O ano vivido por Francisco George: Alerta em vez de alarme

O ano de 2014 prometia ser um ano calmo. No Inverno, a época gripal até fora inusitadamente branda e o Verão arrastou-se sem sombra de ondas de calor do tipo das que fazem disparar picos de mortalidade entre os mais idosos.

Na Primavera, porém, já se insinuavam os primeiros sinais de que algo de grave estava a acontecer em vários países da África Ocidental - um vírus altamente letal, o ébola, espalhava-se pela Guiné-Conacri, Serra Leoa e Libéria. Mas só em Agosto é que a Organização Mundial da Saúde declarou o estado de emergência de saúde pública internacional e apenas bem mais tarde, em Outubro, depois de uma auxiliar de enfermagem em Espanha se ter inadvertidamente infectado e de surgirem casos nos Estados Unidos, é que começou a parecer que o mundo ia acabar. Toda a gente exigia medidas e informação rigorosa. Muitos reclamavam máscaras e fatos de protecção.

Terão sido dias de alta pressão, de aflição até, mas é impossível arrancar uma queixa da boca de Francisco George, director-geral da Saúde desde há nove anos, o homem que coordenou a estratégia de prevenção e de preparação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Portugal para a eventualidade de importação de casos deste vírus ameaçador e que, quando o medo do ébola parecia abrandar na Europa, mergulhou de cabeça na crise provocada por uma bactéria aparentemente trivial, a Legionella. Uma crise que acabou por causar em Portugal um dos três piores surtos da doença dos legionários de que há notícia no mundo, com 375 casos identificados e 12 óbitos, segundo o último balanço.

No gabinete do 8º andar da Direcção-Geral da Saúde (DGS), Francisco George, 67 anos, resiste mesmo em admitir que 2014 está a ser um ano atípico. Mas qual dos seus antecessores teve que lidar com duas graves emergências de saúde pública praticamente em simultâneo? George busca e rebusca na memória. Recorda a epidemia de peste bubónica, em 1899, que esteve na origem da criação da DGS, na viragem do século. Lembra a terrível gripe, a “pneumónica”, que em 1918 matou “70 mil portugueses”. Não esquece também a epidemia de cólera que Arnaldo Sampaio enfrentou em 1973. “O saber dos antigos dirigentes parece que está impregnado nas paredes”, suspira.

 A sua vida de especialista em saúde pública começou, aliás, nos anos 80 do século passado, no início da pandemia de sida, em África. Um arranque que o terá definitivamente preparado para todas as calamidades que se sucederam: “Foi uma situação de grande pressão, com assinalável insucesso no final. Não era possível adquirir medicamentos, criaram-se grandes iniquidades. Foi chocante”.

Talvez por isso, apesar de reconhecer que a epidemia de ébola é muito grave na África Ocidental, e que foi preciso preparar o SNS para a eventualidade de importarmos casos — “o nosso primeiro comunicado público foi emitido ainda no início da Primavera” —, recusa-se a comparar esta crise com a da pandemia de sida, como outros fizeram. “Há vírus que provocam pânico, o ébola é terrível, um dos piores. Do mesmo grau só circulou a varíola até 1977, mas o ébola não forma cadeias de transmissão fora daqueles países”, explica. Em África, de acordo com o último balanço, provocou 7518 vítimas mortais e contagiou 19 340 pessoas nos três países mais afectados.

Curiosamente, em Portugal, quando estavam todos em pânico com o assustador vírus, acabou por ser uma bactéria bem conhecida dos especialistas a pôr o país em estado de choque. “O comum das pessoas não sabe a diferença entre bactérias e vírus. Também há doenças muito graves provocadas por bactérias”, diz.

George recorda que a doença dos legionários já era bem conhecida no mundo e em Portugal, desde que o primeiro surto foi diagnosticado, em 1977. “Em Portugal temos todos os anos dezenas de casos, e tínhamos tido surtos anteriores mas de pequena magnitude”. A diferença, este ano, foi a “forma explosiva” como surgiu devido a um fenómeno meteorológico raro. Em escassos dias apareceram quase quatro centenas de casos, concentrados em três freguesias de Vila Franca de Xira. “Em poucos dias tivemos que resolver o problema com 375 doentes que adoeceram com pneumonia grave, alguns necessitaram de cuidados intensivos e de ventilação e foi preciso mobilizar não só o parque hospitalar, mas também uma equipa especial de saúde pública, de microbiologia, de ambiente, de matemática", resume.

“Formaram-se diversas pequenas equipas. A georeferenciação foi determinante. No Instituto Ricardo Jorge faziam análises à água, às secreções, além da sequenciação do genoma. Foram mobilizadas também equipas de epidemiologia central (cinco especialistas prepararam uma base de dados) e de modelação matemática, além da equipa de meteorologia que analisou os dados da estação de Alverca”, enumera. Em simultâneo, foi preciso dar sucessivas conferências de imprensa e ir aos locais mais afectados informar e sossegar a população.

Foi um final de ano arrasador, portanto? “Não tenho essa leitura. Há sempre reservas de energia, há momentos em que não pode sequer pensar em parar. Temos uma unidade para as emergências em saúde pública preparada para este fim, para lidar com problemas inesperados. Preparada para identificar, fazer avaliação de risco, ver que tipo de medidas de gestão são precisas e comunicar o risco à população. A task force foi presidida em permanência pelo ministro Paulo Macedo”, volta a desdramatizar.

Do resto do país foram destacados especialistas para reforçar as equipas. “Uma colega veio de Braga, outro veio de Coimbra. Disse-lhes: metam-se num comboio e venham imediatamente”, descreve. Todos os dias se sucediam reuniões “em plenário e em petit comité”. O sétimo e o oitavo pisos da DGS foram mobilizados para preparar a frente de combate. Algumas reuniões prolongavam-se até de madrugada.  

Sem alarme mas sempre alerta é, aliás, o lema de George, que é director-geral da Saúde desde 2005. “Nunca gostei da palavra alarme, é inimiga da razão. É bom estar em alerta, é mau estar alarmado”, sintetiza. O que não suporta mesmo é falar em termos pessoais: “Trabalhamos em equipa. Todos nós brilhamos com o brilho de cada um”.

Os familiares mais próximos de George sentiram o abalo e o desgaste que aqueles dias representaram, mas nem nessa altura quebrou o contacto com eles. Continuou a falar todos os dias pelo telefone com o filho Gonçalo, que vive em Beja, e não deixou de visitar os netos todas as semanas. “O que passei foi menos tempo com eles”.


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O surto de Legionella em Vila Franca fez 12 mortos e foi o pior de sempre em Portugal AFP/Patrícia de Melo Moreira
Total de casos confirmados
Distribuição dos casos por sexo e grupo etário
Distribuição da incidência de casos ao longo do tempo
“Há vírus que provocam pânico, o ébola é terrível, um dos piores”, diz George AFP/Carl de Souza
Alexandra Campos, Ricardo Rezende