Entrevista

“Aquilo que o Estado investe no cinema é rentabilizado durante décadas”

Pedro Borges abriu o Cinema Ideal, em Lisboa, há um ano com uma boa dose de inconsciência – é ele que diz – a contracorrente do que aconteceu em Portugal nos últimos anos, em que o país foi assistindo sem reacção ao desaparecimento de salas históricas e  em que ir ao cinema se tornou uma impossibilidade em muitas cidades.

Produtor e distribuidor na Midas Filmes, depois de ter trabalhado com Paulo Branco na Atalanta, defende que o sector da exibição deveria receber mais apoios públicos. “Para que andamos a financiar o Miguel Gomes, o João Salaviza, o Pedro Costa, se depois não há cinemas pelo país fora onde as pessoas possam ver os filmes?”

O Estado deve encarar o cinema como um serviço público? Porque é que o cinema não é um sector económico como os outros?
O cinema deve ser encarado como todas as outras manifestações de ordem cultural e de criação artística. A única coisa que o cinema tem é que é uma actividade muito cara. E Portugal, porque é um país pequeno, sem um mercado exterior, tem um mercado interno que é extremamente limitado. A rentabilização que tem é sempre diminuta. E há uma desproporção maior do que noutras actividades culturais entre aquilo que as coisas custam e a rentabilização estritamente económica e de curto prazo que pode ser feita. Porque ao contrário de outras coisas o cinema tem outra especificidade: dura muito tempo. Ou seja, um filme que o Manoel de Oliveira fez há 73 anos continua a ser um bem económico rentabilizado todos os anos. Desse ponto de vista, aquilo que o Estado investe em cinema é uma coisa que existe na economia nacional durante décadas e décadas e décadas. E nós continuamos a discutir o cinema como se um filme existisse durante três meses – o filme estreia e em três meses fez não sei quê. Mas isso, no limite, não quer dizer nada. Por um lado porque já existe o DVD, já existe o cabo, já existem não sei quantas maneiras de ver os filmes. E que do ponto de vista económico já valem mais do que a sala de cinema há muitos anos. Há filmes que duram três meses e desaparecem para sempre e há filmes que ao fim de 70 anos continuam a existir. A avaliação só pode ser feita com esses vários critérios.

Mas as duas vertentes – o retorno imediato e longo prazo – são necessárias, ou não? Até porque o que dá resultados imediatos pode contribuir para aquilo que dura a longo prazo. O sistema francês parece conciliar os dois. Não existe uma guerra aberta entre a indústria e a arte.
Porque a indústria respeita a arte. Mas estamos a falar de um mercado interno e algum mercado francófono que têm uma dimensão completamente diferente do nosso. Um filme francês parecido com um filme do João Canijo ou parecido com um filme do Pedro Costa não custa em França muito mais do que custa em Portugal. Mas o seu potencial de exploração a curto prazo é muito maior. Porque estamos a falar de um país de 60 milhões de habitantes, onde a média de frequência de cinema é 2,8 por habitante, enquanto em Portugal é 1,2. Um país que tem seis vezes mais população, tem um nível de frequência dos cinemas muito maior, tem a Suíça francófona, a Bélgica francófona, o Canadá francófono, a África francófona, que é um pouco mais relevante que a nossa. Por outro lado, há um sistema onde apesar de tudo em termos quantitativos há algum desafogo. É isso permite que as coisas convivam melhor. E aquilo que existe, que não existe cá, é que as pessoas respeitam aquilo que o Jacques Rivette faz. O meio do cinema, mesmo o mais rafeiro, respeita muito o que o senhor Jacques Rivette faz – ou fazia. Enquanto aqui isso não existe. Não tenho desprezo nenhum pelas pessoas que fazem filmes que têm 250 mil espectadores. Simplesmente, é uma coisa que não me interessa absolutamente nada. Não me interessa perder tempo e anos de vida a fazer coisas sem interesse algum. Agora, há uma ecologia própria do meio que permite que isso subsista assim. Em Portugal andamos há 10, 20, 30 anos a tentar criar uma coisa desse género e empanca sempre.
 
O sistema francês é invejado porque concilia o sucesso artístico e o sucesso económico. Se fosse só reconhecido pelo seu pendor para um cinema de autor, sem os bons resultados económicos, talvez fosse mais dificilmente defensável.
O cinema francês tem uma história de 60 anos que o cinema português não tem. Enquanto os franceses tinham o Renoir e o Becker e não sei quantos génios, Portugal tinha O Pátio das Cantigas, uma coisa saloia, pedestre. Os franceses têm um investimento na promoção internacional do seu cinema que não tem comparação com outro país. O único festival de cinema do mundo que ainda hoje existe, do ponto de vista económico, é Cannes.

E depois há aquilo que demorou muitos anos com o Manoel de Oliveira. “Eu não vi nenhum filme dele, mas deve ser bom. Porque se não fosse bom, os estrangeiros não gostavam tanto.” Os franceses não põem em causa que o Jacques Rivette ou 30 nomes que eu podia dizer, façam coisas extraordinárias que vão durar. Mesmo que não os vão ver ao cinema, respeitam imenso. Isso é que nos diferencia dos franceses. Por outro lado, o modelo de financiamento assenta em mecanismos que fazem circular o dinheiro. O fundo de apoio à produção funciona assim: você faz um filme, o filme faz não sei quê, fica com uma conta aberta no Centre National du Cinéma para ir levantar não sei quantos mil euros para o filme seguinte; pode começar logo a prepará-lo, pôr o realizador a escrever, pôr uma equipa a trabalhar.

Em Portugal também existem apoios automáticos à produção.
Sim, se fizer mais de 20 mil espectadores. Se fizer 19.999 não tem direito a nada.

Por outro lado, em França ninguém põe em causa, nem nas televisões privadas nem nas operadoras de cabo, as contribuições para o sector do cinema. Cá isso só foi criado agora, com este Governo, mas na primeira oportunidade essas pessoas conseguiram fazer descer um terço do que estava previsto no primeiro projecto de lei. Enquanto em França e noutros países civilizados sabem que, para desenvolver a sua actividade, vão ter de pagar uma taxa que é para o seu próprio país. A regra é: a gente vai fazer uma plataforma para distribuir a Fox, o AXN, o Hollywood, etc, e na rentabilização disso há uma parte que fica no país para o país fazer também ficção audiovisual e cinematográfica. Enquanto noutros países, as pessoas acham isso obrigatório, os agentes económicos portugueses acham que não. Vendem tudo o que puderem aos estrangeiros. São pura e simplesmente redistribuidores de canais estrangeiros – que os portugueses pagam. Quando pago 49,90 euros à ZON todos os meses quero que cinco ou dez euros dos 600 que pago por ano sejam para a ZON entregar ao Estado, para o Estado redistribuir para produzir coisas nacionais. É este princípio que eles nunca quiseram aceitar.

E qual deve ser o papel do Estado aí?
Impor. Se eles disserem: “É muito, não gostamos”, é dizer: “Desistam. Obrigaram-vos a fazer a Meo? Vendam a empresa.” As televisões privadas estão sempre a queixar-se: “Ai, a vida está muito difícil, não queremos pagar.” Mas alguém obrigou o dr. Balsemão a fazer a SIC?

A produção audiovisual e cinematográfica tem de viver de um princípio que existe noutros sectores: o princípio do poluidor-pagador. Quem polui a paisagem paga taxas. Querem fazer telenovelas? Façam quantas quiserem. Ganharam dez milhões com cada telenovela? Então um milhão é para fazer coisas boas. É esse o princípio francês e o princípio universal.

O desaparecimento das salas de cinema em Portugal deveria ser uma preocupação das políticas públicas?
Como em tudo o resto, a política pública só existe para aquilo que o mercado naturalmente não dá. É por isso que a cultura deve ter apoios públicos.

A criação e produção de cinema em Portugal têm um grau de financiamento muito elevado, mas há outros sectores que pura e simplesmente funcionam por si próprios e com as regras do mercado. A distribuição tem um bocadinho de apoio do Instituto do Cinema e Audiovisual, a exibição recebe uma esmola. Há coisas que precisam de mais e precisariam de mais no arranque. Era preciso que alguém na secretaria de Estado da Cultura dissesse: “Mas não há uma sala de cinema decente fora de Lisboa? O que é que temos de fazer para mudar isso?” Para que andamos a financiar o Miguel Gomes, o João Salaviza, o Pedro Costa, se depois não há cinemas pelo país fora onde as pessoas possam ver os filmes?