Entrevista

“Portugal tem de acordar para o problema”

Nada ocupa mais as horas da socióloga Alexandra Lopes do que o envelhecimento. Escreveu uma tese de doutoramento sobre as suas implicações. Estuda a gestão de dependências, o sistema de cuidados, a exclusão. Fez a monitorização científica de uma investigação que, à escala nacional, tentou discutir o espaço urbano, partindo da lista de verificação das cidades amigas das pessoas idosas. Não encontrou resultados animadores. As ruas não estão preparadas. Fora dos grandes centros urbanos, é grande a insatisfação dos idosos com a frequência e abrangência dos transportes públicos, sobretudo entre os maiores de 75, os que mais disso dependem para aceder a serviços básicos.

Qual a grande diferença entre ser idoso no meio rural e ser idoso no meio urbano?
É conhecido o despovoamento dos meios rurais, das zonas mais de interior. Quem fica para trás são os mais velhos. Os serviços também têm saído de cena. Há um duplo isolamento: um isolamento humano e um isolamento do que são as estruturas e os serviços. No meio urbano há, pelo menos em teoria, maior disponibilidade de estruturas e de serviços e é aí que a maioria dos idosos vive, como o resto da população. Esses enfrentam os problemas próprios da malha urbana. Viver rodeado de pessoas não significa viver com as pessoas. É nas cidades que temos as situações mais dramáticas de isolamento.

O isolamento pode ser facilitado ou agravado pelas condições físicas exteriores, como a existência de rampas, de passeios desimpedidos...
Sim. E, se falar sobre isto, qualquer pessoa com bom senso lhe dirá que devemos ter mais cuidado com os passeios, com os semáforos, ter rampas em todos os edifícios... No plano dos princípios, será difícil encontrar quem discorde destas orientações. Na prática, continuamos a projectar edifícios, parques públicos, a fazer frequentes intervenções em ruas, passeios, e a não ter propriamente um cenário recheado de boas práticas. Também não o temos ao nível do comportamento quotidiano. A forma como conduzimos, como estacionamos, reflecte a nossa maior ou menor sensibilidade. Ainda estamos muito no plano das teorias. Parece-me que é urgente passar à prática.

O estudo que monitorizou sobre cidades amigas dos idosos [para a Associação Vida] dá nota de bons exemplos...
É importante evidenciar exemplos de boas práticas, até pelo potencial de replicação, mas isto não se faz aos bocadinhos. Há questões que têm de ser pensadas de forma integrada, que não podem depender da maior sensibilidade de um autarca, de um responsável local. Tem de haver um planeamento a nível nacional.

Um plano nacional?
Já se tem falado nisso. Não é simples. O envelhecimento é um processo natural que não pode ser compartimentado. É necessário integrá-lo em todas as áreas: nas políticas sociais, na saúde, na educação, no emprego, passando pelas infra-estruturas, pelos edifícios públicos, pelos espaços verdes, pela circulação da via pública, pelos transportes públicos... Uma sociedade inclusiva é uma sociedade onde todos podem participar independentemente da idade.

Uma das dimensões da participação é o trabalho. As empresas recorrem amiúde ao critério etário na hora de despedir...
A linha etária no mercado de trabalho parece ser ainda mais cruel. Aos 45 anos, uma pessoa está no pico da idade activa, mas é nalguns casos colocada em situação de equivalência a alguém que está de saída. É um problema, mas podemos olhar para isto de outras maneiras. Projecta-se que, em Portugal, em 2050, 31,8% da população terá 65 ou mais anos. Estamos a falar de um grupo etário dominante. Haverá um encolhimento muito significativo da população em idade de trabalhar. Num cenário de défice de mão-de-obra, o mercado de trabalho não se poderá dar ao luxo de excluir quem tem mais de 45 anos.

E noutras esferas? São mesmo os nossos idosos menos activos que os da Europa do Norte e do Centro?
São e não são. Se estivermos a pensar em actividades de voluntariado, sim. Se estivermos a pensar em trocas intergeracionais no seio da família, não. Têm níveis de envolvimento elevadíssimos, por exemplo, no cuidado aos netos. E muitos continuam a fazer algum trabalho, nomeadamente na agricultura de subsistência.

Fazem voluntariado dentro da família?
Sim. Essa é uma das explicações para a não participação no voluntariado mais formal, mas é um traço característico da sociedade portuguesa. Não temos, em nenhuma faixa etária, taxas de voluntariado semelhantes às de outros países europeus. Não somos de fazer voluntariado.

A certa altura, podem ser os idosos a precisar de cuidados. Por que são os serviços prestados tão tipificados?
Um certo grau de tipificação é necessário, sob pena de as coisas não funcionarem. A forma como o serviço é organizado é que pode variar. O caso inglês é interessante na forma como incorpora nos próprios serviços o direito de escolha. As pessoas podem, por exemplo, negociar o horário, o tipo de alimentação.

Há também maior diversidade. Grandes instituições podem ter, por exemplo, trabalhadores que fazem pequenas obras de adaptação das casas ou voluntários que levam livros ou que acompanham ao cinema...
Portugal foi durante muito tempo descrito como um país de tipo familista. Este tipo de apoios é tradicionalmente assegurado por familiares. Isto acaba por estar muito na base do que é o modelo de funcionamento das instituições, dos serviços que prestam. O caso inglês é diferente. Há uma passagem deste tipo de responsabilidades para as organizações não-governamentais ou organizações de base local.

Em Portugal, as famílias estão a mudar...
Sim. Temos todo um aparato institucional que assenta no modelo familista, ou seja, que assenta no pressuposto de que as famílias não só estão disponíveis como têm obrigação. E as portuguesas estão a mudar. O modelo português, de familista, já tem muito pouco. Há uma multiplicação de modelos familiares. O afastamento geográfico é uma variável importante e que se tem vindo a agudizar com as novas levas de emigração. Há toda uma malha de relações que no passado foi densa, que funcionou como rede de suporte, como amortecedor das fragilidades do próprio modelo estatal português, e que neste momento está a falhar, o que obriga a repensar as respostas ou pelo menos a assumi-las como uma questão urgente.

O que nos impede de ser mais criativos nas respostas?
Essa é a pergunta que andamos a fazer há algum tempo. Vontade política, questões culturais, interesses instalados das entidades que prestam o serviço. Há aqui uma confluência de dinâmicas. Preocupa-me a ausência de um esforço sério a nível nacional para discutir o que significa a reconfiguração demográfica da sociedade portuguesa. Temos de acordar para o problema e perceber que há aqui um conjunto de desafios que têm de ser enfrentados. E isto não pode ser partidarizado. Tem de haver um esforço transversal, de todos os sectores da sociedade, para pensar nisto para um horizonte temporal mais dilatado do que o normal ciclo governativo.

Tendo por prioridade encontrar forma de ajudar as pessoas a manterem-se independentes até mais tarde?
Esse é um dos objectivos, aliás, da Agenda 2020 para o envelhecimento saudável. A União Europeia definiu como objectivo para 2020 ganhar dois anos de vida saudável. Uma intervenção ao nível do adiamento do desenvolvimento de dependências deve ser pensada sempre a partir de um princípio de intervenção ao longo da vida. O desenvolvimento de dependências tem muito a ver com os percursos de vida. Tem maior dependência quem está em desvantagem socioeconómica. Continuamos a ter idosos com carências económicas muito marcadas. Os rendimentos da população idosa são baixos. São particularmente graves os cortes recentes em alguns dos benefícios. É urgente voltar a olhar de forma séria para as condições financeiras dos idosos. É urgente olhar para os serviços de saúde também.