Na porta do avião mesmo antes de saltar, fazemos os exercícios de check up. Estou em instrução e tenho dois instrutores comigo, durante a primeira parte do salto. Tudo a postos: arqueia o corpo ao máximo contra a força do ar e…saltar! Estou no ar!
Ajusta o equilíbrio, estamos a cair a 190km/h, não balances mais, estabiliza o corpo. Parece tudo bem. Agora os exercícios. Um dos instrutores solta-me como previsto. Lá vai ele… Agora o outro também me solta… Ai-ai, agora estou mesmo por minha conta, cruzes. A voar sozinha! Argh, o que é que é suposto fazer agora?
Não há problema, procura um ponto no horizonte para fixar direcção. Aquelas montanhas parecem boas, vão servir. Hmm.. as montanhas estão a girar para a esquerda, acho que vou fazer aqui uma pequena volta. Inclino o braço na direcção oposta... Muito ligeiramente… O quê?!? O que foi isto? Que aconteceu? Estou de pernas para o ar, a olhar para o céu! Perdi a estabilidade. Altitude: 3,6 quilómetros. Bonito serviço. Agora estou a olhar para o céu azul acima. Terra à vista: nada. Vejo os dois instrutores lá no alto, altíssimos, a olhar para mim. Credo, estão a diminuir tão depressa, quer dizer que estou a cair muito mais rapidamente. Como perdi a estabilidade vou a muito maior velocidade que eles. Estou totalmente sozinha, por minha conta, a cair para o planeta a toda a força, e a girar numa espiral. Como estou a girar sem parar, não consigo puxar o pára-quedas. Cada vez perco mais altitude, a velocidade agora é de 260 km/h. Cada segundo que passa menos 70 metros e começo a ver tudo lá em baixo as casinhas e as estradas cada vez mais perto... Isto está bonito, está...
Entretanto no gabinete: quando estou a estudar relatividade geral pergunto-me sempre se o Einstein alguma vez terá pensado em estudar a gravidade ao vivo! Parece-me que estudar a gravidade no gabinete é muito diferente de estudá-la a saltar de um avião, em queda livre! Não só isto, mas nada melhor que um salto de pára-quedas para vivenciar a relatividade do tempo que ele advogava. Um segundo em queda livre parece-nos horas. O planeta lá em baixo a aproximar-se a viva força. Nunca o tempo nos parece mais real, e mais inevitável do que quando estamos numa situação de vida ou morte. E no entanto, em física, a disciplina que ambiciona descrever a natureza na sua totalidade, não estamos muito habituados a levar o tempo a sério. Para a generalidade das teorias em física o tempo tanto pode avançar como recuar: a direccionalidade do tempo é um acidente que não é explicado de forma clara. As soluções nas quais o tempo recua são descartadas à mão sem explicação.
Ou seja as nossas teorias mais fundamentais da natureza ignoram o facto de que o tempo anda sempre para a frente! Isto é contra tudo o que observamos no dia a dia. É como os físicos estarem de costas voltadas para a natureza, ignorando o facto mais fundamental do mundo que nos rodeia: o tempo nunca anda para trás.
Porque é que somos nós, os físicos, os únicos cientistas que não incorporamos a irreversibilidade do tempo nas nossas teorias?
A química, biologia, antropologia, climatologia, etc. são todas ciências nas quais o tempo tem uma direccionalidade bem definida. As reacções químicas só ocorrem num sentido, nunca “desocorrem” (química); os organismos só ficam mais velhos, nunca mais novos (biologia); em antropologia estudamos os fósseis do passado (nunca os do futuro); os climatólogos também têm bem presente que o tempo só tem uma direcção, eles podem olhar para o passado mas não sabem (ou é muito difícil) prever o futuro, por causa da teoria do caos.
Porque é que nós os físicos continuamos absorvidos na procura de equações “congeladas” no tempo, nas quais todo o passado e o futuro existem no mesmo instante e a passagem do tempo é uma mera ilusão?
Sendo a física a disciplina mais ambiciosa da descrição da Natureza, não é peculiar a falta de explicação para a uni-direccionalidade do tempo?
Voltando à queda livre…
Continuo em espiral no ar e o planeta a aproximar-se cada vez mais. Por um momento consigo virar-me de costas, e tento alcançar o pára-quedas, mas perco logo o equilíbrio. Meu Deus, estou mesmo, "mesmo" em sarilhos. O que é que se está a passar, como é que eu páro isto? Um dos instrutores desce disparado para me alcançar e tenta voltar-me para baixo. Não funciona, agora estamos os dois de barriga para o ar! E depois eu viro-me, e agora volta-se ele. Estamos numa dança no ar, como uma máquina de lavar, como o “vira”. Ele perde-me de novo e lá vou eu às cambalhotas mais uma vez. O chão a aproximar-se. Ele consegue alcançar-me. Porque é que ele não me puxa o pára-quedas? Por que diabo é que ele não me puxa o pára-quedas?! “Desisto”, penso para mim, ele não consegue, vamos morrer os dois. Estou feita, é o fim. Adeus mundo. Olha ali o chão, já tão perto.
1500 metros. Sinto um forte puxão para cima, as pernas para o ar, cabeça voltada para baixo. As correias de suporte no peito a esmagar as costelas. Ele puxou o pára-quedas! ELE PUXOU O PÁRA-QUEDAS! Olho para cima e vejo um pára-quedas perfeito, quadrado, abertura sem problemas! O silêncio total é o paraíso, em contraste com o barulho ensurdecedor da queda livre. Só oiço o bater leve da borda do pára-quedas. Pára-quedas saudável, vou viver. Sobrevivi! Já passou. Respira, respira. Respira, rapariga. O que é que acabou de acontecer!?!
Bem, olha para baixo, descobre onde é que vieste parar, ainda tens de aterrar isto. Onde está a dropzone, onde está a pista do avião, onde é que eu estou? Lá estão o semi-círculo da aldeia de Empuria Brava e a praia, mesmo ao pé de Barcelona. A dropzone está por ali algures, ao lado. 1200 metros, está tudo fixe, respira fundo, relax, estás viva! Sobreviveste!
Excepto que…
Ao descer sinto os ventos a levantar. Meu Deus, não estava tanto vento quando levantámos no avião. O pára-quedas começa a abanar desenfreadamente e a fazer o que bem lhe dá na cabeça. Agora está-me a arrastar de lado. Vira à esquerda, depressa! Oh meu Deus, agora estou na zona dos aviões!! Põe-te a andar daqui! Olha à volta, há aviões a vir? Põe-te mas é a andar! Pára-quedas dum raio vais fazer o que eu te mando. Agora, ouviste? 500 metros. Bonito, devia estar a começar a descida final, neste momento! Onde é que suposto eu estar? Ah, lá está o campo de aterragem, “só” a dois quilómetros distância. Ok, esquece isso, improvisa, improvisa. Aquele espaço ali terá de servir. Começo a descer tenho de ir na direcção do vento. Mas não há direcção do vento. Só a vento a abanar, vento a chocalhar, vento para cima, vento para baixo, vento de lado. Devia chamar isto de trajectória perturbativa. O meu trajecto tem incerteza quântica! Ok, ok, vai com calma, vê o altímetro… 250 metros, estou muito alta, já devia estar a 150! Vou chocar contra aquelas casas! Depressa, faz uma volta 360º, perde altitude. Oh que coisa, também não funcionou, agora estou em cima da auto-estrada!! Vejo os carros a acelerar nas duas vias. Dá outra volta, pira-te mas é daqui. Começo a descida final, aqui mesmo vai ter de servir. Tento domar o pára-quedas, navegar em linha recta mas não há de quê. Esticão para a esquerda, esticão para a direita, O pára-quedas não reage, avança ao acaso, num caos os ventos mudam a cada segundo. Olho para baixo, o chão a aproximar-se vertiginosamente. Consigo ver as pedras de cascalho a passar aceleradas, como se estivesse num carro. Meu Deus que velocidade, tenho de abrandar, e rápido. Isto vai doer!!! Quando é que travo? A altura de puxar os travões é ainda mais crucial neste salto mirabolesco com ventos descontrolados. Quando é que suposto travar?!?! Agora? Não tenho a certeza. Será agora, espero mais? É uma questão de segundos. Agora!! Puxa os cabos, com toda a força, puxa, puxa! Mais força! Tenho de puxar os cabos até às ancas e ainda estão à altura nos ombros. Com mais força! Tenho a cara azul do esforço, as veias a pulsar. Os ventos não me deixam puxar os cabos. Oh meu Deus, ainda estou demasiado alto, travei muito cedo. O que vai acontecer agora? O impacte está perto, prepara-te rapariga isto vai ser uma aterragem dos diabos! Crash!!!
Ligeiramente nos joelhos, caio para a frente, para cima do pára-quedas. Estabiliza, pára. Wow! Nada mau, que fixe. Que fixe! Cheguei ao chão. Estou no chão! De volta ao planeta! Estou a salvo! Apetece-me beijar a terra e saltar. Mas como os ventos estão muito fortes tenho de puxar o pára-quedas para baixo de mim, porque esta a inflacionar e pode levar-me no ar de novo. Como se tivesse adivinhado, num instante o pára-quedas inflaciona como um balão. Sinto um esticão forte a puxar-me para trás e para cima, a arrastar pelo chão. Está bonito, afinal ainda não é desta. Não tenho tempo para cortar os cabos. Para onde é que isto me está a levar? Olho à minha frente, o pára-quedas está-me a arrastar para a pista dos aviões!! Tenho de puxar um dos cabos para o colapso. Não funciona, os ventos estão demasiados fortes, o resto do pára-quedas é como um balão, a puxar-me com a forca de um gigante. Levanto-me e atiro-me para o ar, para cima do pára-quedas. Consigo enfiar um pouco mais debaixo de mim mas a parte inflada ainda é forte e continua a arrastar-me. E agora reparo que estou mesmo à beira da pista de aviões com o pára-quedas a puxar-me para o meio. Olho para a direita horrorizada e… claro, com a minha sorte de hoje, vem um avião no ar prestes a aterrar, talvez a 500 metros de distância. Dentro de segundos vai passar no centro da pista em frente de mim, o local exacto para onde o pára-quedas me está a arrastar. Nem consigo acreditar no que se esta a passar?!? Isto é algum filme do Bruce Willis?! Estou a segundos de ser atropelada por um avião, arrastada por um pára-quedas! Muito bem, vou-te puxar para baixo de mim, e agora!! Estou de rastos na berma da pista a puxar o pára-quedas freneticamente e a olhar para o avião a aproximar-se cada vez mais nítido. Puxo o mais depressa que consigo, agora com o avião no canto do olho. Está quase, ainda falta um bocado. VEM CÁ PÁRA-QUEDAS DUM RAIO! Queres-me matar!
Consegui. Estou estendida sob o pára-quedas com a cabeça enterrada no tecido. Oiço o avião disparado passar à minha frente. O avião não me atropelou. Não voou contra o pára-quedas. Estou colapsada, nem consigo pensar, totalmente exausta. Sem energia. Nem me atrevo a mover de cima do pára-quedas, vai inflacionar de novo e arrastar-me outra vez. Oiço os ventos, assim que ouvir um abrandar salto num ápice, agarro tanto quanto posso, diminuo o volume e atiro-me de novo para cima do pára-quedas. Funcionou. Algumas partes ainda estão a voar ao vento mas nada de grave. Apanhei-te, meu pára-quedas idiota. Pego em todo o tecido agora entrelaçado, atiro para cima do ombro e começo a regressar ao hangar. Olha para isto, onde aterrei quase a 3 quilómetros de distância!
Começo o caminho de volta com passos longos e espaçados. Respira fundo. As pernas a tremer e os joelhos a ceder. Estou estupefacta. Não consigo acreditar em tudo o que acabou de acontecer. Olho para baixo e fico surpreendida por os pés acharem o caminho de volta, um após o outro, devagar. O que é que aconteceu?! Ando e ando, com as duas toneladas de pára-quedas às costas, e finalmente chego à dropzone. Há uma multidão de pessoas estupefactas, a olhar para mim, com a boca aberta. Respiro fundo e volto para o outro lado. Vou para o hangar, enfiar a cabeça entre os joelhos!
Volto para a física. Equações são muito mais fáceis de escrever do que lutar com um pára-quedas. Uma das grandes motivações para transformar o papel do tempo irreversível na física fundamental vem destas experiências tão vivas. Nas quais segundos parecem horas, e a realidade do tempo, e como avança só numa direcção é mais berrante que nunca. Nós os físicos que escrevemos equações em que o tempo não é real e tanto avança como recua devíamos deixar a secretária e vir olhar para o mundo cá fora. Pode ser que ficássemos convencidos do contrário.
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