Reaprender a ouvir a partir das ruínas

Num tempo de excesso de informação, houve quem resistisse em 2014, fazendo-nos sentir os lugares, o tempo, o espaço, os sons e todo o universo de experiências lá dentro.

Já não é apenas algo que faz parte do nosso quotidiano. É muito mais do que isso. Hoje a música quase se substituiu ao ar que respiramos. Tornou-se ubíqua, está em quase todo o lado, a toda a hora, muitas vezes de forma indiferenciada, contribuindo para que a nossa relação com ela se transfigure.

Na última década as condições de feitura, existência, partilha e distribuição da música alteraram-se radicalmente. Assistiu-se a um fenómeno de massificação e disseminação, com uma série de impactos negativos e outros extremamente positivos. A democratização da fruição e a possibilidade de cada um produzir a sua própria música constitui uma mais-valia. Por outro lado a experiência pode banalizar-se, se essa imersão contínua não for acompanhada de distanciamento crítico.

A música já foi uma raridade. Agora raro é o silêncio. Estamos rodeados de rumores, no sentido real e metafórico. Talvez estejamos necessitados de reaprender a ouvir, reavaliando a música na relação com a comunidade e connosco próprios. Talvez por isso um álbum como Ruins, de Liz Harris, mais conhecida como Grouper, adquira uma dimensão tão alegórica. Parece uma obra de um outro tempo, radicalmente diferenciador na vertigem dos dias. Não por acaso foi gravado em 2011, mas a sua autora só este ano resolveu lançá-lo. Teve em pousio. Sem pressas. Ao ritmo interior da sua compositora.

De todas as artes, a música é talvez aquela que é menos uma coisa palpável e mais uma prática, conectada com o local onde a ouvimos ou com quem. Antes de terem surgido as primeiras gravações era uma conduta e um acontecimento social, ligada a funções específicas, em simultâneo, comunitária e utilitária.

Era uma experiência efémera. Só a memória registava o que se havia ouvido e sentido. Ao escutar-se Ruins pensa-se nisso. O tempo distendido. A reminiscência de um lugar (Aljezur, no Sul litoral de Portugal) e um período específico, 2011, quando Liz Harris se reavaliava a si própria e o mundo exterior – através da paisagem física degradada e da crise económica global – fazia eco no seu cosmos interior.
É um disco de aromas, sons e pulsações, para voz, piano e ruídos concretos. Alguns ouvem-se mesmo – as rãs, a trovoada, a chuva – outros pressentem-se, como o vento, os passos de Liz pelo soalho da casa ou pela praia. É uma obra orgânica. Nisso é totalmente fora do seu tempo e, paradoxalmente, radicalmente contemporânea nessa forma de se assumir.

Dir-se-ia que através da música assegura-se uma forma de compromisso com a vida. Esta torna-se indissociável do existir, do pensar, do sentir. Não é apenas um produto ou qualquer coisa que pode ser ouvida inúmeras vezes noutros contextos. Quer dizer, pode. Não existe controlo sobre isso. Mas esta é uma obra que respira um tempo e um espaço precisos. E que deseja que o ouvinte se deixe submergir nessa informação.
Numa conjuntura onde sobressai uma sensação de entorpecimento cultural pelo acumular de informação, eis música a tentar dizer-nos coisas psicológicas, físicas ou sociais, e ao mesmo tempo a fazer-nos participar desse movimento.

Durante décadas, de alguma forma, é como se nos tivessem dito: podem ser ensinados a apreciar música, mas nem pensar em fazê-la. Todos podíamos ser consumidores, mas apenas alguns eleitos podiam criar. Liz Harris pertence a uma geração que cresceu com o acesso facilitado à tecnologia, onde qualquer um pode aspirar a produzir a sua própria música.
Nesse sentido é uma artesã. E também uma resistente, apresentando uma obra que pede para ser usufruída sem interrupções, numa altura em que tanto se proclama que a maior parte do público já só consegue ouvir faixas isoladas.

Talvez esse seja um dos vectores dos nossos dias. Mas existem muitos outros eixos, numa altura de grande dispersão em as cifras macroeconómicas da indústria deram lugar a um novo pragmatismo – vender menos de mais produtos. Foi assim que foram irrompendo novos protagonistas. Mais humanos. Mais próximos de nós. Criadores que, independentemente das tecnologias, asseguram alguma forma de compromisso com a existência, reflectindo ou ampliando o que acontece à sua, e à nossa volta, num período de grande experimentação social.

Liz Harris foi uma dessas criadoras que, em 2014, apesar de parecer em contraciclo, mais contribuiu para mostrar que é possível reaprender a escutar no quase silêncio, no meio do excesso de informação. Apesar do título, o seu álbum não é sobre destroços ou ruínas. É um álbum sobre a reconstrução.

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