O ano visto por Matt Taylor: Descida a um cometa

O ano de 2014 deixou uma marca no corpo de Matt Taylor. A coxa direita do físico da Agência Espacial Europeia (ESA) ganhou a tatuagem de um cometa, da sonda Roseta e da File, o aparelho que aterrou a 12 de Novembro no cometa 67P/Churiumov-Gerasimenko. Até então, a humanidade nunca tinha enviado um objecto para pousar num cometa. A missão da ESA, que lançou a Roseta em 2004, fez história. Em Janeiro, a sonda acordou após mais de dois anos a dormir, em Agosto alcançou o 67P e em Novembro largou a File, que, com alguns incidentes, aterrou no cometa.

Na tatuagem do britânico Matt Taylor, a File está pousada num cometa com a palavra “Rosetta” escrita, e a Roseta surge logo por cima, sobre um fundo espacial negro e roxo, com estrelas. Os desenhos dão a ideia de uma família robótica feliz, a fazer ciência, no meio de um Universo glorioso. Feita após a saída da hibernação da Roseta, a tatuagem representou um acto de fé. “A minha expectativa era de que tivéssemos sucesso na aterragem no cometa. Foi por isso que fiz a tatuagem”, diz ao PÚBLICO Matt Taylor, de 41 anos.

Um desenho mais realista, contudo, mostraria o céu escuro, a Roseta seria um pontinho longínquo e a File estaria numa posição desengonçada só com duas das suas três patas a tocar no chão, junto a uma ravina escura, a perder energia.

Seria uma tatuagem menos alegre, mas, ainda assim, a File fez quase todas as experiências científicas que os cientistas queriam antes de cair num sono profundo por falta de energia e o trabalho da Roseta apenas começou agora. As duas sondas estão a revelar dados inéditos que ajudarão a compreender melhor o que são os cometas — corpos gelados dos primeiros tempos do sistema solar, onde muito se definiu, incluindo o ambiente na Terra. Por este feito tecnológico e pela expectativa do que aí vem, este foi acontecimento científico mais importante de 2014.

Os cometas surgiram a partir dos pedaços de matéria, que também ajudaram a formar os planetas. Alguns desses pedaços, feitos de gelo e poeiras, nunca ultrapassaram alguns quilómetros de tamanho e foram ejectados para regiões distantes como a Cintura de Kuiper, situada para lá da órbita de Neptuno, ou a ainda mais longínqua nuvem de Oort.

Às vezes, um destes objectos aproxima-se do interior do sistema solar, numa órbita elíptica, e a luz e o vento o solar aquecem a sua superfície, produzindo uma atmosfera cada vez mais densa, que forma uma cabeleira e uma cauda. Por vezes, estes cometas podem ser observados à vista desarmada.

Investigar estes corpos é, por isso, uma oportunidade única para analisar o material que se mantém prístino desde o início do sistema solar e, assim, ajudar a compreender as origens da Terra. A escolha do nome “Roseta” e “File” não é, por isso, inocente. A Pedra de Roseta e um obelisco encontrado na ilha File, no rio Nilo, ajudaram a decifrar os hieróglifos egípcios, o que permitiu ler inscrições da civilização egípcia.

A sonda Roseta vai ter ainda a oportunidade de seguir a crescente actividade do cometa 67P em 2015, à medida que se aproxima do seu periélio — o ponto mais próximo do Sol, algures entre Marte e a Terra. “Estou interessado em perceber como é que o cometa interage com o vento solar”, disse Matt Taylor.

Momentos de tensão

O físico está na missão desde o Verão de 2013. O seu papel é representar, junto da ESA, a comunidade de cientistas que controlam os vários instrumentos científicos da Roseta e da File. “Sabia que esta era uma missão muito importante, mas só comecei realmente a compreender isso quando me juntei a ela.”

A construção da Roseta foi aprovada em 1993. A sonda foi lançada a 2 de Março de 2004. Desde então, foi girando à volta do Sol para obter impulso com a gravidade dos planetas. A 8 de Junho de 2011, a sonda entrou em hibernação para poupar energia. Só acordou a 20 de Janeiro, a 800 milhões de quilómetros da Terra, para lá da órbita de Marte.

“O fim da hibernação foi um período de nervosismo”, recorda Matt Taylor. “Passámos de um momento em que não sabíamos nada sobre a condição da sonda para outro em que ficámos a saber que estava a funcionar tal como o esperado.”

A Roseta apresentava-se pronta para a sua missão. E o físico aproveitou para fazer a sua tatuagem: “Prometi à equipa que iria fazer uma tatuagem da Roseta assim que ela saísse da hibernação para provar a minha dedicação ao projecto.”

Depois, a sonda iniciou a derradeira aproximação ao cometa. A partir de Julho, as primeiras imagens do 67P mostraram um “pato de borracha”, com uma parte maior, o “corpo”, e uma mais pequena, a “cabeça”.

A 6 de Agosto, na chegada, houve mais tensão. “As manobras de chegada também foram stressantes. Mas desta vez pudemos monitorizar a nave durante o tempo todo. Os propulsores comportaram-se na perfeição durante a manobra final.” Nesse dia, as primeiras imagens do cometa mostraram uma paisagem acidentada, com precipícios e planícies.

As semanas seguintes serviram para os cientistas começarem a analisar o 67P e escolherem o melhor local para a File aterrar. A Roseta tem 11 instrumentos científicos e a File dez. Entre espectrómetros para analisar os compostos do cometa, instrumentos que medem a temperatura e analisam a sua atmosfera, a Roseta é um autêntico laboratório. Mas só a File é que teve acesso ao material do 67P antes de haver alteração devido à sua interacção com a luz solar. Por isso, o dia da aterragem era tão esperado.

Na manhã de 12 de Novembro, a Roseta libertou a File, que ia aterrar na ponta da cabeça do cometa. Para se agarrar a ele, a sonda teria de disparar dois arpões mal tocasse no 67P, que exerce uma gravidade mínima.

Sentimos  o “stress, a espera, a apreensão e depois o alívio quando a File entrou pela primeira vez em contacto com a Roseta”, diz Matt Taylor, ao falar da primeira comunicação entre a File e a Roseta logo após a separação. Nas sete horas seguintes, os cientistas esperaram ansiosamente pelo desfecho da etapa.

Por volta das 16h, houve os primeiros sinais da aterragem. “Somos os primeiros a fazer isto — e assim ficará para sempre”, disse então Jean-Jacques Dordain, director-geral da ESA, sublinhando o pioneirismo europeu. Mas o dia e a tensão não acabaram ali. Os sinais emitidos pela File mostraram que, afinal, não tinha aterrado logo. Os seus arpões não se activaram e a sonda ressaltou duas vezes antes de aterrar de vez.

Para Matt Taylor, pode haver um lado positivo: “Vimos pelo sensor da File que, abaixo da superfície, o cometa é muito rijo. Por isso, se os arpões [tivessem sido activados], talvez não tivessem agarrado a File ao cometa. E se isso acontecesse, [o impacto] teria projectado a File para o espaço.”

Mas a sonda acabou ao pé de uma falésia num local escuro, onde o sol era insuficiente para recarregar as baterias. E uma missão projectada para alguns meses terminou em pouco mais de dois dias. “Ter os olhos do mundo em cima de nós é quase insuportável”, lembra o físico. “Houve períodos de actividade intensa enquanto olhávamos para a informação que obtínhamos para ver onde é que a File estava e alterar comandos de sequência [das actividades científicas].”

Nesses dias, Matt Taylor foi apanhado numa polémica com direito ao hashtag #shirtstorm. No dia da aterragem, o físico apareceu com uma camisa, feita e oferecida por uma amiga, com desenhos de mulheres seminuas. O que desencadeou críticas de machismo, para mais numa área em que as mulheres têm entraves na carreira. Houve várias reacções, incluindo da autora da camisa, que faz peças de vestuário por hobby. “Fiz esta camisa para o aniversário do Matt Taylor”, escreveu Elly Prizeman no seu blogue.

Surgiu ainda uma campanha para angariar dinheiro para o físico, que recebeu cerca de 24.000 dólares (19.710 euros). A pedido de Matt Taylor, 23.000 dólares foram para a organização EU-Universe Aware, que se dedica a ensinar astronomia a crianças de comunidades pobres.

Dois dias depois da aterragem da File, vivia a equipa num turbilhão de decisões e emoções, Matt Taylor não conteve as lágrimas numa conferência de imprensa: “Fiz um grande erro e ofendi muitas pessoas por isso. Peço muitas desculpas”, disse referindo-se ao episódio da camisa.

No dia seguinte, a File adormeceu, mas os instrumentos acabaram por trabalhar, embora algumas experiências não tenham funcionado. Mas ainda não está tudo perdido. “Há a esperança de que volte à vida na Primavera”, diz agora Matt Taylor. Nessa altura, o cometa estará mais perto do Sol e os painéis solares da File talvez possam obter energia suficiente. Por outro lado, com o aumento da actividade do cometa, que atinge o ponto mais próximo do Sol a 13 de Agosto, a Roseta vai avaliar as mudanças. Prevê-se que a missão termine a 31 de Dezembro.

Já há alguns resultados científicos, que mostram que a água do cometa é mesmo do início do sistema solar. E que a água que a Terra terá recebido, durante uma fase inicial de bombardeamento, não terá sido de cometas semelhantes ao 67P, como se chegou a pensar. Outros dados surgirão nos próximos tempos. “Estamos agora focados só na ciência da missão. É a questão que nos trouxe aqui em primeiro lugar”, diz Matt Taylor. A viagem prossegue em 2015.

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Matt Taylor está na missão Roseta desde o Verão de 2013 Nuno Ferreira Santos
A missão da ESA, que lançou a Roseta em 2004, fez história a 12 de Novembro deste ano Reuters/ESA
Uma representação gráfica da File na superfície do cometa AFP/ESA Medialab
Cientistas no centro de controlo da Agência Espacial Europeia em Darmstadt, na Alemanha AFP/Boris Roessler