Políticos ou a pressão de existir

Depois do esplendor da Belle Époque proporcionado por quatro décadas de paz, há 100 anos a Europa vivia mergulhada no horror da I Guerra Mundial. Para além da disputa entre blocos de poder e dos alinhamentos geoestratégicos entre as grandes potências — a Alemanha (a que se juntou o império Austro-Húngaro), contra França e a Inglaterra (depois apoiadas pela Rússia) — o que se decidia nas trincheiras era o destino de dois mundos. De um lado, estruturas de poder arcaicas fundadas em grandes impérios, na expansão colonial, na exploração de fluxos comerciais, na enorme concentração da riqueza e na miséria das populações. Do outro, a modernização dos sistemas políticos, o avanço da técnica e da ciência, o fortalecimento do movimento operário e dos sindicatos, as novas ideias. Nessa altura, as ideologias faziam mover o mundo e nunca tanta gente aceitara catalogar-se atrás de siglas ou tantos decidiram organizar-se em partidos políticos. Sociais-democratas, liberais, socialistas, comunistas, anarquistas com múltiplas declinações.

Tudo isto mudou. Por toda a parte nascem agora partidos ou movimentos sem grandes balizas ideológicas e cujos nomes não reflectem à partida qualquer preocupação política. Em “Podemos”, “Ciudadanos”, “Livre/Tempo de Avançar”, “Os Finlandeses” ou mesmo no UKIP britânico, entre outros, lê-se mais um sentido de urgência, de convocatória e de acção do que outra coisa qualquer. Ora a acção é tempo em movimento e a profunda crise de identidade da social-democracia europeia, a amnésia histórica do centro-direita relativamente ao seu papel na criação do Estado social e a desorientação isolacionista à esquerda estão a travar a resolução dos problemas. O que se verifica, à direita e à esquerda, é o nascimento de novas formas de organização de forças que se libertam do arcaísmo das fórmulas tradicionais, incapazes de se reinventarem e de perceberem os sinais. Como há cem anos, olha-se à nossa volta e distingue-se bem esse mundo que nasce do caos aparente que só o tempo há-de decifrar. Como agora, então tudo era novo e empolgante. Da teoria da relatividade ao inconsciente de Freud, da electricidade à distorção das formas nas meninas de Picasso, do cinema aos primeiros automóveis. Um século depois não se aprendeu nada. Também hoje “tudo é novo, tudo é experimental”, segundo o ex-ministro Luís Amado e como bem provam os programas de ajustamento testados pela primeira vez nos povos do Sul, com as consequências que se conhecem. Afinal, até que ponto o tempo é importante em política?

A importância do tempo

Há muitas variáveis para se determinar a relevância do tempo em política. Por exemplo, a posição em que se está. O sociólogo António Barreto diz que há políticos que chegam ao poder “não pelo que têm para oferecer ou pelo que já provaram”, mas porque estavam no sítio certo. Segundo ele, José Sócrates é um caso. “Noutras condições nunca chegaria lá, jamais”. O mesmo para Cavaco Silva, quando vence as eleições, em 1985. Rui Tavares, historiador e dirigente partidário, sublinha antes a importância da “sensibilidade ao tempo” na acepção da capacidade que cada um tem para entender e “saber seguir os ritmos da mudança”. Isto tem tanto a ver com os timings de curto/médio prazo que abarcam calendários eleitorais, modas ou palavras que caiem em desuso, como com “os ritmos mais longos, que são mais geracionais ou seculares”. Luís Amado, ex-ministro da Defesa e dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates, prefere avaliar o peso do tempo em função da tomada de decisão política, que varia muito de acordo com a relação que se tem com o poder. Ou seja, é muito diferente se se está no poder ou na oposição, ou, estando no Governo, no ministério em que se está. Amado, que também foi secretário de Estado adjunto da Administração Interna no primeiro Executivo de António Guterres, não tem dúvidas que na resposta a uma emergência interna o êxito pode depender do timing que medeia a decisão da sua execução no terreno. Numa crise o tempo acelera. Agora, imagine-se um corte de estrada ou uma manifestação de rua — uma ordem desfasada das circunstâncias em que a acção decorre pode ser fatal. “Já nas crises externas e em toda a área da política externa, o tempo tem uma modelação diferente”, diz o ex-governante. Porquê? “Resulta da percepção que o decisor tem da sua margem de manobra” e, depois, “há problemas que não têm solução”. Exemplo? “O problema palestiniano. Terá solução um dia, mas não na focagem do meu tempo de governo”. Entre a tentação de afunilar as respostas para os ritmos mais curtos, relegando para segundo plano tudo o que tem a ver com o longo prazo como as políticas sobre as alterações climáticas; ou valorizando a agenda doméstica em detrimento da procura de soluções globais para problemas globais, os políticos vivem numa tensão permanente entre as várias agendas, sejam de cariz mediático e de lóbis cruzados, ou a sua própria. Mas será que os políticos ainda têm agenda?

Da trincheira ao tacticismo

Quando não havia Internet, telemóveis ou redes sociais e os canais de televisão eram do Estado. Quando não existiam meios para difundir, escrutinar e comentar a actividade de quem manda no espaço de minutos em qualquer lugar do planeta, três políticos podiam sentar-se na sala de um palácio na Crimeia e dividir o mundo. Foi isso que fizeram Churchill, Estaline e Roosevelt, em Ialta, no final da II Guerra Mundial. A proposta que fez com que a Grécia ficasse do lado ocidental foi desenhada pelo político britânico num pequeno mapa, que colocou em cima da mesa para os outros verem. O russo olhou e abanou a cabeça em sinal de aceitação e assim ficou. Está nas actas. Hoje, isto não seria possível. Mas é possível que num país longínquo da África ocidental como é o Burkina Faso, cuja população tem tão parcos recursos e níveis de bem-estar tão desiguais face aos das democracias europeias, um presidente tenha sido obrigado a demitir-se por força de manifestações gigantescas organizadas através das redes sociais. Aconteceu no final de Outubro do ano passado, com Blaise Compaoré que governava o país há 27 anos e que achou possível manter-se no poder à custa de uma alteração constitucional. O povo trocou-lhe as voltas e, de repente, um milhão de pessoas nas ruas não lhe deixou grandes alternativas. Ou mandava os tanques dizimar os manifestantes, ou saía de cena. Optou pela segunda hipótese, livrando-se do julgamento no Tribunal Penal Internacional.

Hoje, não se podem desligar as agendas do impacto brutal da mudança nas formas de comunicação. E isso coloca outros problemas. Passou-se de uma fase em que a política se ancorava numa ideologia, imutável ou muito pouco permeável, e em que ao líder bastava ficar na trincheira e resistir, para uma espécie de extremos em que “a política se faz 24 sobre 24 horas com basicamente as frases do dia”, como diz Rui Tavares. O perigo, segundo o historiador, é o “excesso de tacticismo”, que cria “mais um factor de desligamento das pessoas em relação aos partidos”. Para Marques Mendes, advogado e ex-líder do PSD, o controlo da agenda por parte dos políticos tem outras condicionantes para além da pressão mediática. Por um lado, há a incerteza das conjunturas económicas e financeiras; por outro, o facto de a gestão das crises já não estar exclusivamente em mãos nacionais. Esta gestão possibilitava o controlo dos ciclos, enquadrando-os nos mandatos, que António Barreto qualifica como um dos “condimentos” da democracia. “Hoje não é o mandato que conta, é o tempo real. Ao tomar decisões, o político está a pensar nos noticiários das 20h, no online ou nas sondagens. Isto não é democracia!” Para evitar a deriva e o risco real de decisões cada vez mais erráticas e perigosas, Luís Amado propõe o “sentido do compromisso” assente em “acordos de regime mais ou menos prolongados no tempo”, capazes de focar as propostas que dêem conteúdo a uma legislatura. Chegará? A realidade é que os cidadãos exigem respostas permanentes e se quem os representa não as dá, a tendência será substituírem as velhas formas de representação. Com a experiência que hoje temos, seria possível a adesão ao euro sem a participação activa dos cidadãos nessa tomada de decisão? Não parece. Assim como é certo e sabido que qualquer matéria europeia está hoje muito mais sujeita a todo o tipo de escrutínio. Rui Tavares fala em “dar mais e melhores ferramentas à democracia”, mas quem fica à espera do tempo dos políticos?

O mistério das sondagens

Uma sondagem é sempre uma espécie de fotografia, um retrato do momento, efémero porque amanhã aquele pedaço de tempo pode estar já desfocado. Em momentos decisivos como as eleições ou os debates, é da praxe os políticos ficarem nervosos e tudo fazerem para conhecer antecipadamente os resultados. Baseiam-se nelas para preparar discursos, valorizá-las ou desvalorizá-las consoante as coisas corram bem ou mal. Mas Rui Oliveira e Costa, administrador da Eurosondagem, garante que os estudos de opinião “não influenciam tanto como a generalidade das pessoas julga”. E o curioso é que os seus resultados também não são afectados, mesmo por casos extremos. Como aconteceu, em Junho de 2004, quando António de Sousa Franco sucumbiu a uma síncope cardíaca fulminante na recta final da campanha para as europeias nas quais era cabeça de lista do PS. Na altura, um estudo daquela empresa, cujos trabalhos de campo tinham sido feitos antes da tragédia, dava 43,5% aos socialistas, que acabaram por obter apenas mais 1% no resultado final.

O general Soares Carneiro, candidato presidencial da direita nas presidenciais de 1980, também não converteu em votos o capital de consternação e simpatia que varreu o país com a morte brutal de Sá Carneiro, também em plena campanha. Segundo Oliveira e Costa, sondagens atribuíam-lhe 40% e com esse saldo ficou, saindo derrotado face ao general Ramalho Eanes. Em 2003, na Suécia, Anna Lindh, ministra dos Negócios Estrangeiros e cabeça pelo “Sim” no referendo ao euro, foi assassinada três dias antes da votação. Como há muito estava previsto, o “Não” perdeu mesmo.

Mas há excepções. Em 2002, o holandês Pim Fortuyn, um político populista de direita, provocador, homossexual assumido, foi assassinado antes das legislativas. As sondagens atribuíam 8% ao seu partido, que acabou por chegar aos 18%. “Se a morte de um primeiro-ministro pouco ou nada abala a vontade dos eleitores, não é uma sondagem que a vai fazer mudar”, diz Oliveira e Costa. Ou seja, a regra é os eleitores irem formatando a sua opinião ao longo do tempo e não são estudos de última da hora que pesam na tomada das decisões. As coisas podem alterar-se se se tratar de estudos qualitativos sobre o comportamento dos políticos ou sobre as preferências dos cidadãos em questões muito concretas. Mas é quase só nas autarquias que estes trabalhos se fazem e onde mais se detectam as tendências que a mudança dos tempos impõe.

A importância da antecipação

Hoje, a palavra obra está completamente fora de moda. Não aparece nos cartazes porque os eleitores são mais sensíveis a palavras como “competência”, “boa gestão”, “seriedade”. Em termos concretos, a preferência agora centra-se nos serviços de proximidade capazes de acorrer a quem precisa ou a instituições que os possam prestar. Apoio a escolas, bombeiros, centros sociais, socorro aos sem-abrigo. Poderá haver sinais mais elucidativos dos tempos que vivemos? Talvez por isso não seja de estranhar que em vinte e tal anos de estudos de opinião, Rui Oliveira e Costa nunca tenha observado uma queda tão vertiginosa nas sondagens como a que aconteceu com o actual Presidente da República, depois das declarações que fez sobre as suas pensões. Passou de um saldo positivo de 30 para zero e em alguns meses, para saldos negativos. Os políticos também se abatem.

António Barreto não tem dúvidas de que um político tem uma data de validade. Diz que a sua expirou há muito. “Senti que tinha acabado há mais de 20 anos”. Acontece por cansaço, idade, lucidez, ou por perceber que já não tem capacidade de captar os sinais. Sinais que só compreende quem consegue interpretar o seu tempo histórico. Rui Tavares diz que Mário Soares foi dos que “soube dizer algumas coisas que no seu tempo pareciam deslocadas, mas que, afinal, foram uma excelente interpretação do que era necessário dizer naquele momento”. Para Luís Amado, antecipar é talvez a mais importante característica de um líder, porque é não se deixar surpreender. “A gestão do poder é sempre muito condicionada por uma relação quase binária: quem tem poder manda, quem não tem obedece”, diz. “Na lógica mais crua de exercício do poder e à mesa de um Conselho, sentimos isso. Os estados relacionam-se nessa base individual”. Elucidativo. Neste xadrez sempre instável há quem não acerte com o timing. António Barreto dá o seu próprio exemplo. “Às vezes penso que o que tentei fazer com a Reforma Agrária se justificava por uma razão: travar a revolução comunista. Mas o outro objectivo, que era fazer uma Reforma Agrária democrática, já não estava nesse tempo. Tentada depois da revolução quando as pessoas já estavam zangadas e as rupturas feitas, já não era possível”. Mas há também quem se agarre a acontecimentos imprevistos como a uma bóia de salvação. François Hollande, cujo prestígio vinha declinando à medida que as suas promessas eleitorais desapareciam numa qualquer gaveta do Eliseu e na proporção directa da submissão da França às políticas da dupla Merkel/Schauble, foi inesperadamente salvo do afogamento pelos trágicos atentados de Paris. Conseguirá ele recuperar o tempo perdido? Será difícil, porque Hollande é, de certa forma, um dos responsáveis pela “desorientação europeia”, o sinal político mais marcante do tempo actual para Rui Tavares e porque “verdadeiramente, o tempo nunca se recupera”, segundo Luís Amado. É curioso que hoje já só há heróis anónimos. Quem vive sob os holofotes não resiste à função predadora das luzes da ribalta. E o mais certo é que nem Churchill, um dos mais admirados políticos do século XX, resistiria à voracidade do escrutínio público. Talvez antecipando o futuro, ele disse um dia que “nenhum grande homem político resiste à intimidade de uma criada de quarto”. Logo ele, com os seus charutos e o seu eterno copo de gin.  

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