Entrevista

“O episódio deste Inverno nas urgências mostrou-nos o que será o futuro se continuarmos neste caminho”

André Biscaia é médico de família há 16 anos, os últimos oito na unidade de saúde familiar (USF) Marginal, em São João do Estoril. Doutorado em Saúde Internacional – Políticas de Saúde e Desenvolvimento pelo Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, o investigador reconhece que a USF onde trabalha já dá resposta ao que deve ser o futuro dos cuidados de saúde primários em Portugal. No entanto, o também membro da Associação Nacional das USF considera que tem havido falta de vontade política para apostar nestas unidades, o que leva a que Portugal continue a caminhar a várias velocidades com metade do país ainda coberto pelos antigos centros de saúde. E alerta que o caos nas urgências no último Inverno devia ter feito soar os alarmes para a necessidade de mudança.

Como considera o estado actual dos cuidados de saúde primários (CSP) em Portugal?
Se compararmos com décadas anteriores acho que nunca estivemos tão bem. Desde 1970 temos tido uma série de reformas nos cuidados de saúde primários e todas têm trazido inovação e melhorias profundas, mas o salto qualitativo mais relevante foi a constituição do Serviço Nacional de Saúde porque trouxe a possibilidade de toda a população ter acesso a cuidados médicos de qualidade. Depois houve a possibilidade da carreira dos médicos de medicina geral e familiar. O aumento do número de profissionais também foi relevante. A maior parte dos indicadores tem uma relação directa com o aumento do número de profissionais, não só de médicos, mas também de enfermeiros e das outras profissões de saúde. O problema é que as outras profissões têm aumentado mas não no Estado, como os psicólogos, dentistas, serviço social, nutrição. Esse é um aspecto que ainda está por cumprir.

Ainda não se ultrapassou a ideia de associar os CSP só ao médico de família?
Em parte não, mas as USF vieram reforçar um pouco a questão do papel do enfermeiro de família e do secretário clínico. Muitas das USF, como a minha, organizam-se em micro-equipas. As pessoas que estão inscritas na minha lista estão também inscritas na lista daquele enfermeiro e daquele secretário clínico e isto cria a noção de equipa. Foi um dos ganhos das USF com a reforma de 2005.

Mas isso ainda é um pouco um microclima, porque metade do país não tem USF e mesmo de uma USF para outra podem existir diferenças. A própria OCDE já se manifestou preocupada com estas várias velocidades.
Não é de facto uma situação que devamos sequer tolerar. Tem sido essa a crítica mais saliente. Mas não é um problema do modelo das USF. No início de qualquer reforma há sempre assimetrias, o tempo que se demora a resolver essas assimetrias é que não se pode admitir. São dez anos. Tem-se dito que o problema é a constituição das USF ser voluntária. Uma USF tem de nascer de um processo voluntário de um grupo de médicos, enfermeiros e secretários clínicos e ao longo dos últimos anos tem havido uma diminuição das condições de trabalho nas USF que tem levado a este cenário de queda. Quando tudo estava mais alinhado e era notória uma vontade política de constituir USF apareciam mais candidaturas. Se virmos o discurso político do Ministério da Saúde, e do ministro da Saúde em particular, a referência às USF e aos cuidados primários é praticamente inexistente.

Mas há dados de estudos que poderiam dar motivos ao poder político pelo lado financeiro, já que se estima que o país pouparia 280 milhões por ano se estivesse todo coberto por USF.
A OCDE não iria propor um modelo que não fosse eficiente e sustentável do ponto de vista mais financeiro. A própria troika, o único serviço público que aconselhou que fosse aumentado eram as USF. Mas o Governo, enquanto noutras áreas é um aluno exemplar, esta é das poucas medidas que não segue. Tem de se pensar qual é a motivação que leva a esse estado de coisas.

Mas se os de fora viram isso, os de dentro não incentivam por desconhecimento ou vê outras razões?
É uma opção política. As USF foram um modelo muito associado ao Partido Socialista, mas nem essa ideia é muito correcta. Os regimes remuneratórios experimentais foram pensados pela agora Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, num documento em que esta reforma estava escrita ao detalhe. Era uma utopia profissional, foi a nossa utopia profissional que fomos escrevendo e lutámos por ela. Depois encontrámos naquele Governo socialista uma janela de oportunidade. Em seis meses estava a primeira USF a ser constituída.

Qual é então a vantagem, mesmo em termos políticos, de ter um país a duas velocidades e com metade da população sem cobertura e os hospitais públicos com urgências entupidas?
Não se consegue perceber. O sistema de informação permite ver toda a actividade dos CSP e comparar as USF com os antigos centros de saúde e são superiores em todos os indicadores. Mesmo retirando os utentes sem médico de família [dos dados dos antigos centros de saúde], as USF continuam a ter resultados superiores. É possível fazer as contas aos custos e acredito que a troika e a OCDE as tenham feito.

Que resultados em concreto são esses para os doentes?
Temos o cumprimento das consultas de vigilância para a saúde infantil, para o seguimento de uma gravidez, a percentagem de recém-nascidos que têm a visita da enfermeira de família nos primeiros 15 dias de vida, primeira consulta dos recém-nascidos com o médico de família no primeiro mês de vida, o controlo da hipertensão ou da diabetes com valores desse controlo.

Mas esses resultados não surgem apenas pela criação de uma USF. Como é que se trabalha para que o utente perceba o serviço que tem ali e que se habitue a usá-lo?
É uma relação que se tem de construir e que exige tempo. Um dos problemas que estão a acontecer é que os recém-especialistas, quando são colocados, têm uma lista de 1900 pessoas e é muito difícil gerir 1900 pessoas que não se conhece e sem o suporte de uma equipa como nas USF. Temos também um modelo de governação clínica que faz toda a diferença, porque os profissionais são responsabilizados pela qualidade dos cuidados.

Mas então o que está a faltar no processo de motivação para criar mais USF?
Fizemos um grande esforço para formar mais médicos de família. Mas se não lhes damos condições para constituírem USF, se os colocamos isolados com 1900 utentes, a primeira coisa que eles fazem é pegar nas malas e partir. Os mercados do Reino Unido, dos países escandinavos e de Espanha estão abertos.

O que é que o país está a perder?
Os indicadores que podiam ser bem melhores. Mas não se fazem USF por decreto. Há uma assunção de risco e de mais responsabilidade. No modelo B, 40% do nosso vencimento depende do desempenho global da equipa. Nunca vamos conseguir cobrir o país todo por USF mas penso que 80% é perfeitamente exequível e em quatro anos. Nos outros 20% há o efeito de contaminação para os modelos tradicionais continuarem cada vez melhores.

Com a saída de profissionais acredita que é possível manter esse caminho de sucesso?
A USF conseguiram inverter a tendência na escolha das especialidades. A medicina geral e familiar começou a ser uma especialidade muito escolhida. Isso conseguiu-se vencer porque as condições de carreira e perspectivas de trabalho eram boas.

Eram…
Eram. Neste momento não consigo dizer que sejam boas, com listas de 1900 pessoas e condições de trabalho precárias. Não é assim que se vai conseguir dar um médico de família a cada português. O que se está a conseguir fazer com isto é afastar as pessoas. Há também a intenção de dar esta especialidade a todos os médicos que tenham seis anos de prática, mas os CSP têm de ter uma formação específica, não se aprende só por prática.

Na sua USF já há outra forma de pensar. Têm até afixado um cartaz que diz que o check-up caiu em desuso, uma ideia muito defendida no modelo holandês.
Aqui nesta USF conseguimos reduzir a prescrição de hemogramas em 30% em dois a três anos. Só por racionalização, não é por limitação. O check-up é uma ideia antiquada. Não faz sentido fazer tudo a todos. Tem de se fazer aquilo que é necessário e o que está provado que é útil. O exame do PSA, para a próstata, por exemplo, até pode ser prejudicial.

Mas a cultura portuguesa está preparada para perceber que nem tudo o que se deixa de fazer é uma questão de racionamento?
Quando falamos das pessoas que nos escolhem utilizamos o termo cidadão, não usamos nem utente, nem cliente nem doente. O cidadão tem um pacote de direitos e deveres muito mais interessante. O cliente paga e exige. O consumidor também tem uma carteira de direitos que é superior à dos deveres. O cidadão tem mais deveres, como o de não utilizar mal e não desperdiçar. Tem também o dever de se envolver. É por aí que conseguimos mudar alguma cultura.

Mas a ida directamente aos hospitais não tem também relação com receios de falta de resposta?
Sim, há insegurança. Na minha USF o simples acesso telefónico ou por email dá segurança às pessoas para resolverem situações em casa. Isso é tudo alicerçado numa coisa que é a relação com alguém que conhecem. Quando não conseguem falar comigo falam com a enfermeira ou com a secretária e isso dá segurança. Mas nem todos os sítios têm autonomia suficiente para se organizarem.

Falta autonomia?
Falta. Não é só para comprar os materiais que faltam. Aí até podia haver uma central de compras. O grande problema foi a centralização da tomada de decisão. Os agrupamentos de centros de saúde decidem muito pouco e as administrações regionais de saúde decidem sem saberem minimamente o que se passa no terreno.

O encerramento de alguns serviços nocturnos e mesmo o facto de haver USF com horários menos prolongados não perverte a aposta nos CSP?
Se temos uma USF com quatro médicos é impossível cobrir um horário alargado. Com dez médicos já é possível. O modelo das USF tem de evoluir e permitir, como na Holanda, que as USF se associem umas às outras para prestar os cuidados fora de horas. Aqui temos por exemplo uma consulta ao sábado de manhã que é muito procurada. São mais custos mas seguramente que se ganha. A análise da eficiência tem de ser vista em termos globais.

Como imagina que teria sido o último Inverno com uma maior cultura de CSP e se todos os portugueses tivessem médico de família?
A cobertura de modelos com serviços organizados permitiria ter acomodado o aumento da procura. O episódio deste Inverno mostrou-nos o que será o futuro se continuarmos neste caminho, se continuarmos a apostar em privatização de serviços, em contratar pessoas à peça, em não criar carreiras profissionais… A aposta tem de ser nas carreiras, nos serviços públicos. Os privados estão orientados para o lucro.

Mas acha que falta restrição no acesso às urgências? Os doentes só deveriam ir referenciados pelo médico de família, Saúde 24 ou pelo INEM?
Isso faria todo o sentido. Mas uma medida dessas obrigava a que os CSP funcionassem mesmo e essa não tem sido a aposta dos governos. Em áreas que foram incentivadas nas USF, como o controlo da diabetes ou da hipertensão, os internamentos hospitalares desceram. Os incentivos obrigaram os serviços a reorganizar-se e a darem uma melhor resposta. Falta fazer isso em todas as áreas em que os CSP podem ter esse papel.

Acredita que na próxima legislatura os CSP serão um tema central?
Acredito, mas convém lembrar que as reformas não funcionam se não forem feitas de baixo para cima. Esse foi o segredo inicial das USF. O que está a faltar a Portugal é as associações profissionais escreverem as suas próprias utopias, tal como nós escrevemos como deveria ser o centro de saúde do futuro. Isso tem de ser escrito pelos próprios profissionais. É preciso fazerem a sua utopia e lutar por ela. Para viver uma utopia primeiro é preciso escrevê-la e nós tivemos esse privilégio.