensão de outros países, eu continuo a preferir ser europeu e viver na Europa.

A Europa teve um ano muito particular. Enfrenta a crise na Ucrânia para a qual não estava preparada, porque não tinha uma estratégia para a Rússia. Conseguiu por enquanto manter-se unida e soube coordenar-se com os EUA. Merkel foi aí fundamental. Tem o Mediterrâneo transformado em cemitério, como disse o Papa, e está rodeada por um arco de crise e de instabilidade no seu flanco sul e sudeste. Tem a Turquia perdida. Há 10 anos era o modelo para o mundo, hoje não sabe como lidar com ele.
Se há uma coisa que é evidente é a ausência de Europa política no mundo enquanto tal. Há uma presença francesa, uma presença inglesa, não há uma presença europeia. Mas é também verdade que essa política europeia teria que enfrentar um conjunto de situações muito complexas e que também elas se traduzem em heranças não resolvidas. A herança de uma Guerra Fria que não foi completamente resolvida. A herança de uma forma de tratar a Turquia que, na minha opinião, foi completamente errada. À Turquia devia ter sido dada no momento próprio a garantia de que entraria se cumprisse os critérios de Copenhaga. Isso não aconteceu e entregou-se a Turquia à possibilidade de escolher outros caminhos. E agora pagam-se as consequências disso. E também em relação à Primavera Árabe não foi feito o suficiente.

Lembro-me que, no início da nossa democracia, tivemos um apoio maciço da Europa, incluindo financeiro. A Tunísia, o Egipto não tiveram o mesmo apoio. Não houve a visão para compreender que essas jovens democracias eram muito frágeis e precisavam de uma solidariedade maciça. E quando se é egoísta nas relações internacionais, isso normalmente dá muito mau resultado.

Voltando um pouco atrás, a Europa tenta fechar as suas portas, enquanto, como já referiu várias vezes, os países mais pobres são muito mais generosos. O Líbano, a Jordânia, a Turquia estão a receber milhares e milhares de refugiados da Síria e do Iraque.
Oitenta e sete por cento dos refugiados estão no mundo em desenvolvimento. Eram apenas 70% há 15 anos atrás. O que revela que a tendência não é um afluxo de refugiados para os países desenvolvidos. Pelo contrário, é para os países em desenvolvimento, que são países muito frágeis e alguns com problemas dramáticos.

É por isso que está a tentar ligar a ajuda humanitária à ajuda ao desenvolvimento para esses países?
Estamos a fazer um grande esforço para que se compreenda que as políticas de cooperação para o desenvolvimento têm de ser revistas tendo em conta a nova realidade. Em primeiro lugar, as necessidades do ponto de vista humanitário estão a crescer exponencialmente. E os orçamentos humanitários não acompanham esse crescimento. Vou dar três números. Em 2011, por causa de situações de conflito, 14 mil pessoas eram deslocadas por dia. Em 2012, 23 mil. Em 2013 trinta e dois mil. Só nos casos de conflito. Por outro lado, as políticas de cooperação para o desenvolvimento representam oito vezes os valores da ajuda humanitária. Simplesmente, essas políticas não têm em conta a mobilidade humana e é fundamental que a passem a ter. O Líbano ou a Jordânia situam-se num estado intermédio de desenvolvimento, os chamados “países de rendimento médio”, e por isso não têm acesso a mecanismo de ajuda à cooperação. Isto não faz qualquer sentido. É fundamental rever as políticas de ajuda ao desenvolvimento no sentido de integrar nessas políticas o apoio à estabilização daqueles países que estão na primeira linha de defesa, não só em relação aos refugiados mas na primeira linha de defesa da nossa segurança colectiva.

A falta de liderança internacional, que sentimos tanto, fez do Papa o grande herói de crentes e não crentes, mostrando que as pessoas são sensíveis aos valores.
Independentemente da falta de outros líderes, há que reconhecer que este Papa foi uma lufada de ar fresco não apenas na vida da Igreja mas nas relações internacionais. É uma voz que beneficia de dois factores: da sua própria força e capacidade de surpreender e de mobilizar e também de alguma falta de outras vozes capazes de desencadear nas pessoas os mesmos efeitos. Mas não menosprezemos o seu próprio valor. O Papa Francisco é um dos sinais de esperança que apesar de tudo nos faz pensar que a humanidade pode dar a volta a muitos dos problemas que hoje não consegue resolver.

As palavras do Papa são entendidas na própria Europa, com todo o seu cepticismo.
O que significa que as opiniões públicas são sensíveis a valores. Se os valores não forem afirmados, as pessoas irão atrás dos interesses, dos receios, da insegurança… Por isso, creio que é essencial restabelecer linhas ideológicas e lutar por valores e princípios sob pena de só facilitarmos a vida às posições extremas.

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António Guterres é desde 2005 é alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados Miguel Manso
Só no Iraque, a ofensiva do Estado Islâmico já fez mais de dois milhões de deslocados AFP/Aris Messinis
Guterres com refugiados sírios numa visita a Sófia, Bulgária, em Novembro de 2013 Reuters/Stoyan Nenov