Nas últimas semanas, a aparência da Quinta do Mocho, perto de Sacavém, transformou-se. Mais de duas dezenas de murais de arte urbana, de grandes dimensões, atribuem uma nova cambiante ao bairro. A iniciativa pretende marcar o arranque da requalificação de um dos chamados bairros sensíveis da periferia de Lisboa. A ideia foi da Câmara de Loures, que pretende dar assim uma imagem mais positiva do lugar.
Resta perceber se é dessa forma que os estigmas em relação ao bairro enfraquecerão, mas para os residentes o expediente tem méritos. É o que pensa, por exemplo, Marlon Silva, 26 anos, mais conhecido por DJ Marfox. “As verbas gastas com esta iniciativa foram quase nulas e têm vindo aí muitas pessoas de fora, inclusive estrangeiros, para verem os trabalhos, o que é bom”, diz-nos ele, enquanto nos encaminha para sua casa, distribuindo calorosamente cumprimentos por quem passa.
No último ano não tem parado muito pelo bairro aos fins-de-semana, correspondendo às inúmeras solicitações para a apresentação da sua música, que o conduziram em 2014 a inúmeros países europeus, ao Brasil e aos Estados Unidos, por duas vezes. O resto do tempo dividiu-o na feitura da sua música e em sessões DJ em Portugal, com destaque para as noites mensais da editora Príncipe no espaço MusicBox, em Lisboa.
Na primeira metade do ano lançou um disco na editora nova-iorquina Lit City Tracks e recentemente completou uma remistura para a americana Tune-Yards, o mesmo acontecendo com a rapper portuguesa Capicua. Foi um ano inesquecível. A sua sonoridade de grande agitação física – inspirada em linguagens como o kuduro, funaná ou na mais sensual e lenta tarraxinha – foi sendo validada um pouco por todo o lado, mais internacionalmente, que em Portugal.
Em Junho a histórica revista americana Rolling Stone considerou-o um dos dez artistas que era importante conhecer em 2014 e ao longo do ano sucederam-se os artigos e elogios, para ele e para os seus companheiros da editora Príncipe (Nigga Fox, Maboku, Tia Maria Produções, Blacksea Não Maya ou Piquenos DJs do Guetto), provenientes das publicações mais influentes do mundo atentas às movimentações da música e da cultura como a Pitchfork, The Fader, Dazed and Confused, Resident Advisor ou Fact.
Em Setembro de 2013, quando o suplemento ÍPSILON apostou neles para a capa, a realidade era bem diferente. Quase ninguém os conhecia. No espaço de um ano operou-se a mudança. Por exemplo, Nigga Fox, que há ano e meio nunca havia saído com a sua música do quarto, actuou este ano em dois dos festivais mais importantes do mundo – o Sónar de Barcelona e o Roskilde da Dinamarca. Mas atenção. As coisas não aconteceram de repente. Existiu um trabalho de anos da editora Príncipe e dos seus actores, com destaque para Marfox.
Antes mesmo dos também portugueses Buraka Som Sistema terem legitimado o kuduro como sonoridade de alcance global, já ele tinha um percurso consistente nos bairros da periferia.
“Vivi na Portela até aos dez anos, depois a minha mãe comprou uma casa no Cacém, mas regressámos à Portela quatro anos depois”, recorda. “Foi uma adolescência complicada, vivendo no limiar da pobreza, sempre com esperança de ter mais, mas isso também te faz enfrentar a vida”, reflecte. Entretanto o bairro da Portela foi demolido e agora habita no Mocho.
“Quarenta por cento das pessoas que viviam na Portela vieram para aqui, outros 40% foram para a Apelação e os restantes 20% foram postos em Camarate. Já tinha aqui amigos, mas deixar a Portela foi duro”, afirma. A sua família é extensa. “Tenho quatro irmãos, filhos do mesmo pai e mãe, e oito meios-irmãos”, descreve, ao mesmo tempo que revela que uma das irmãs vive numa rua paralela e outra no rés-do-chão do prédio onde nos encontramos. Ele, a mãe e um irmão vivem no 3º andar. É o mais velho de todos, o que lhe acarreta mais responsabilidades.
Sempre viveu da música, mas nos últimos tempos é ele que assume a maior parte das despesas da casa. O apoio da família foi constante, embora quando acabou o 12º ano a mãe tenha insistido para que fosse para a faculdade ou trabalhar noutra área. “Mas hoje as coisas mudaram, porque fui persistente.”
Foi o primo António Gonçalves, hoje pintor de profissão, quem o incentivou para a música. “Ele era DJ e eu nas festas ou nos baptizados da Portela, ficava fascinado, porque as pessoas gritavam por ele. E aos 5 anos já dizia: eu quero ser isto.”
Os pais nasceram em São Tomé e Príncipe. Mas hoje são portugueses, como ele, que nasceu em Lisboa e nunca foi a África. Há ano e meio, quando nos encontrámos com ele no mesmo local, dizia-nos que a música para ele não era apenas uma questão estética. Era também ética. Talvez por isso quando fala da Quinta do Mocho os seus olhos brilhem.
Quem habita no centro da cidade enuncia muitas vezes que o subúrbio é descaracterizado, confuso e perigoso. Ele que conhece as duas realidades, sabe que essas nomenclaturas são as mesmas que os que vivem na periferia atribuem ao centro. Os preconceitos fazem-se sentir nas duas direcções.
Marfox não é uma curiosidade exótica. Nem o seu êxito o é. Reflecte apenas uma norma ainda pouca interiorizada. A de que existem cada vez mais portugueses, com as mais diversas histórias familiares e práticas criativas, a operar à margem das lógicas institucionalizadas, que vão desbravando o seu trilho.
Gente que gosta verdadeiramente de Portugal, da única forma possível, com defeitos e qualidades. Anda-se com ele pelas ruas do bairro e percebe-se isso. Toda a gente se cumprimenta, existe proximidade, laços, um modo de vida localizado. Claro que existem problemas, mas também qualidades. “Se vivesse no centro de Lisboa teria mais dificuldade em perceber como é que esta música é feita. Aqui tudo me chega, a música de Detroit ou de Berlim, e a do vizinho do lado. Todos os dias vou a passar na rua, oiço uma batida, pergunto o que é, falamos uns com os outros, gera-se interacção, e isso é bom.”
E continua: “Em vez de Quinta do Mocho isto devia ser a quinta dos talentos. São daqui lendas do kuduro, gente que lança música no YouTube e tem milhares de visualizações, sem imprensa. Mas não é apenas na música. É na dança ou no teatro. Este bairro tem um potencial artístico enorme e é isso que realmente lhe pode atribuir uma outra imagem.”
As frentes dos prédios são quase todas iguais, matizadas de roupa colorida nos estendais. Quando surge na imprensa, na maior parte das vezes, o bairro é associado a situações de tensão. Quem lá vive não nega que existem, mas sentem-se injustiçados pelo olhar redutor. Hoje, Marfox diz sentir que acaba por ser também um modelo para os mais novos.
“Ainda hoje de manhã ia pela rua e estava um grupo de miúdos com um deles a apontar para mim, porque alguém lhes disse que tinha estado no Brasil e viram uma foto minha no Facebook com a actriz brasileira Claudia Raia. Enfim, essas coisas acabam por ter algum peso. Vê-se o brilho nos olhos deles: do género “ele conseguiu, por isso também poderemos chegar lá!”
No último ano a sua vida mudou. “Foi fantástico! Ser o primeiro português a sair na Rolling Stone, por exemplo, e tentar explicar o significado disso à minha mãe e ela, mesmo não percebendo, participar da minha felicidade! Ou as viagens, conhecer outros países, pessoas, culturas. Tentar perceber a dinâmica das coisas, seja em Londres, Paris ou Nova Iorque, e comparar com Lisboa. Tem sido incrível aprofundar como é que as pessoas se organizam, o que pensam, ou que ideia têm do meu país a partir também da minha música.”
E que ideia têm elas de Portugal a partir da música de Marfox? “Toda a gente fala de Lisboa”, reflecte. “Existe essa ideia de que Lisboa é o futuro. Há muita gente que quer vir para aqui, como a cantora Fatima Al Qadiri. Todos eles conhecem os Buraka, ou artistas como o Vhils, ou a editora Príncipe, então, passamos essa ideia de que temos aqui algo de diferente – nem somos anglo-saxónicos, nem latinos, mas somos isso também. E eu digo-lhes: se gostaram da minha música, então têm é de ir a Lisboa, porque isto é apenas uma pequena amostra.”
Este ano esteve por duas vezes em Nova Iorque. Uma delas foi especial, actuando na meca da arte contemporânea, o MoMA. “Foi inesquecível”, recorda. “Eu era a aposta. Ia actuar ao lado de Benji B e Dâm-Funk, que toda a gente conhecia. Havia expectativa para me verem pela primeira vez. Ia tocar para milhares de pessoas e fiz aquilo que sei fazer e as pessoas adoraram. Ficaram incrédulos com a minha sessão. Acabei por ter de tocar mais vinte minutos porque me pediram.”
Em casa é no seu quarto que tudo acontece. É ali que cria a música. Às tantas põe a tocar um tema novo, a editar no próximo ano. Diz que 2015 vai ser ainda melhor. Tem inúmeros projectos. A maior parte deles não os pode revelar ainda. Percebe-se que está a viver uma fase positiva do seu percurso.
Mas quando lhe pedimos para referenciar um momento musical marcante do ano, prefere falar de cinema: “Vi há semanas o Cavalo Dinheiro do Pedro Costa, que esteve aqui nesta sala, e marcou-me. É um filme que fala sobre as pessoas com quem lido diariamente. É cru. Mas é justo. Conheço histórias iguais. Foi sem dúvida a coisa mais importante que vi este ano.”
Quando nos despedimos regressa à música. Diz que tem orgulho em, hoje, já ser reconhecido quando vai a um lugar: “é bom chegar a um país, a uma sala, e as pessoas já terem noção de qual é o meu som, quem é a Príncipe, de onde sou, quem é Marfox.”
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