Mudar de voz
A revolução surgiu vezes sem conta este ano no teatro português. Mas não foi apenas o tema de vários espectáculos: o teatro português está a trocar o discurso pelos gestos, as palavras pelas acções, os efeitos pelos afectos.
O ano começou sob o signo da memória política, com Coriolano, de Nuno Cardoso, tendo por cenário a escadaria das manifestações em frente à Assembleia da República.
Ainda em Janeiro, o Teatro do Vestido estreou em Viseu Retornos, Exílios e Alguns que Ficaram, sobre as memórias dos retornados das ex-colónias portuguesas em África. E estavam para vir duas grandes produções sobre o início do século XX português: Tropa-Fandanga, no Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), e Al Mada Nada, no Teatro Nacional São João (TNSJ), que, através do teatro musical e das suas formas populares, revivificadas, respectivamente, pela irreverência do Teatro Praga e de Ricardo Pais, actualizavam, por assim dizer, a Primeira Guerra Mundial e a geração de Orpheu.
Nem tudo era festa: Tropa-Fandanga recuperava o discurso viral de Joana Manuel sobre a geração perdida destes anos 10 e Al Mada Nada terminava com uma evocação de Bella Ciao, hino do movimento operário italiano. O mesmo tema apareceu em Setembro, na versão de Gota d’Água, de Chico Buarque, que Luísa Pinto encenou no Constantino Nery, em Matosinhos, com direção musical de Carlos Tê. Em Abril, O Bando esteve na TSF na madrugada de Abril, num simulacro de ocupação que chegou a confundir alguns ouvintes. Sérgio Godinho, que tinha canções em Tropa-Fandanga, criou um concerto — Liberdade — a convite do então director do São Luiz, José Luís Ferreira. Em Maio, estreou-se Marx na Baixa, a versão portuguesa de Marx in Soho, de Howard Zinn. Em Junho, na Culturgest, Le Capital, de Sylvain Creuzevault, trouxe de novo Karl Marx, e a revolução de 1848, à cena. Depois disso, ainda estrearam, Pílades, da Cornucópia; Bzura, da Palmilha Dentada; Onde é que eu já vi isto, perguntou ele, do Cendrev; Nova, Caledónia, de Miguel Loureiro e André Guedes. E finalmente, dando algum sentido a tudo isto, o Teatro do Vestido voltou à carga em Novembro, com o seu Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, em cujo programa, citando Paula Godinho, se lia que “em Portugal, na ausência de uma Comissão da Verdade e Justiça, ou algo semelhante, são os activistas, os cientistas sociais, os historiadores, bem como os artistas, quem tem levado a cabo esse paciente trabalho de reconstituição”.
A maioria dos artistas que fez estes espectáculos não tem memória da revolução. É um teatro feito pelas testemunhas inconscientes dos anos 70, que buscam não a memória mas o sonho colectivo. Os criadores que saíram à rua no 25 de Abril estão, aliás, a passar o testemunho. Talvez por isso os melhores espectáculos desta safra sejam os alusivos, que abrem caminho numa zona de utopia, e não os que tratam a História directamente. Sem as alegorias que permitem ligar a experiência de um destino comum à experiência de uma actualidade fragmentária, a teatralidade ficaria num impasse, incapaz de se constituir enquanto cena ou espaço de transformação.
O conteúdo está na forma, a posição política está no dispositivo — o conjunto de regras que determina quem faz o quê no jogo teatral, espectador incluído. O melhor teatro português deste ano pôs ao mesmo nível o explícito e o implícito, o que é ouvido e o que é visto, o pessoal e o público. O texto surge como matéria corporal, de autoridade relativa. Cria-se a partir de documentos e depoimentos, muitas vezes de biografias, que reforçam a relação sensorial, emotiva e empírica com a cena. Apresentar a fábula, em vez de representar, é palavra de ordem. O que os actores fazem nestes espectáculos é sempre pessoal. Em momento algum são postiços, nem mesmo quando a máscara que colocam é muito diferente da vida quotidiana.
Os espectáculos portugueses desta lista traduzem bem alguns destes aspectos. Rogério de Carvalho, cuja encenação encabeça o balanço do Ípsilon, não é novato nestas andanças: Quatro Horas em Chatila e Os Negros, por exemplo, já punham o dedo na ferida pós-colonialista europeia, cujas cicatrizes vão do Médio Oriente à África Ocidental e mais além. Neste espectáculo, apurou o método e encontrou um texto ideal para a sua visão de teatro: As Verdadeiras Confissões de um Terrorista Albino permitiram-lhe traduzir o texto numa realidade cénica distinta, para recriar o horror numa zona de não-dito, porque “o que tem lugar não se pode dizer com a língua que se fala vulgarmente”, como afirma.
Oficiais e interinos
As mudanças de forma estão a ser acompanhadas por mudanças no acesso aos meios de produção, algumas ocorridas este ano, que se prevêem duradouras. A nomeação de Tiago Rodrigues, no TNDMII, com Miguel Honrado na administração; de Tiago Guedes, no Rivoli e no Campo Alegre, com Paulo Cunha e Silva na vereação; e de Gonçalo Amorim, no FITEI (e no TEP desde 2013), são importantes: sucedem a directores e administradores muito mais velhos (João Mota, Filipe la Féria, Mário Moutinho e Júlio Gago) e têm mais cumplicidade entre si do que os veteranos. As expectativas de cooperação entre Miguel Honrado, Tiago Rodrigues, Mark Deputter e quem quer que fique no São Luiz e no Centro Cultural de Belém (CCB) são grandes. No Porto, o mesmo se espera entre Tiago Guedes, Gonçalo Amorim e Nuno Carinhas, ou quem estiver no TNSJ no fim de 2015.
O sistema passará a funcionar de modo mais coeso, atingindo um novo ponto de equilíbrio, com espectáculos e criadores dentro de um circuito nacional de teatros públicos e municipais, e redes financiadas por programas europeus. Os espectáculos estarão cada vez mais adaptados à circulação, por um lado, e aos critérios de programação (interactividade, formação, inclusão, etc.), por outro. O perigo é que fique tudo igual.
Está ainda muito por definir: o São Luiz entrará em 2015 sem director artístico? O CCB sem director do centro de espectáculos? A DGArtes sem subdirector? Continuarão na gaveta as shortlists para director (há mais de meio ano) e subdirector (há mais de um ano)? Face a este panorama de direcções interinas, o Porto parece um oásis, com o Teatro Rivoli e o Teatro Campo Alegre devolvidos à cidade, como se esperava, a nova sala da Mala Voadora com programação regular, e o TNSJ sempre firme, contra as adversidades. Os concursos de apoio às artes que abrirão a todo o momento, já muito atrasados, vão condicionar os próximos anos. Muitos dos criadores que estão a renovar a cena portuguesa irão a concurso. Só no fim de 2016, porém, quando acabarem os programas de apoio quadrienais, saberemos quão longe foram as mudanças iniciadas este ano.