Entrevista

“Houve um dia em que não houve ontem”

Aos 40 anos, Vítor Cardoso é professor e investigador do Centro Multidisciplinar de Astrofísica e Gravitação (Centra) do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Também é professor na Universidade do Mississípi, nos Estados Unidos, e investigador do Instituto Perimeter, no Canadá. Nos últimos cinco anos, ganhou duas superbolsas no valor total de 2,5 milhões de euros, que tem utilizado na investigação das equações de Einstein, com a ajuda de um supercomputador chamado Baltasar Sete Sóis. Dedica-se à física teórica, nomeadamente à compreensão dos buracos negros, da matéria escura e das ondas gravitacionais.

Toda a gente aceita hoje a ideia de que o Universo teve um início – o Big Bang – e que, desde então, o Universo está em expansão. Por que é que Einstein se recusou a aceitar esta realidade, que, aliás, uma das suas próprias equações da teoria da relatividade geral lhe indicava?
Temos de tentar perceber o que ele fez com as mesmas barreiras psicológicas que imagino que existissem na altura: o Universo era simplesmente pensado como algo imutável, que sempre foi e sempre será. Aliás, é importante lembrar que a noção de que a própria humanidade evolui (a teoria de Darwin) era relativamente recente. Einstein acreditava, portanto, num Universo estático. Ora, a física tem esta coisa extraordinária de prever coisas que nunca tínhamos imaginado quando a construímos, isto é, quando a passamos para a linguagem matemática. E os resultados de Einstein diziam-lhe que o Universo não devia ser estático. Mas até Einstein, que já tinha derrubado a barreira do tempo imutável, sucumbiu e se recusou a deixar isto acontecer: mudou um pouquinho a matemática para que as equações se adaptassem à sua interpretação da realidade. Fez batota para satisfazer o seu preconceito. Este tipo de actos, o de tentar subjugar a realidade aos nossos preconceitos, acontece frequentemente não só em ciência, mas na política, na economia, e em todo o nosso dia-a-dia... Às vezes, tem custos altos. Na ciência, a realidade fala sempre mais alto e acaba por ganhar!

Quando se fala de um Universo estacionário, isso quer dizer que se pensava que as estrelas não morriam? Que o nosso Sol se mantinha sempre igual?
As estrelas não nasciam nem morriam e não evoluíam. De alguma forma, isso dava-nos uma certa paz de espírito: o Universo era assim no tempo dos nossos avós e vai continuar assim no tempo dos nossos netos. Mas, por outro lado, o que aceitamos hoje é ainda mais bonito: as estrelas nascem, morrem e algumas explodem. O resto de algumas destas explosões de estrelas mortas forma planetas, alguns dos quais vão ter vida, como o planeta Terra. Portanto, a vida resulta da morte, e é muito mais interessante pensarmos que já fomos estrelas e que provavelmente vamos voltar a ser daqui a muitos milhões de anos...

O momento-chave da mudança na nossa visão do Universo aconteceu quando o astrónomo norte-americano Edwin Hubble descobriu, em 1929, que as galáxias se estavam a afastar umas das outras?
Edwin Hubble descobriu que, em geral, todas as galáxias se estão a afastar de nós, e que quanto mais longe de nós está uma galáxia, mais rapidamente ela se afasta. Portanto, o Universo está em expansão no verdadeiro sentido da palavra. Hoje em dia, é tão normal ouvirmos estas palavras que até parecem dizer algo fácil de entender. Mas não é. Quando olhamos para os céus, vemos sempre a mesma coisa, a Estrela Polar está onde sempre esteve desde que nascemos. O que quero dizer com isto é que as observações de Hubble, que são sofisticadas e precisam de telescópios poderosos, nos dizem algo que é difícil de “ver” e representam um choque com aquilo em que acreditávamos há milénios. 

Ora, quando Einstein soube disto, percebeu logo a asneira que fez, e percebeu que a realidade o veio desmascarar. Nessa altura afirmou que o maior erro da sua vida foi tentar mudar as equações para se adaptarem ao que ele pensava... e realmente é um erro histórico!

As implicações da expansão do Universo são muitas. Não só destroem por completo a ideia de que está tudo parado, mas também nos permitem fazer um jogo interessante: se o Universo está em expansão significa que à medida que fica mais velho é também maior. O que significa que o Universo jovem é cada vez mais pequeno, e portanto o Universo teve uma data de nascimento. Depois de Hubble, estas e outras coisas fantásticas puseram todos a mexer e a querer saber ao certo de que forma é que o Universo se expande. Um dos melhores instrumentos é um telescópio que orbita a Terra desde 1990, e que se chama, em homenagem ao astrónomo, telescópio Hubble. Graças a essas e outras observações, sabemos que o Universo tem data de nascimento e que nasceu há quase 14.000 milhões de anos. Repare que, em menos de 100 anos, passámos de um Universo parado para um Universo em ebulição, onde estrelas nascem, morrem, chocam umas com outras e onde o próprio Universo é elástico e humano: nasce, cresce e, quem sabe, morre.

A partir do momento em que se percebeu que o Universo se expandia, significa que, se andássemos para trás no tempo, então houve uma altura em tudo esteve junto. Não havia estrelas, não havia galáxias…
… Não havia nada, o Universo era um ponto. Nessa altura, a matéria como a conhecemos hoje não existia. Não existiam átomos nem sequer mesmo protões ou electrões, que estavam completamente desintegrados. Claro que isto é extremamente difícil de comunicar ou compreender, já que foge à experiência do dia-a-dia. Na realidade, nem sequer temos uma teoria suficientemente forte para compreender o nascimento do Universo. A teoria da relatividade geral falha, e não temos forma sequer de pensar nesse “Universo-embrião”.

Ainda antes das observações astronómicas de Hubble, já tinha havido teorias que sugeriam a existência de um instante inicial do Universo, não é?
Desde há muito tempo que um Universo estático causava incómodos. Não havia teoria nenhuma, propriamente dita, que sugerisse o nascimento do Universo. Contudo, um meteorologista e matemático russo, Alexander Friedmann, tinha descoberto em 1922 uma solução da teoria de Einstein que descrevia um Universo em expansão. Em 1927, o padre e astrofísico belga Georges Lemaître chegou também a um modelo de um Universo em expansão. Lemaître compreendeu até as implicações dessa descoberta, quando afirmou que “houve um dia em que não houve ontem”, isto é, que o Universo teve um início.

E, contudo, quer o trabalho do Friedmann quer o do Lemaître foram praticamente ignorados na altura: não eram cientistas de renome no local certo, e, em ciência, por vezes isto é importante: há que lutar pelas ideias persistentemente, até elas serem aceites pela comunidade. Até os resultados de Hubble encontraram resistência e durante décadas muitos não acreditaram neles. A primeira reacção de um cientista a uma descoberta é tentar mostrar que está errada. Talvez seja por isso que a ciência funciona tão bem: duas partes disputam com argumentos lógicos e lutam pela verdade até o assunto ficar esclarecido. Infelizmente, Friedmann não teve oportunidade de lutar pela sua ideia, já que viria a morrer pouco tempo depois, aos 37 anos.

A grande descoberta de Einstein foi a de que o espaço e o tempo formam uma entidade única – o espaço-tempo –, que é deformada pela presença da matéria e da energia. Como é que isso mudou a nossa visão do tempo?
Em 1905, Einstein entendeu que o tempo não é absoluto, e que relógios iguais podem ter tiquetaques diferentes conforme a velocidade a que eles se movam: não é problema nenhum com o relógio, é o próprio tempo que flui de forma diferente... Isto vai até à raiz da nossa existência: afinal de contas, o que é o tempo?! O tempo é relativo, pode “mover-se” mais ou menos rapidamente. Todos os dias no CERN [Laboratório Europeu de Física de Partículas, em Genebra] se verificam estas previsões, é algo já aceite por todos nós e que até passou para a cultura popular, mas era uma barreira imensa.

Em 1916, Einstein percebeu que o tempo e o espaço são elásticos e que são duas faces de uma mesma entidade: o espaço-tempo. Pela primeira vez, o tempo não é uma entidade imóvel, é algo que pode ser distorcido. Isto permitiu-nos trabalhar a noção de tempo: o tempo pode fluir mais devagar ou mais depressa. A teoria da relatividade foi importante para termos até uma noção do início do tempo – tínhamos de quebrar primeiro a noção de que o tempo é uma coisa estática e imóvel e eterna. Creio que a noção do Big Bang só é possível depois de termos quebrado a barreira do tempo e de sabermos que podemos mexer no tempo.
 
Que implicações filosóficas e religiosas teve o facto de termos tomado consciência da existência do Big Bang?
Imagino que deve ter sido um grande choque saber que o Universo está a evoluir e que nós, enquanto parte do Universo, estamos a caminhar para algum ponto enquanto espécie e enquanto ser vivo no cosmos. Qual o nosso papel no Universo? Há algum propósito na nossa existência? Qual o futuro da humanidade? Quem criou o Universo? Estas perguntas devem ter ganho nova relevância.

Mas, cientificamente, ter havido um ponto de partida é libertador. Não nascemos escravos de um Universo que já cá estava. Pelo contrário, evoluímos com ele. Se o Universo não é estático e está a mudar, então talvez possamos compreender as estrelas, como deitam tanta luz cá para fora, o que acontece no interior delas… Como é que se formaram, como morrem, como é que a vida nasceu... tudo isto! Tem de ter sido uma coisa bonita saber que, afinal, há alguma dinâmica no sítio onde vivemos.

Em 1965, descobriu-se uma radiação “fóssil”, que é a luz mais antiga que conseguimos ver dos primórdios do Universo, quando tinha apenas 380 mil anos, e a que se deu o nome de radiação cósmica de fundo. Esta foi a derradeira prova da existência do Big Bang?
A teoria de um Universo estático ou estacionário prevê que o Universo é hoje como foi há milhões de anos. Por outro lado, a teoria de que o Universo teve um início prevê muitas outras coisas: toda a matéria estava concentrada inicialmente num único ponto e toda a matéria estava esmagada porque a temperatura era enorme. Mas, à medida que o Universo expande, arrefece e permite a criação de estrutura. Quando o Universo celebrou um segundo de vida, estava suficientemente frio para núcleos de átomos. E aos 380 mil anos a luz conseguiu finalmente “libertar-se” da matéria: é esta luz a que chamamos a radiação cósmica de fundo, um eco do Big Bang. Mas é um eco que tem toda esta evolução subjacente. Portanto, é uma fotografia lindíssima do Universo jovem-adulto, só possível num cenário em que existe Big Bang.

E um pormenor interessante que talvez muitos conheçam é que esta “fotografia” foi descoberta por acaso por Penzias e Wilson em 1964. Enquanto instalavam antenas muito sensíveis, detectaram um ruído que atribuíram a... cocó de pombos. E que acabou por se verificar ser radiação cósmica de fundo existente em todo o lado e em todas as antenas.

Hoje vemos galáxias e aglomerados de galáxias pelo Universo todo. O que mais nos disse ainda a radiação cósmica de fundo sobre o Universo como o vemos hoje, com 13.800 milhões de anos? O que permite saber sobre o Universo nos primeiros 380 mil anos, que não se consegue ver directamente?
A radiação cósmica de fundo é quase isotrópica, isto é, a mesma em todas as direcções para onde olhemos. Isto faz sentido, dado que o Universo era o mesmo em todas as direcções quando esta luz foi libertada. Mas esta luz é antiga, está a viajar há muitos milhões de anos e já viu muita coisa. Desde os quase 14.000 milhões de anos que passaram desde que a radiação cósmica de fundo foi criada, muita coisa aconteceu: a gravidade atrai tudo o que pode, e a tendência é começar a formar “coágulos” de matéria, que são as sementes das futuras galáxias, estrelas ou mesmo buracos negros.

Ora como esta luz viaja há tanto tempo, ela foi afectada por todos estes acontecimentos. Por isso, quando olhamos para a radiação cósmica de fundo, vamos ver todo este passado da luz como pequenos desvios em diferentes direcções. Estes desvios foram medidos pelo satélite Cobe [em 1992] com muito boa precisão. 

Outro marco da nossa compreensão do Universo foi o modelo da inflação cósmica. Por que foi preciso introduzir na teoria do Big Bang uma expansão vertiginosa do Universo nas primeiras fracções de segundo da sua existência?
O Universo nasceu homogéneo e isotrópico, o mesmo em todo o lado e direcção e continua mais ou menos assim ainda hoje. No cômputo geral, o Universo é mais ou menos homogéneo. Na verdade, se olharmos para o céu, há sempre uma estrela algures no caminho do nosso telescópio. Isto significa que a direcção do Pólo Sul no céu parece-se, com uma precisão de uma parte em 10.000, com a direcção do Pólo Norte. Mas quando olhamos nestas diferentes direcções, estamos a ver luz que veio de partes completamente diferentes e que nem sequer deveriam saber da existência uma da outra... Então, como é possível que sejam tão semelhantes? Bem, uma explicação é que seja uma coincidência, mas tem de ser uma coincidência tão grande que é como ganhar a lotaria várias vezes seguidas... Parece batota!

Pensamos que isto aconteceu porque houve uma inflação, isto é, um crescimento muito rápido que dissolveu qualquer “coágulo” e imperfeição que existisse, um alisamento muito rápido do tecido onde estavam estes coágulos, e tudo ficou muito uniformemente distribuído. A inflação procura explicar por que é que o Universo é assim.

Ainda antes da inflação, houve o Big Bang, o momento zero. Depois, houve a primeira fracção de segundo a partir da qual o conceito de tempo tem sentido: 10-43 segundo. Mas entre o Big Bang e os 10-43 segundo, o que é o tempo?
Não sabemos. O 10-43 segundo é o que chamamos a escala de Planck (em homenagem a Max Planck, o físico que iniciou o estudo da mecânica quântica). Que é a escala da nossa ignorância. Diz-nos que daí para trás a mecânica quântica (que explica a existência de átomos, moléculas, etc.) é tão ou mais importante do que a gravidade. Quando o campo gravítico é muito forte – e no início do Universo era muito forte, porque estava tudo junto e era extremamente denso –, há efeitos de mecânica quântica que não conseguimos prever. Sabemos que têm de estar lá, mas não os sabemos calcular. Como não conseguimos casar as duas teorias, a teoria quântica e a teoria da relatividade geral, não sabemos o que acontece.

Do zero do Universo até aos 10-43 segundo, podemos dizer que há tempo?
Do zero até aos 10-43 segundo não se pode dizer que não haja tempo. Há tempo, mas talvez seja de uma natureza diferente. Não se pode dizer mais nada. É um tempo diferente. Há efeitos de mecânica quântica que não conhecemos. Talvez o tempo flutue e dê saltos... talvez não ande sempre para a frente... Julga-se que nestas alturas o espaço-tempo é como espuma, tudo se mistura. É a partir de 10-43 segundo que a teoria de Einstein é aplicável.

E antes do Big Bang?
É o campo da especulação e da metafísica. A ciência pára aí.

Há cerca de 15 anos, o físico João Magueijo propôs uma alternativa ao modelo da inflação cósmica para tentar explicar a homogeneidade do Universo a grandes escalas. Teriam sido os fotões – a luz – que puseram todo o Universo primordial em contacto e o tornaram uniforme. Mas para isso a luz teria de ter viajado mais depressa no passado, o que punha em causa a constância da velocidade da luz. Há hoje alguma observação astronómica que fundamente esta proposta?
Ele tentou mudar as regras do jogo, para encontrar uma alternativa ao processo de inflação, que, como disse antes, sugere que o Universo passou por uma fase de crescimento muito rápido, quando era criança. É uma ideia interessante: em vez de ser a velocidade de expansão do Universo que mudava, era a própria velocidade intrínseca das coisas, neste caso da luz, que mudava ao longo da história do Universo. A luz punha tudo em contacto e a homogeneidade ficava mais ou menos explicada.

Do ponto de vista teórico, nada proíbe que isso tenha acontecido. Mas Einstein acreditava que a velocidade da luz era constante, é um postulado da teoria dele. É assim que a física funciona: propõem-se alternativas para resolver problemas e fazem-se observações para ver qual é a que o Universo escolheu. Segundo o que sabemos hoje, parece que o Universo escolheu a inflação e que a velocidade da luz é mais ou menos constante ao longo da sua história. Portanto, a proposta de João Magueijo é interessante, mas a natureza não optou por ela. Contudo, ao explorar essa possibilidade, ficamos a saber algo mais sobre o Universo. Fazer ciência é testar hipóteses.

A descoberta das ondas gravitacionais dos primórdios do Universo, anunciada em 2014, teria sido a prova final de que o modelo da inflação cósmica estava certo. Mas esse anúncio foi desmentido já este ano por análises posteriores das observações, nomeadamente do telescópio espacial europeu Planck. Ficou muito desiludido?
As ondas gravitacionais são distorções do espaço-tempo que transportam informação sobre a gravidade. Elas viajam à velocidade da luz e foram previstas por Einstein há quase 100 anos, mas nunca foram detectadas directamente na Terra. O anúncio original da descoberta matava dois ou três coelhos de uma cajadada: se estas ondas tivessem mesmo sido vistas, significava que a gravidade também tem natureza quântica, já que estas ondas seriam geradas por efeitos quânticos no início do Universo; significava também a verificação do mecanismo que mencionei, a inflação, já que só através da inflação é que as ondas gravitacionais são suficientemente fortes. E, finalmente, a detecção das ondas significa que elas existem!

Quanto ao episódio do anúncio da (falsa) descoberta em si, é uma ilustração perfeita de como a ciência (e o ser humano) funciona. Um grupo, da experiência BICEP2 no Pólo Sul, afirmou [em Março de 2014] ter descoberto as ondas gravitacionais, talvez um pouco precipitadamente, para ficar com a fama e o proveito que adviriam se estivessem correctos. Como já disse, a reacção da maior parte de nós ao anúncio de qualquer descoberta é tentar provar que está errada. E, realmente, há cerca de um mês a equipa do Planck, em colaboração com o BICEP2, mostrou que o anúncio foi precipitado. Mas repare: existe agora um consenso entre os cientistas, portanto o método científico está a funcionar perfeitamente.

Pode explicar um pouco mais o que são as ondas gravitacionais? Acha que vamos conseguir detectá-las?
A teoria da relatividade de Einstein diz que espaço e tempo são um único tecido, uma única entidade, e que as ondas gravitacionais são flutuações desta entidade à medida que o tempo passa. As ondas na superfície de um lago são uma boa analogia. Outra boa analogia é imaginarmos que o Universo em que vivemos é o tecido de uma camisola. E que nós e tudo o que existe no Universo somos os desenhos pintados na camisola. Se eu tocar com o dedo na camisola, ela vai oscilar. E se eu puxar o tecido da camisola, os desenhos ficam mais ou menos esticados. Puxões que viajam no tecido são as ondas gravitacionais. Esta analogia mostra-nos o efeito de uma onda gravitacional sobre nós. Se uma onda gravitacional estiver a passar aqui entre nós, é o mesmo que eu puxar o tecido de uma camisola e o que veria é que ficaríamos sucessivamente esticados e comprimidos. A minha altura iria variar muito pouco, mas iria variar. O problema é que varia muito pouco, o que é bastante complicado de detectar.

Estas ondas têm uma história interessantíssima. Einstein previu a existência delas em 1916, mas 20 anos depois negou a sua existência num artigo com [Nathan] Rosen. Einstein também errava, e bastante, e isto foi mostrado (sabemos hoje através da consulta do arquivos da American Physical Society) por [Howard] Robertson, que se apercebeu de que ele tinha interpretado mal a solução. Mas Einstein era Einstein e o que perdurou foi a sua opinião... até 1955, altura em que [Richard] Feynman, [Hermann] Bondi e outros mostraram que as ondas têm de existir e transportar energia.

A partir de 1960, começa-se a tentar detectar estas ondas na Terra, com barras de alumínio. Joseph Weber foi um pioneiro na área, construindo os detectores mais avançados. Infelizmente, alegou ter detectado dezenas de acontecimentos, mas mostrou-se mais tarde que eram produto de erros de software e hardware.  
Resumindo, a história da detecção destas ondas, chamadas “mensageiros de Einstein”, não começou muito bem, e havia algum receio de investir uma carreira no assunto. Nos anos 1980, o famoso físico Kip Thorne [do Instituto de Tecnologia da Califórnia] decidiu recomeçar todo o esforço com o LIGO, um observatório norte-americano. Acreditamos que a primeira detecção directa destas ondas vai acontecer daqui a um ou dois anos.

Se não detectarmos nada em 2017... mau... Então, ou o Universo é completamente diferente da forma como hoje o entendemos, ou a teoria de Einstein está seriamente errada.

Pensa-se que os buracos negros também geram ondas gravitacionais, duas coisas que têm sido estudadas por si. Que mistérios procura desvendar?
Bom, dado que vamos todos acabar dentro de um buraco negro, é bom sabermos como estas bestas nasceram e cresceram. Buracos negros nascem quando uma estrela muito grande morre, e cai sobre si mesma, pois já não consegue suportar a atracção gravítica. Para um buraco negro, crescer é a única opção: eles comem tudo o que puderem. Os buracos negros são muito comuns na nossa e em todas as galáxias: a nossa galáxia tem milhões de buracos negros “pequenos”, isto é, com cerca de 15 quilómetros de raio, mas um milhão de vezes mais pesados do que a Terra. Além disso, descobrimos nas últimas décadas que todas ou quase todas as galáxias têm no centro um buraco negro supergigante. No caso da Via Láctea, o centro é ocupado por um monstro gigante quatro milhões de vezes mais pesado do que o nosso Sol. Estes gigantes, apesar de muito mais pequenos do que a galáxia, controlam toda a actividade da galáxia, incluindo o nascimento de novas estrelas.

Estes gigantes nos centros das galáxias estão sempre acompanhados de um outro gigante invisível, a que chamamos matéria escura. A matéria escura forma a maior parte da matéria do Universo, e não fazemos ideia do que seja (por isso lhe chamamos “escura”, quando soubermos o que é, talvez mudemos o nome!). Ora, os buracos negros emitem quantidades prodigiosas de ondas gravitacionais. O meu trabalho tem-se focado em perceber esta emissão, e qual a sua importância. Por exemplo, será que através da emissão de ondas gravitacionais podemos saber algo acerca da matéria escura?

Como é que o acelerador LHC – onde se detectou o bosão de Higgs em 2012 e que vai agora reabrir quase com a sua potência máxima – pode contribuir para descobrir o que é a matéria escura? Pode ajudar a fazer o mesmo para a energia escura?
O LHC tem tentado procurar também matéria escura, mas estamos sempre limitados pela energia necessária. No estado actual da física, a parte mais excitante está no Universo para lá do nosso sistema solar. Há pouco tempo, o CERN deu-nos provas mais ou menos conclusivas da existência do bosão de Higgs. Mas receio que daqui para a frente a física de partículas vá passar um mau bocado. Sempre precisou de mais e mais energia [para se colidirem partículas nos aceleradores], mas haverá uma altura em que, no planeta, é impossível dar essa energia toda. Teremos de olhar lá para fora e dedicar atenção a outro tipo de “aceleradores”.

Creio muito sinceramente que a física do próximo século está nos astros, e na física gravitacional. Há muito por entender e muitas fontes de energia onde podemos ir procurar informação. Precisamos de telescópios bons e mentes brilhantes.

Os buracos negros estão entre os objectos mais exóticos do Universo? Ou nem por isso e são é astros que despertam muita curiosidade nas pessoas?
São, sem dúvida, exóticos para a nossa experiência do dia-a-dia. São um “nada” que consegue curvar de tal forma o tiquetaque dos relógios que nada sai de dentro deles. Creio que o que desperta a curiosidade é o facto de desafiarem os nossos conceitos de tempo e espaço, e o facto de representarem um fim quase definitivo para tudo o que engolem. E é preciso relembrar que eles existem.

Já recebeu duas superbolsas do Conselho Europeu de Investigação (ERC), uma de um milhão de euros, em 2010, e agora, em 2015, outra de 1,5 milhões de euros, para estudar as equações de Einstein na teoria da relatividade geral. Explique-nos o que quer dizer estudar as equações de Einstein. E em que áreas o vai fazer: nos buracos negros, na matéria escura, na energia escura?
O meu trabalho é pensar sobre o que nos rodeia, para percebermos, todos nós, o nosso Universo um pouco melhor. A minha investigação consiste em perceber a teoria de Einstein e o que ela prevê. É fácil de enunciar, é difícil de fazer, porque as equações de Einstein descrevem muita coisa: buracos negros, ondas gravitacionais, estrelas de neutrões, etc. As equações da relatividade são tremendamente complicadas de resolver e têm muitas soluções – tal como a "fórmula" da biologia dá origem a muitos seres vivos diferentes. Tome-se como exemplo o buraco negro no centro da nossa galáxia, que é fundamental para a vida da galáxia, para a formação de estrelas e até para o futuro muito longínquo da galáxia. Eu dedico-me a tentar perceber estes buracos negros, como crescem e como nos podem ensinar algo acerca da sua vizinhança.

E estas superbolsas são fulcrais. A importância e a qualidade da ciência em Portugal tinha vindo a crescer, muito rapidamente, nas duas últimas décadas. Creio ser justo dizer que o ritmo de crescimento era muito maior do que no resto da Europa e começávamos a ver já focos de grande qualidade e competitividade. Os cortes orçamentais fizeram regredir a situação. Espero que seja apenas um soluço no percurso para uma comunidade científica que é muito forte. A última bolsa do ERC vai permitir-me manter um grupo de grande qualidade sem preocupações quanto aos cortes ou à política de contratações, durante os próximos cinco anos. Vai permitir-me, por exemplo, contratar investigadores para me ajudarem nesta missão, bem como actualizar o nosso “supercomputador,” que usamos intensamente para resolver as equações de Einstein.

Esse supercomputador chama-se Baltasar Sete Sóis, nome inspirado em Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, personagem de José Saramago em Memorial do Convento. Por que se lembrou de dar este nome a essa máquina?
O nome foi discutido com a minha mulher durante alguns dias, queria que fosse algo com significado. Ora o Baltasar Sete Sóis é um personagem interessante, pois ajuda o padre Bartolomeu Lourenço a construir o seu sonho, que é a Passarola, uma máquina voadora. Gostámos desta ideia, de o Baltasar ajudar a construir um sonho, especialmente da forma apaixonada com que as personagens do livro o faziam. Posso dizer, ao fim de cinco anos, que o Baltasar já construiu muitos sonhos!

Neste passeio que estamos a fazer, houve mais um abalo, em 1998, na nossa visão do Universo. Não só o Universo se está a expandir como o está a fazer cada vez mais depressa. Por que é que isto surpreendeu tanto os cientistas?
Bom, por várias razões, a começar pelo facto de que a expansão acelerada não estava no “menu”. E porque a descrição mais simples desta aceleração é uma energia escura, ou constante cosmológica (a mesma que o Einstein tinha introduzido por preconceito), que ainda hoje não sabemos bem explicar. Já agora, note-se que esta “reciclagem” da constante cosmológica não significa que Einstein estava, afinal de contas, certo. Isso é apenas uma coincidência, mas mostra que o homem tinha uma intuição danada para resolver problemas.

O cenário mais consensual é o da expansão eterna do Universo. Como será o Universo com 26.600 milhões de anos, ou seja, com o dobro da sua idade actual? Esse futuro é negro?
O futuro é escuro e frio! Essa pergunta é tramada, porque exige fazer alguns cálculos complicados. Mas deixe-me descrever o que vai acontecer, e como vamos ficar cada vez mais sós.

Daqui a cerca de 500 milhões de anos, o Sol vai estar tão luminoso que a temperatura na Terra vai subir cerca de dez graus. O homem vai provavelmente começar a pensar, a sério, em mudar-se para outros planetas no sistema solar ou na galáxia antes disto. 

De qualquer forma, daqui a cerca de 4000 milhões de anos a nossa galáxia, a Via Láctea, vai colidir com outra, a de Andrómeda [e o nosso Sol estará a morrer daqui a 5000 milhões de anos]. Durante esse processo, que vai levar muito tempo, algumas simulações mostram que a Terra vai passar muito perto do centro desta galáxia combinada, antes de ser ejectada para fora. Vamos perder a nossa querida galáxia, mas por essa altura a Terra já não terá humanidade.

Daqui a 100.000 milhões de anos, todo o Grupo Local [cerca de 40 galáxias, onde se inclui a nossa] será uma única galáxia e o Universo já terá arrefecido e expandido de tal forma que esta única galáxia estará isolada do resto do Universo. Lentamente, estrelas deixarão de se formar. Algum tempo depois, os protões e os neutrões desintegrar-se-ão. Qualquer vida que pudesse existir morre.

Como puro exercício especulativo, podemos continuar: a matéria que existe vai cair para dentro dos buracos negros, e o Universo vai ter apenas buracos negros gigantes. Finalmente, estes vão-se evaporando lentamente... E não faço ideia do que acontece a seguir neste Universo. Dito desta forma, parece um cenário desolador. Poderemos pensar em nós como aquela luzinha trémula que surgiu no meio da noite e se apagou, mas foi bonito enquanto durou.

Esta altura onde estamos agora é a melhor para estudar o Universo, agora já evoluiu bastante?
É. Se fosse mais cedo, era impossível, porque não teria o tipo de estrutura que tem. Não haveria planetas do tipo da Terra a orbitar estrelas. Nem nós estaríamos cá nem alguma forma de vida vagamente semelhante à nossa. A questão é: há mais alguém a observá-lo e há ligeiramente mais tempo?

Acha que há?
Acho que sim. A probabilidade de haver vida nalguma ponta do Universo é imensa... O que não quer dizer que esses seres vivos sejam necessariamente parecidos connosco, física ou intelectualmente.

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Uma ilustração de um buraco negro NASA
A galáxia M101 fotografada pelo telescópio espacial Hubble NASA/ESA