Coisas antigas, coisas novas
Um percurso pelas escolhas dos críticos de cinema do Ípsilon: filmes “novos”, na sua tecnologia e no seu modo de fabrico, mostram-nos um passado que se transporta, se actualiza, se revive e se lembra.
Num dos seus últimos textos, ainda inédito, Peter von Bagh, o historiador e cineasta finlandês que foi uma das grandes perdas de 2014, escreveu: “os filmes não são abstracções: a História entra neles”.
Verdade essencial, e na realidade, básica, que se torna tão mais importante lembrar quanto mais a cultura cinematográfica – ou o que dantes era uma “cultura cinematográfica” – vai vivendo da espuma das bilheteiras, esmagada por uma noção de “entretenimento” que é em si mesma um convite ao esquecimento (de tudo), da História com H grande a essa história mais pequena, mas significativa, que é a história do próprio cinema. Passamos os olhos pelos dez títulos que compõem a lista das preferências do Ípsilon, nascida das escolhas individuais dos seus três críticos: maravilhas da “pluralidade”, não é preciso gostar igualmente de todos os filmes nela incluidos para encontrar um denominador que se pode tornar comum: uma relação com a História, entendida também como o “momento histórico” (quer dizer, este presente de 2014), e um lastro, em certos casos quase subsconsciente, que estreitamente se liga à história desta arte, que sendo “nova” já vai tendo – a meio da sua décima-terceira década de existência – um passado considerável. Talvez não seja suficiente, esse denominador, para extrapolar: a lista nasce das circunstâncias, cada vez mais lacunares, do circuito comercial português. Mas serve, pelo menos, para um breve passeio por estes dez filmes.
E, no sentido acima descrito, há um título que se pode tomar por emblemático: E Agora? Lembra-me, o filme de Joaquim Pinto sobre a sua luta contra a doença, a Sida e a hepatite B. Que “agora nos lembre”, em vez de nos fazer esquecer, é basicamente aquilo que sempre fez, e continua a fazer, o cinema que vale a pena. No caso do filme de Pinto, essa fusão de uma memória pessoal, de uma biografia, com um círculo mais vasto, a evolução do mundo nos últimos 30 anos, o mundo “político” mas também o mundo “cinematográfico”, em ligação quase umbilical. E Agora? Lembra-me é um filme “novo”, na sua tecnologia e no seu modo de fabrico, com naturais consequências ao nível da estrutura e ao nível da forma. Como o é o Cavalo Dinheiro de Pedro Costa, outro produto oriundo do grande reset tecnológico (a imagem digital) operado na última década e meia. O que um e outro exemplarmente demonstram é que esse reset não tem que ser necessariamente um delete, e também nas atribulações de Ventura, no seu passeio com os fantasmas do 25 de Abril em diálogo com os fantasmas de Murnau, vemos esse peso de um passado que se transporta, se actualiza, se revive e se lembra.
Por razões óbvias, o par de filmes que cria uma curiosa rima sobre as atrocidades cometidas no sudoeste asiático na segunda metade do século passado (O Acto de Matar, de Joshua Oppenheimer, sobre os esquadrões da morte indonésios, e A Imagem que Falta, de Rithy Panh, sobre o genocídio cambojano), são filmes cheios de História, mas menos evidentemente o cinema também entra neles – e no caso de Rithy Panh, que lida explicitamente com a “imagem-memória”, de forma central. Boyhood, de Linklater, faz do subtil deslizamento temporal a uma escala curta – 12 anos – a sua essência, numa espécie de cápsula cuja função é mostrar o que mudou em tão pouco tempo. Mais irónico, Jarmusch, com os vampiros eternos de Só os Amantes Sobrevivem, encontra um ponto de vista distanciado, détaché, sobre o mundo contemporâneo, uma posição poética que contém um comentário, também político, sobre o “momento histórico” enquanto estranheza. O enigmático A Vida Invisível, de Vitor Gonçalves, constroi-se todo numa contração do tempo narrativo. mas mesmo os pormenores, as imagens da Lisboa do Terreiro do Paço ou da zona da Expo, convocam directamente a cápsula de uma memória das coisas. Com A Emigrante, James Gray mergulha no passado da América (os anos 20) e encontra no cinema europeu – sobretudo no mais operático cinema italiano, Visconti à cabeça – o élan que lhe enforma o filme. O Mamã de Xavier Dolan, bem “moderno” na sua variação entre as dimensões da imagem (os aspect ratios), convoca recordações das sagas domésticas e femininas da Hollywood dos fifties, como os filmes de Douglas Sirk. E finalmente, Philippe Garrel, com Ciúme, faz o seu filme como se não houvesse tempo exterior – só o tempo dele, o tempo de um cinema passado que ainda vive, sem data nem calendário.