Durante a Grande Depressão, nos anos de 1930, o economista britânico John Keynes previa que trabalhar seis horas por dia seria uma realidade para a geração dos seus netos. Ao longo dos últimos 85 anos, a evolução é inegável, embora a previsão de Keynes continue por concretizar. E, quando se olha para o futuro, as perspectivas são pouco animadoras. A globalização da economia, a precarização das relações laborais e a crise mundial têm levado os países a adoptar novas formas de organização do tempo, que obrigam a trabalhar mais pelo mesmo ou até por menos dinheiro.
Portugal não é excepção. A semana de 40 horas está prevista na lei desde 1996 (e pode até ser mais curta, se houver acordo na negociação colectiva), mas entre a teoria e a prática a diferença é assinalável. Os números mais recentes mostram que, em Outubro de 2013, os empregados por conta de outrem trabalhavam 43,3 horas semanais, enquanto no sector público o horário semanal aumentou, por lei, de 35 para 40 horas. Fora destas contas fica uma parte da realidade que passa por trabalho não-pago ou invisível.
“Os últimos 25 anos foram marcados por uma espécie de efeito ondulante. Na linha de uma tendência europeia dos anos 90, ocorreu uma redução da duração normal de trabalho semanal, a que se seguiu, nos últimos anos, um aumento efectivo do tempo de trabalho, tanto no sector privado como no público”, nota Hermes Costa, investigador do Centro de Estudos Social (CES) da Universidade de Coimbra. “A percepção que fica, mais acentuada entre os funcionários públicos, é a de regressão social e de quebra de expectativas. Tanto mais que a mais horas trabalhadas não corresponde retribuição correspondente”, acrescenta o sociólogo.
Entre 2012 (quando foram introduzidos na lei a redução do pagamento do trabalho suplementar, os cortes de dias de férias e feriados e os bancos de horas individuais) e 2013, o CES estima que os trabalhadores do sector privado perderam, em média, 2,3% do salário efectivo e deram à empresa uma semana e meia de trabalho, sem terem sido pagos por isso.
A este diagnóstico, Luís Gonçalves da Silva, professor de Direito do Trabalho na Universidade de Lisboa, acrescenta a “grande tolerância, do ponto de vista social, para com a extensão do tempo de trabalho”. “Continuamos a trabalhar mais de 40 horas em Portugal. É quase tácito. Essa tolerância faz com que o tempo de trabalho pareça um factor, um bem, que tem pouca relevância”, acrescenta, lembrando que as formas de flexibilização dos tempos de trabalho que têm sido adoptadas contribuem para “embaratecer” o trabalho.
Também António Monteiro Fernandes, antigo secretário de Estado do Emprego e professor no ISCTE, não tem dúvidas de que se trabalha mais e por menos: “Há cada vez mais trabalho não-remunerado. É a contrapartida de um privilégio que consiste em ter emprego”.
Menos horas e mais trabalho para todos?
Os limites ao tempo de trabalho levaram mais de um século a erguer. É preciso recuar a Maio de 1886 para se assistir àquela que é considerada a génese da luta pela redução da jornada de trabalho do mundo e que, mais tarde, deu origem à comemoração do 1.º de Maio. Milhares de trabalhadores, que eram obrigados a trabalhar 13, 14 e até 18 horas por dia, manifestaram-se nas ruas de Chicago pelas oito horas diárias e o direito ao descanso.
Cinco anos depois, o Papa Leão XIII publicou a encíclica Rerum Novarum, onde defendia limites ao trabalho diário e o respectivo repouso, evidenciando particulares preocupações com as mulheres e as crianças. “(...) O número de horas de trabalho diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade de repouso deve ser proporcional à qualidade do trabalho, às circunstâncias do tempo e do lugar, à compleição e saúde dos operários”, escreveu.
Anos mais tarde, em 1919, e fazendo eco das exigências que emergiam dos movimentos sociais, a recém-criada Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicou a primeira convenção sobre as horas de trabalho para a indústria. Em 1935, quando pela primeira vez olhou para a redução da jornada de trabalho como uma forma de fomentar o emprego, surge a convenção das 40 horas.
Nas décadas de 80 e 90 do século XX, vários países europeus, como a França ou a Alemanha, adoptaram políticas de redução do trabalho semanal. As chamadas medidas de “partilha de trabalho” tinham subjacente a ideia de que diminuir tempo de trabalho poderia induzir um aumento do emprego.
Seguindo a tendência, Portugal reduziu por duas vezes a duração máxima do trabalho semanal. A primeira em 1991 (das 48 para as 44 horas) e a segunda em 1996 (Lei das 40 horas). Esta “partilha de trabalho” não teve, contudo, os efeitos esperados. Em tese, diz Monteiro Fernandes, “parece indiscutível que a redução da semana de trabalho poderia conduzir a um aumento do emprego”. Mas em Portugal, alerta, “a grande variável de ajustamento das empresas às necessidades de trabalho não é a criação/destruição de emprego, é o trabalho extraordinário”.
Um estudo de José Varejão, da Faculdade de Economia do Porto, avaliou o efeito da Lei das 40 horas e concluiu isso mesmo: as semanas mais curtas traduziram-se num aumento do trabalho extra, em vez de terem motivado a criação de empregos.
Monteiro Fernandes acredita que traduzir reduções de tempo de trabalho em aumentos de emprego só seria possível “se se estabelecesse uma limitação eficaz a este recurso”, reduzindo os limites do trabalho extra ou aumentando o seu preço. As evoluções recentes apontam precisamente no sentido inverso.
Uma fronteira em crise
E no futuro a profecia das seis horas de trabalho diário de Keynes poderá cumprir-se? Cristina Rodrigues, socióloga que fez a sua tese de doutoramento em torno do tempo de trabalho, receia que não. Além dos custos salariais, diz, há outros custos a ter em conta, nomeadamente as contribuições para os sistemas de protecção social, “o que complicaria a operação aritmética de dividir trabalho para criar empregos e, dessa forma, diminuir desemprego”. Por outro lado, diminuir tempo de trabalho significaria diminuir salário, “o que, em tempos de erosão de rendimentos, poderia conduzir muitos trabalhadores para limiares de pobreza e exclusão social”.
Desde meados do século XIX e durante quase todo o século XX assistiu-se a uma melhoria dos direitos dos trabalhadores, fruto das suas lutas, da acção das organizações sindicais, da influência das organizações internacionais. Mas a questão que esteve na base desta evolução mantém-se: como escapar à ditadura do tempo?
A resposta parece difícil. A globalização, a revolução tecnológica, a economia que funciona sem interrupção e os novos hábitos de consumo contribuem para formas diferentes de organização do tempo de trabalho, que ameaçam o tempo de descanso. Defender o descanso é, por isso, um debate tão actual como há 130 ou 150 anos. Só que agora o sistema é mais complexo.
Monteiro Fernandes alerta que, apesar de continuar a haver quem trabalhe num registo “das nove às cinco”, é “evidente” que a fronteira entre tempo de trabalho e tempo de lazer tende a esbater-se.
“Estar disponível” tanto no trabalho como fora dele “tornou-se um imperativo do dia-a-dia”, nota, por seu lado, Hermes Costa. E lembra que as alterações ao Código do Trabalho de 2012” vieram “legalizar” a já frágil fronteira entre trabalho e lazer. “Como que se criaram condições para uma espécie de institucionalização da invasão da esfera privada. Na verdade, a subtracção do tempo de lazer converteu-se em tempo de trabalho, pois, ao eliminar quatro feriados, três dias de férias e acabando com o descanso compensatório pelo trabalho suplementar, a lei introduziu, em termos médios, um corte entre 21% e 30% do tempo de descanso dos trabalhadores”, exemplifica o sociólogo de Coimbra.
Os desafios do século XXI são, por isso, mais complexos. “O operário que trabalhava na fábrica, por conta de outrem, durante a semana, deixou de ser o exemplo típico, e há uma multiplicidade de situações distintas”, diz Cristina Rodrigues. “Pessoas que trabalham em horários regulares, parciais, aos fins-de-semana, à noite, por turnos, a solicitação quando existe trabalho, em teletrabalho, por conta de empresas de trabalho temporário, por sua conta”, exemplifica.
“Compatibilizar esta diversidade de formas de trabalho com as exigências de um horário que permita o descanso diário, semanal e anual, e a dignidade do trabalho e do trabalhador, aqui está o grande desafio”, destaca.
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