Os artistas, as suas obras e a necessidade de risco

Em 2014, houve uma insistência na exposição antológicaa e uma deslocação da atenção nas obras para a atenção no artista.

Indiscutivelmente e a muitos níveis este ano será marcado pelo fim do BES e por todas as consequências desse fim. Nas artes visuais a falência do banco trouxe o fim do Avenida 211, um espaço de ateliers e de exposições com enorme qualidade, diversidade e onde se puderam assistir a exposições notáveis que dificilmente encontrariam outro contexto para serem desenvolvidos.

Essa falência também trouxe incerteza, antecipando-se o fim, do BES Photo, um prémio que nos poucos anos da sua existência se conseguiu afirmar como um acontecimento estruturante do meio artístico português. Antecipa-se também o desaparecimento da colecção internacional de fotografia do antigo banco: uma colecção no top-10 das mais importantes do mundo e a única em Portugal onde se podia contactar com os nomes fundamentais da fotografia mundial. Mas este também foi o ano do SAAL, de José Pedro Croft e da intensa presença de artistas fora do eixo Europa-América no mais importante museu português de arte contemporânea que é Serralves.


Mas o que predomina é a crise e neste cenário a pergunta que mais recorrentemente todos fazem é: até quando? E esta não é só uma pergunta pela recuperação da saúde e dinamismo do mercado da arte, mas essencialmente uma pergunta por um outro contexto institucional em que obras, autores e público se possam relacionar de um modo mais livre, diverso e arriscado. E uma das expressões desta ausência de risco está na inexistência de exposições colectivas, de investigação, em que a atenção monográfica sobre os autores dá lugar à construção de um pensamento com e a partir de obras de arte singulares.

Há as excepções conhecidas em que outras geografias da arte e do mundo são trazidas a debate, mas na sua generalidade assiste-se a uma deslocação da atenção nas obras para a atenção no artista e a uma insistência na exposição antológica, na afirmação da autoridade de um autor, na confirmação de um percurso.

Não se trata de minorar autores individuais e o papel fundamental que alguns deles têm ao conseguirem, através das suas obras, iluminar todo um tempo e uma geração em conjunto com as suas aflições e transformações, mas trata-se de constatar o domínio de uma tipologia expositiva e daí retirar consequências. Esta é uma situação para a qual todos contribuem — os jornais e a sua ideia de informação, a crítica, as direcções dos museus e centros de arte e o predomínio das análises estatísticas, a sua obsessão pelo público como principal critério de gestão cultural e programação, etc. — e em que predomina o preconceito do sucesso: os espaços expositivos são hoje lugares dos casos de sucesso de onde estão ausentes a experimentação, a investigação, os projectos exploratórios e o risco a eles associados.

A primeira consequência desta transformação é que as exposições são hoje, sobretudo, reflexo das dinâmicas do mercado e não expressão da singularidade das propostas artísticas, nem tão-pouco materializam linhas de pensamento sobre a realidade, a qual se questiona, investiga e se tenta alterar. Muitas vezes e motivado pelo forte constrangimento financeiro, é o mercado que possibilita exposições, são os seus agentes que através de generosos patrocínios possibilitam e viabilizam exposições, pagam catálogos, oferecem obras a troco da promoção e valorização do conjunto certo de artistas. E as exposições que requerem mais investigação, mais tempo, maiores riscos são secundarizadas e esquecidas. Trata-se do predomínio do artista bem-sucedido (sendo que os critérios de sucesso são muitos e variados) e da ausência de exposições que pensem a nossa condição presente, isto é, exposições que sem caução e sem as garantias da história da arte, dos seus acontecimentos consagrados e longe dos seus protagonistas principais arrisquem pensar os paradoxos do quotidiano.

Num importante texto Alison Gingeras, conhecida historiadora de arte americana, dizia numa importante revista de arte, a ArtForum, sobre um artista: não interessa pensar sobre as suas obras, elas são imunes a tudo o que sobre elas se disser, porque o seu autor através da mitologia que sobre si forjou e do sucesso obtido, conseguiu tornar as suas obras indiferentes a qualquer disputa e, com isso, garantir no olimpo da história um lugar de destaque para toda a sua obra. O texto de Gingeras é sobre Jeff Koons, mas ele serve aqui como ilustração e sintoma da deslocação da atenção que temos vindo a descrever em que os autores colocam à sua sombra o seu trabalho e, assim, o eclipsam.

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