Celebra-se o centenário da teoria da relatividade geral, neste ano denominado "da luz", mas oculta-se do pudor público o lado negro dessa bonita arte mágica. A relatividade geral pode ter dado femininas curvas ao espaço e ao tempo, atribuindo-lhes maleabilidade e vida própria, mas o que raramente se diz é que essa nobre ciência também retirou ao tempo o seu predicado mais óbvio: o fluir.
Ao embrulhar na mesma trouxa o espaço e o tempo, negando-lhes natureza independente em favor de um híbrido – o espaço-tempo –, a teoria da relatividade roubou ao tempo o seu brotar. Da mesma forma que o eixo do xis (esse terror que aprendemos na escola) não “flui”, o tempo da relatividade também não escorre. Ao longo de uma linha espacial há ordem – há o equivalente da organização de um presente, passado e futuro –, mas não há nada que se assemelhe a um ponto particular e único que se vai escoando ao longo dessa linha, o equivalente do presente. Dando direitos e deveres iguais ao espaço e ao tempo, amalgamando-os num ser único, a relatividade nega igualmente a existência de um presente que flui activamente do passado para o futuro. Ordem, sim. Fluir, não. Esse tempo, meus amigos, morreu.
É pois singular que num ano de efemérides e de luz nos procuremos encavalitar na teoria da relatividade, demolidora como ela é do comum tempo. A própria luz – esse andaime absoluto da teoria da relatividade – só pode ter um papel orientador porque está fora do tempo. A luz equilibra-se na fronteira entre o espaço e o tempo, portanto o tempo está paralisado ao longo de um raio de luz. E o pior é que analisando a relatividade geral mais de perto encontramos horrores ainda piores lá escondidos. Até a ordem desse tempo que não flui pode ser destruída pela curvatura espaciotemporal e levada a aberrantes contradições. Maliciosas máquinas do tempo consentem-nos dar um tiro na avozinha antes de a nossa mãe ter nascido. Laçadas espaciotemporais permitem-nos ser pai e mãe de nós próprios, um exagero de minimalismo familiar e incesto. A ordem e a lógica são ameaçadas pela curvatura do espaço-tempo. Proteja-se de contradições: evite espaços-tempos com um rabo demasiado ondulado.
Claro que nesta pasmaceira em que vivemos, longe de buracos negros e Big Bangs, ninguém se deve preocupar indevidamente com tanta patologia. Mas o mal está feito – a nossa metafísica está minada pela dúvida. Como funcionaria um jornal, se o tempo acabasse amanhã? Ou se o tempo começasse a andar para trás mais logo, quando a lua cheia nascesse e a maré mudasse? Ou se fôssemos uma linha já prefigurada e sem fluir, sem edições matutinas e vespertinas? Como seria um jornal, se o tempo fosse mais como o espaço, algo com recantos e cantinhos por explorar? Um cataclismo narrativo, por certo. Ou talvez não. Esta edição o dirá.
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