Preciso de ajuda. No PÚBLICO eu vivo neste e noutro Tempo e ainda num terceiro mais puro que inventei na juventude (oh céus, a lamechice é contra o Livro de Estilo). Estou no aquário da directora Bárbara Reis, um vidro voltado para o Tejo em Alcântara, outro vidro para a redacção. Na secretária mais perto, um senhor de óculos, cabelos e bigode brancos, ao telefone. Ao tomar notas, curva-se sobre a caneta como um carpinteiro que escava, a golpes de formão, um pedaço de madeira verde. Se o tronco ganhar vida, transforma-se num menino mentiroso com o nariz a crescer? Para quem já viu a sua oficina, este homem parece um Geppetto a trabalhar.
— O que é que o Cerejo anda agora a fazer?
— O primeiro-ministro. Passos Coelho esteve vários anos sem pagar a Segurança Social.
— Não!
— Pagou agora à pressa por causa disto. A notícia sai amanhã.
Ainda há espaço no jornalismo para "contos de crianças”, como diz o outro. Notícias frescas para publicar em jornais novos de 25 anos. Na outra ponta da linha, fisgado na sua língua-de-madeira, um primeiro-ministro estrebucha e ensaia, para a semana seguinte (agora já estamos nela), a amnésia nova de cada dia que nos dá hoje: “Eu não tinha consciência de que essa contribuição era devida durante esse período”.
Estamos no domínio do inconcebível, não é? Sim, no domínio do jornalismo. Por longos anos, a directora Bárbara Reis foi a funcionária mais nova do jornal, começou aos 19.
— Eu acredito que... isto é dizer o costume mas... eu acredito que fazemos o que fazia Heródoto: procurar informação, verificá-la, dar-lhe um sentido. E dizer: “Isto foi o que ouvi destas pessoas, não tenho a certeza se é verdade.” Mas procurar a verdade.
Estamos no gabinete da direcção da quarta sede — em um quarto de século — do jornal PÚBLICO. Agora volta para trás, para trás cabeça, e sobe aos prédios novos da Quinta do Lambert, no outro lado de Lisboa, junto ao Campo Grande. O complexo de cor creme no topo. Há um cão rafeiro à porta que se chama Sonae. Ou o jornal o adoptou ou ele adoptou o jornal. Tem uma companheira, a Belmira. Conheceram-se ali à porta (os ambientes de trabalho intensos, os projectos novos, despertam níveis emocionais extremos, há estudos sobre o assunto). Mas os dois cachorros não guardam a primeira casa do PÚBLICO, nem é preciso: nós estamos vigilantes.
Temos um exército de computadores Macintosh, uns tijolos ultramodernos que não há em mais nenhuma redacção do mundo. Aliás, temos duas redacções magníficas, uma é no Porto, vamos fazer duas edições diárias, Norte e Sul. Temos um accionista que não vai interferir no conteúdo. Temos jornalistas de prodigiosa experiência, temos estagiários maçaricos (eu, etc.) com inaudito sangue na guelra. Temos gente ponderada e temos muitos doidos. Temos jornalistas que conhecem políticos e banqueiros e não traficam informações falsas nem favores. Temos críticos de arte e música e cinema e literatura que sabem disso tudo e, além disso, sabem escrever sem peneiras, assim se tivesse continuado. Temos um bar lá dentro servido por brasileiros que levantam o mindinho a segurar no copo. Temos fado vadio às vezes, esfolado por um senhor dos Anjos.
Temos “bom gosto” (como dizia o Vicente, o certo é que existe). Temos um Livro de Estilo cheio de sintaxes e éticas. Temos secretárias que são mães para os aflitos, irmãs para os cansados e polícias para os faltosos. Temos técnicos que conhecem a tecnologia. Temos cronistas que sabem da crónica e, se não sabem, que aprendam. Temos correspondentes que contam o que se passa lá onde eles vivem nos outros lados da Terra.
Temos repórteres, homens e mulheres, para arriscar a vida nos cumes e vales e guerras e pazes do mundo, voar até onde se passam as coisas. Temos repórteres para descer aos bairros pobres de Portugal, os mercados, os tribunais. Temos fotógrafos com teleobjectiva, grande angular e lente macro, que apanha as patas das formigas. Temos paciência e meios para ditar ao telefone, vírgula a vírgula, um texto de cinco páginas desde a Austrália, se o fax e o telex falharem.
Temos pouco sono. Temos muito sono. Não temos sono. Temos um copo de whisky na secretária, temos um chá. Temos fumadores e (não) temos sala de fumo. Temos bigodes feios e temos belas pernas com saias, e longas pestanas lá em cima. Temos encaracolados que um dia vão dar carecas. Temos um bife de véspera do Snob no escuro vermelho do estômago. Temos gravatas italianas e temos pelintras em calções a fazer perguntas matinais a ministros. Temos mulheres a dirigirem secções e a ensinar homens como é que se faz um jornal. Temos, na redacção, mulheres e homens a apaixonarem-se em open space. Temos divórcios em marcha.
Temos felicidade e lágrimas guardadas nos garrafões do Tempo.
Temos uma “sala de telex”. Temos até escondida na cave, como numa comédia a preto-e-branco, uma artista da rádio-TV em potência, uma “menina dos telexes” que trabalha a cantar. Na 1ª Guerra do Golfo (1991), ela irá rasgar rolos de papel com as notícias das bombas e dos ataques e correr para o director de fecho da 3ª edição do dia nas bancas (!), e agora à “menina dos telexes” chamamos Maria Rueff.
Temos um título e um cabeçalho forte, desenhado numa elegância azul (mas chegou a ser vermelha, Henrique Cayatte). Ensaiámos tudo, tudo, páginas, capitulares das entrevistas, títulos, entradas, itálicos e bolds em tantos “números zero”.
O Muro de Berlim caiu há dias, é Novembro de 1989, bebe-se champanhe no betão demolido da Europa e nós estamos lá, na passagem de ano. Vamos fazer um jornal para os próximos 25, 50, 100 anos. Dar o que prometemos a Portugal, sermos melhores do que os nossos iguais no mundo, até onde nos for possível, que haja saúde e dinheiro.
Vamos fazer... mas, ahhh, afinal não é para hoje... Dia 2 de Janeiro de 1990: o jornal não sai para as bancas. As máquinas falharam. Pedimos desculpa por esta interrupção, o PÚBLICO segue dentro de dois meses. Pelo menos vamos rezar por isso a todos os santinhos mediáticos.
Onde é que meteste o whisky?
O (extinto) O Independente inventa-nos um gémeo. Estamos a trabalhar para o BONÉCO, e assim se mantém o treino no “jornalismo de referência”. Há seres que acreditam em confrontar sempre o acusado com a própria acusação, curiosa novidade da altura, e sempre em desuso.
— O pior dia foi quando não saiu. A maquinaria ainda não estava preparada...
Vicente Jorge Silva, autor da ideia do PÚBLICO e seu primeiro director, até 1996. Jornalista, cronista, cineasta. Estamos a jantar no Bairro Alto. Há 25 anos, Vicente passa pela aventura de comprar e de pôr a funcionar uma tecnologia nova israelita, o scitex. Salva-se o jornal. Mas barato é que não é.
— Quando a gente pensa que aquilo na época custou 350 mil contos [1,750 milhões de euros] e agora podia ser feito por um processador, um computador normal...
Vicente é a cara do PÚBLICO, a “capa” original. Não é só nostalgia:
— Acho que a melhor capa foi a “Liberdade, Ano Zero”. Tenho aquilo emoldurado em casa. Mostrava que nós tínhamos um espírito bastante democrático. Não era a liberdade do “mundo socialista” contra o “mundo capitalista”. Quando os nossos repórteres iam para a Alemanha, a Roménia, descobrir o mundo a mudar. Enfim, foi uma capa falhada porque não saiu. Mas tinha tudo a ver com o espírito do jornal. Uma certa pureza inicial.
Vicente agora lê o jornal todos os dias, mas às vezes aborrece-se “de morte”. Tem de dizer uma coisa: “O jornal é mais permeável a jogos de influências, nomeadamente na área cultural!” Mas basta, “ainda é o jornal mais bem feito que há”.
— Foram os melhores tempos da minha vida, uma coisa criativa, as pessoas gostavam umas das outras, eu era o director sem hierarquia... mas com respeito. E podíamos pôr a pata na poça mas éramos respeitados.
— Sim.
— Eu era uma pessoa colérica, agora nem me reconheço aos gritos na redacção... Como é que eu era?
— O Vicente entrava aos gritos de braços no ar.
— Pois era...
— Mas as pessoas gostavam de si.
— E eu gostava das pessoas. Se você respeitasse, hum, digamos, os cânones da comunidade, você escrevia o que quisesse.
Depois da Bárbara e do Vicente, o último da trilogia essencial do PÚBLICO: José Manuel Fernandes. Estou de novo no Bairro alto, nas instalações do jornal online Observador. O José Manuel é o publisher, ligado directamente à redacção. Uma sala de azulejos setecentistas, com cenas de caça, onde o jovem Pinto Balsemão terá administrado o Diário Popular. Por acaso, um jornal de que fiz a reportagem de encerramento. E ali perto também fiz o triste enterro do Diário de Lisboa. Ah, e ainda me enviaram para coveiro d’O Diário. Vi qualquer coisa da destruição de jornais e não é bonito ser gato-pingado de tantos sonhos no papel, de tantos profissionais a chorar. [Se me permitem também vi, ao serviço do PÚBLICO, destruição a sério na Sarajevo em guerra, até que um dia fui literalmente trabalhar para o BONÉCO e fazer o Contra-Informação...]. É bom ver que o jornalismo voltou ao Bairro Alto, desta vez na plataforma digital. E novidades de José Manuel Fernandes, que um dia foi convidado para director, por telefone-satélite, em pleno bombardeamento na Guiné-Bissau?
— Gostei muito. Foram os melhores anos da minha vida.
Bolas, isso é que todos dizem! Outra coisa. José Manuel Fernandes esteve no centro da famosa “esquizofrenia” do jornal, com a invasão do Iraque por George W. Bush e Tony Blair (Março de 2003). A maior parte da redacção a pensar (e a escrever) contra o que escrevia (e naturalmente pensava) o seu director. E os leitores baralhados com tal amplitude ideológica, escancarada.
— Penso que as pessoas lá dentro sabiam como eu trabalhava. Acho que cá fora isto é raro. Pode parecer um bocado presunção... as ideias ganham-se pelos argumentos, não por imposição. Era melhor dar argumentos sem rodriguinhos do que fingir que estava tudo bem. E que era possível conviver com opiniões distintas.
Pensa que o jornal é hoje “mais monolítico, não é por ter dois ou três berloques na opinião que fica plural”. A ideia que o José Manuel tem sobre este seu passado na direcção é, por assim dizer, menos monolítica do que já foi. Orgulha-se dos 25 anos do 25 de Abril, quando entregou aos jovens todo o jornal, sem saber nada, só já o viu impresso e trazia na capa uma bebé em chão de cravos vermelhos. Mas já não vê nenhum “25 de Abril em Bagdad” no derrube de Saddam, o marine que coloca a bandeira norte-americana na estátua que cai, como uma árvore, os homens que batem chinelas no rosto de bronze do ditador.
— Com o tempo que passou, e sabendo o que sei agora, aquilo não tinha o significado que lhe atribuí. Se eu soubesse o que sei hoje, não o teria escrito. Mas eu não sabia.
Bárbara Reis, quando foi convidada, voltou ao princípio do Tempo:
— Amanhã sou directora do PÚBLICO, tenho de ligar ao Vicente! É o nosso fundador, tenho de lhe ligar. Foi bastante ridículo, porque quando lhe liguei não consegui dizer nada. Só chorei.
O pior:
— O dia em que despedimos 50 colegas. Não há maneira não errada de fazer isto. É tudo tão mau e tão difícil, mas tentámos da melhor maneira que sabíamos.
A Bárbara acredita no “mecenato puro e duro” e em “co-produtores” para as grandes reportagens. O PÚBLICO aposta no online (20 anos, já), no data journalism, as novas tecnologias “permitem agarrar em milhões de dados e encontrar forma de retirar informação, uma leitura, um padrão.”
Ao mesmo tempo vemos ali, atrás do vidro, na redacção, o jornalista José António Cerejo a entalar — artesanalmente — mais um primeiro-ministro que tem problemas com a Segurança Social, com a verdade e com a língua portuguesa.
— Eu acredito que o PÚBLICO vai durar para sempre. Não sei é como vai ser. Dizer ‘dantes é que era bom’ é uma ideia bacoca.
Mas são 25 anos um bocado metido nisto. Ou quase nada. Aliás nada. Agora até acho que esqueci tudo, caros leitores, vejam só o que me aconteceu.
Escritor, jornalista na fundação do jornal
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