Ponto prévio: não é possível, ou pelo menos difícil, “exportar” o modelo fiscal dinamarquês. Construir um sistema tributário não é fazer uma soma de reformas. Mas há “boas práticas” inspiradoras, para que os contribuintes aumentem o grau de confiança no fisco e olhem para a administração tributária como um verdadeiro serviço público, acredita Karina Kim Elgaard, investigadora de direito fiscal do centro de estudos sobre Estado Social e Mercado (WELMA) da Faculdade de Direito de Universidade de Copenhaga. E é possível contrariar a ideia de que a máquina fiscal serve simplesmente para cobrar impostos.
PÚBLICO: O que é que faz com que a Dinamarca seja vista como um país de "contribuintes felizes"?Karina Kim Elgaard: Muitos contribuintes não verificam as declarações fiscais porque confiam na administração tributária e na informação automática. Embora sendo um sistema complexo, é compreendido pelos contribuintes. É um círculo virtuoso. É um sistema fiscal onde é fácil as pessoas perceberem para onde vai o dinheiro dos impostos. As pessoas pensam: “Pagamos taxas muito altas e muitos impostos, mas, directa ou indirectamente, temos todos estes benefícios: hospitais grátis, apoios sociais, boas escolas”. O sistema social funciona bem. É claro que encontramos pessoas que consideram que há quem "abuse" do Estado social, mas são situações muito pontuais.
Como é que a Dinamarca consegue impor uma carga fiscal tão alta e manter bons níveis de cumprimento das obrigações fiscais e um desempenho positivo na actividade?
A administração fiscal tem os recursos e os instrumentos necessários para assegurar o controlo efectivo do pagamento dos impostos. Muitos contribuintes preferem pagar mais [impostos retidos na fonte] durante o ano, porque sabem que depois vão receber um reembolso. Se uma pessoa sabe que vai ter um pequeno ganho de rendimento, pode adaptar a pré-declaração fiscal em qualquer altura. E pode pagar voluntariamente mais imposto do que o que é sugerido, para ter a certeza de que, no final, não tem de fazer um acerto e pagar mais.
Em Portugal olha-se muitas vezes para o pagamento dos impostos como uma quebra de rendimento. Como é que há visões tão diferentes?
Há muitos anos que as pessoas respeitam a figura do ministro dos Impostos. As pessoas acreditam no ministério como instituição, no sistema político como um todo e acreditam que os responsáveis estão a agir no interesse de todos. É uma questão de mentalidade enraizada há muito, muito tempo. Se alguém não paga os impostos, isso é um insulto para toda a gente. Esta percepção de exigência de cumprimento das obrigações fiscais, historicamente enraizada, é perceptível um pouco por toda a sociedade. É uma questão de mentalidade. Ninguém considera aceitável que alguém não pague os impostos, que alguém tente contornar as regras ou ganhar alguma coisa por baixo da mesa.
O que é que se pode aprender com o modelo nórdico para uma reforma do sistema fiscal? É um modelo replicável noutros países?
Qualquer outro país pode olhar para a Dinamarca e tentar implementar algumas reformas fiscais, mas não todo o sistema, porque a génese do modelo escandinavo está muito enraizada na sociedade dinamarquesa. Se me pergunta se o modelo nórdico poderia ser exportado e se funcionaria em Portugal, penso que não. Mas há boas práticas que podem ser inspiradoras – a forma como as autoridades dinamarquesas fazem campanhas publicitárias na televisão a alertar para o prazo de pagamento dos impostos, para o combate à economia paralela. Nos últimos anos houve uma grande aposta na presença nas redes sociais, para aproximar a administração fiscal dos cidadãos. O fisco é muito acessível e os contribuintes sentem que o fisco lhes está a prestar um serviço. Há uma relação de confiança. Os outros países podem aprender com isto.
Que medidas podem ser implementadas em países com níveis mais elevados de evasão fiscal?
É mais complicado do que isso. Não é uma soma de reformas. Tem de começar por uma mudança de mentalidade e por uma mudança na forma de actuar das autoridades. É preciso, primeiro, que as instituições, os ministros ou as organizações responsáveis sejam respeitadas pela população e que actuem de forma harmoniosa, com regras simples e compreendidas pelas pessoas. É preciso que o ministério [responsável pelos assuntos fiscais] seja transparente, explicando, por um lado, porque é que é preciso pagar impostos e, por outro, como é que o Estado administra o dinheiro dos impostos. Isto ajuda os cidadãos a perceberem que o pagamento dos impostos é necessário para assegurar as funções sociais do Estado.
Na Dinamarca só há 28 repartições de finanças, para uma população de 5,6 milhões. Permite ao fisco ser eficiente?
Foi uma decisão pensada a longo prazo, para reduzir recursos e tornar o sistema efectivo, mais centralizado e funcional, para que a administração fiscal seja capaz de tomar decisões de forma mais equitativa. O objectivo da reforma foi introduzir uma política uniformizada. Qualquer contribuinte pode contactar a SKAT [por telefone] porque depois é direccionado para a pessoa certa com quem deve falar. Há um telefone geral – a porta de entrada é a mesma –, o que torna mais fácil a um contribuinte conseguir chegar à fala com o funcionário especializado que lhe vai resolver o problema.
Uma auditoria realizada em 2011 mostra que o nível de cumprimento é elevado. Como se explica este nível de adesão ao sistema fiscal?
O facto de os contribuintes verem os resultados dos impostos que pagam. Cada um toma a responsabilidade de pagar os impostos correctos.
Identifica pontos negativos no sistema fiscal dinamarquês?
Bem, há sempre a outra face da moeda. As regras dos impostos são muito complicadas. Muitos cidadãos simplesmente dizem “sim” ao pré-preenchimento da declaração de IRS proposto pela administração fiscal. Se quiserem perceber ao detalhe todas as implicações, têm de contratar um contabilista ou uma empresa de consultoria. A vantagem de um sistema fiscal avançado é que as regras são mais fáceis de concretizar. Queremos ter um modelo equitativo e, para o conseguir, o sistema fiscal acaba por exigir alguma complexidade. A economia paralela é outra preocupação de qualquer ministro dos impostos. A SKAT, a polícia e muitas outras instituições trabalham para combater a evasão fiscal no IVA. Há muitas iniciativas e uma boa mobilização de recursos para combater a fraude.
Académicos defendem para Portugal a necessidade de apostar em programas educativos sobre as obrigações fiscais dos contribuintes. Na Dinamarca hoje não existe essa tradição. Porquê?
É ao ministério da Educação que cabe a tarefa de definir as disciplinas ensinadas nas escolas. Há, no entanto, matérias sobre o Estado Social, política e cidadania – onde se inclui o funcionamento dos impostos. Há um grande nível de educação cívica que se revela fundamental no momento em que um cidadão começa a pagar os impostos.
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