Santa Maria: A enciclopédia geológica natural

Há um breve tumulto no avião quando se começa a avistar terra o que, na realidade, é pouco depois de deixarmos de a ver: para quem vem de São Miguel de avião, Santa Maria está à distância de 15 minutos, mais coisa menos coisa. “Ali está, menina”, apontam-nos para o lado oposto onde vamos. Uma agitação invulgar para quem está a regressar a casa, pensamos — até que, pés no chão, percebemos que o avião vinha com um grupo “sénior” da ilha de São Jorge, e esta visita é também para eles uma primeira vez. De cima, o que vemos é um profundo contraste com São Miguel e com todas as imagens pré-feitas que temos dos Açores enquanto arquipélago: a paisagem é plana e amarelada, polvilhada por umas estranhas “rodelas” — parecem buracos porque o são, são poços escavados pelo homem sem qualquer impermeabilização, tal a especificidade deste solo argiloso.

O aeroporto fica no lado ocidental da ilha, o mais antigo do ponto de vista geológico (a ilha não se formou de uma só vez, passou por várias fases): a data mais consensual parece ser sete milhões de anos, há quem se atreva a chegar aos 10 milhões. Santa Maria é, assim, a mais antiga ilha do arquipélago e, tendo a mesma origem vulcânica das outras ilhas, o seu aparecimento foi, contudo, diferente, erguendo-se do fundo do Atlântico devido a convuls? ?es geológicas. Ao longo da sua vida “esteve várias vezes debaixo de água”, o que ficou inscrito no seu “interior”, que se revela em “fatias” de rochas vulcânicas submarinas e terrestres, intercaladas por rochas sedimentares marinhas e terrestres.

É nestes depósitos sedimentares calcários que abundam fósseis, desde conchas e outros moluscos a alguns de maior porte, o que é único nos Açores. “Não têm a espectacularidade de uma pegada de dinossauro, mas não deixam de ser fósseis”, nota Nelson Moura, vigilante da natureza e nosso guia na ilha, com a particularidade de muitas vezes nos permitir olhar para o “fundo” do mar mais de cem metros acima do seu nível actual.

Na verdade, Santa Maria revela-se como uma enciclopédia geológica natural, destino de várias expedições científicas. Se a “pegada de dinossauro mariense” é a Pedra-que-Pica, compara Nelson, temos de confiar nos relatos: o único acesso é feito pelo mar e o nosso tempo na ilha é escasso para tais andanças. Ficamos sem ver uma jazida de milhões de fósseis, incluindo de dentes de peixes e tubarões. Não sabemos sequer se os conseguiríamos distinguir, confessamos. Porque estamos na Pedreira do Campo (parte do Monumento Natural da Pedreira do Campo, Figueiral e Prainha, mesmo ao lado da Vila do Porto, sede do único concelho da ilha e do parque eólico que lhe assegura 15% da produção energética) e custa-nos decifrar o que vemos nos penhascos que acompanham o passadiço de madeira que “conduz” a visita com o auxílio de placas informativas. E lemos para tentar perceber que aquelas paredes que chegam aos 15 metros de altura são “uma notável sequência de lavas submarinas ‘em almofada’” — parecem “ovos” gigantes acastanhados incrustados na rocha maioritariamente negra onde tufos de erva e cactos teimam em nascer; noutra parte da pedreira espreitamos um buraco que revela “rochas sedimentares com abundantes fósseis”.

A descoberta destes piroclastos (rochas vulcânicas submarinas) e bioclastos (rochas com fósseis) foi um feliz acidente causado pela exploração da pedra, que ainda se faz na zona, sem que tal assuste as garças reais que vemos a passear calmamente. O que já deixou de se fazer é a cal, para qual se utilizavam as rochas sedimentares cobertas de fósseis. Nas redondezas, aliás, a Gruta do Figueiral, artificial, é uma recordação da extracção para a cal e um “mural” para as várias camadas geológicas da ilha.

Mas deixemos um pouco de lado os geossítios, que constituem a grande singularidade de Santa Maria. Porque se a nossa primeira visão é a de um planalto, seco, este é apenas “metade” da ilha. Na estrada para o Pico Alto já estamos nos Açores verdes e densamente florestados e no topo (587 metros) vemos a ilha que são duas: plana, com vegetação rasteira (que no Verão fica amarela), local de pastos (mas já foi “celeiro”, de acordo com relatos de Gaspar Fructuoso) a ocidente, montanhosa e cheia de vales verdes a oriente, onde as terras são mais férteis e se mantém a prática agrícola.

É o confronto entre a parte mais antiga e a mais recente da ilha, a que tem o clima mais seco do arquipélago, apesar das muitas ribeiras que constituem a teia nervosa na zona oriental. Mas deste pequeno miradouro, no topo de um trilho de terra que parte de uma espécie de bunker abandonado que pertence ao Ministério de Defesa Nacional e esteve ao serviço da NATO (ao lado, um memorial às vítimas de um acidente de aviação em 1989), a vista vai além da terra. As Formigas, os ilhéus-rochedos entre Santa Maria e São Miguel, distinguem-se no horizonte, com o perfil branco do farol a sobressair; mais perto, é o Ilhéu da Vila que pousa no mar, com as grutas que se abrem em tubos de lava e um habitat perfeito para a nidificação de aves marinhas protegidas.

Regressamos a terra para irmos ao encontro do “deserto vermelho dos Açores”, Barreiro da Faneca de seu nome oficial. Na realidade, conta-nos Nelson, já foi “mais deserto”: nos últimos anos foi invadido por vegetação endémica (“mais escura”), como o louro-da-terra, a urze, o pau-branco. Chegamos pela “porta do cavalo”, caminho estreito ladeado de muros de basalto. Perante nós temos um vestígio da última fase eruptiva da ilha, explosiva, em que uma antiga escoada lávica basáltica foi coberta de cinzas (piroclastos) que, caindo em terreno tropical, se transformaram em argilas alaranjadas. Por momentos podemos imaginar que estamos em África, neste deserto ondulado (chamam dunas aos solavancos do solo, mas é um claro exagero) pela acção da erosão eólica e, sobretudo, hídrica. Não há muitos meses, um casal de turistas aventurou-se com um jipe pelo barreiro depois de fortes chuvadas e ficou com o carro atolado. Hoje, o solo está consistente q.b. e podemos concentrar-nos no cantar do esquivo “Estrelinha de Santa Maria”, “pássaro do tamanho de uma chave, mais leve do que um pacote de açúcar e endémico na ilha”.

Em direcção à baía de São Lourenço a paragem também é vermelha, mas aqui há pedras que cantam. Uma curta caminhada, uma curva acentuada, e eis o Poço da Pedreira, um recanto inesperado à laia de oásis. A parede vermelha, que parece ter sido esculpida com régua e esquadro — se estivesse sol, a pedra refulgiria, mas ainda assim o vermelho-ferro não esconde a sua graça — é o primeiro impacto. Foi escavada à custa de objectos de ferro, “malhas, cunhas e a pedra cantava”, daí o seu nome “pedra de cantaria”. “Nos Açores só existe aqui”, explica Nelson. Porém, se falamos em oásis é pela envolvência, com um lago aos pés, “relvado”, mesas de piquenique e depois a paisagem, montanhosa para além do vale que se abre ao lado, na ribeira do Salto — tudo entre a sinfonia natural de rãs e sapos. 

A Ponta da Malbusca e a sua lenda ficam para trás, mas ainda colocamos os pés no barreiro de rocha plasmática; depois é a Ponta do Castelo com o seu farol que vemos. A placa indica a Calçada do Gigante, mas como não estamos na Irlanda do Norte chamemos-lhe o que todos lhe chamam, Rocha dos Maloás. O caminho até lá é, para nós, uma tortura, no topo de uma falésia até que podemos passar para um prado de declive suave até novo precipício. Aqui já estamos na presença do afloramento de “disjunção prismática”, explica Nelson, formada numa escoada lávica basáltica. A ribeira que lhe empresta o nome salta as colunas que se alinham como uma cortina gigantesca, escura, mas é apenas um fio na imensidão pétrea coroada do verde de colinas que a rodeiam. 

Com vista para a praia Formosa, o miradouro da Macela, 190 metros de altura, é também uma praia — fóssil. Esta jazida fossilífera guarda bivalves, mas nós não descortinamos nenhum, apenas três cavalos que pastam num terreno impossivelmente exíguo, lado a lado com a arriba. Para um resumo — bastante visual e interactivo — da história geológica, e também biológica, de Santa Maria, o centro de Interpretação Ambiental Dalberto Pombo, em plena Vila do Porto, é uma visita indispensável. Aqui não há maneira de falhar, por exemplo, os fósseis marinhos, que são tão elusivos numa visita rápida como a nossa. Porque para conhecer toda a riqueza geológica (e paleontológica) de Santa Maria teríamos de percorrer os trilhos que a atravessam (ver texto secundário) — e de caminho descobrir esta ilha tão idiossincrática.

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Paulo Pimenta
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