A Manuela Nogueira é uma escritora ao pé dos noventa anos que tem a particularidade de ser sobrinha de Fernando Pessoa e com ele haver convivido durante os seus primeiros dez anos de vida. Vejo-a na televisão a explicar-se acerca dessa memória e não posso deixar de ficar incrédulo. Parece uma coisa meio louca, como alguém vir contar que conversou e brincou com Camões, Cervantes, Bach, Vivaldi, Goya ou Van Gogh.
Há gente que só é credível no passado, quero dizer, gente que existe como memória do absoluto colectivo, algo liberto na história da humanidade como um conceito a que se deu um nome e apelido. Fernando Pessoa é assim, um conceito com nome e apelido, liberto no tesouro universal humano. É uma fortuna de todos, não se compadece com a estreiteza da pertença a uma família. Por isso soa a loucura que a digníssima Manuela Nogueira diga “tio” acerca de Pessoa. Conte sobre a sopa, a barba, a paciência e o sorriso, o saibro à porta de casa, a loja onde comprava chocolates. Comia chocolates na metafísica descomplicada das crianças. A metafísica mais invejável.
Perdemos as pessoas sempre absurdamente. Há uma explicação insuportável para a morte e o jugo do tempo é demasiado sem diálogo. Somos manifestamente à deriva, o problema é amar e o amor ser modo de agarrar. Assim, tornam-se de uma mitologia retumbante as pessoas que nos morreram. Relembramos cada gesto como se fosse até impossível lembrar. Há uma espécie de vitória que também nos humilha na possibilidade de ainda lembrarmos. De qualquer maneira, sem a memória somos roubados do amor. A memória é o amor que perdura.
Pensar Fernando Pessoa, por outro lado, é um amor de toda a gente, uma espécie de memória que já é sobretudo a ideia de património colectivo, uma ideia de sociedade. Pensamos Pessoa como quem comprova a existência de uma determinada sociedade. Somos estes, os do Pessoa. Interferir nessa concepção uma efectiva relação de memória é da ordem do divino. Como se alguém viesse com notícias de um olimpo, porque o passado cristaliza e eleva à mitologia. Manuela Nogueira é uma máquina do tempo capaz de aludir ao que havia antes do cristal definitivo. É como um empecilho à própria ideia de definição, porque ela observou directamente o que os conceitos se obstinam por definir, que é como quem diz, por parar. Enquanto esta senhora testemunhar, Pessoa é um movimento e há uma porta toda subjectiva e vibrante entre o lugar dos deuses e o lugar dos homens.
Era o programa de Fátima Lopes, as conversas são tidas com uma simpatia e descontracção bastantes, é mais comum que as figuras ali vão discutir telenovelas ou aflições para uma piedade nem sempre muito salvadora. Evocar-se Fernando Pessoa na tarde de entretenimento da televisão significa importantemente o que dizia acima, que ele transpôs a individualidade e se disseminou em quem somos, como ingrediente do ser-se português. Passa a dizer respeito aos assuntos todos. É uma pergunta colocada a cada cidadão à qual apenas vida inteira servirá de resposta.
A lucidez de Manuela Nogueira, a capacidade de contar, o impressionante e impressionado detalhe com que fala da sua infância, é um meio de transporte. Pousamos em cada palavra a caminho dos anos de 1930. Eu sei que os livros são gente e eles operam exactamente assim. Mas gente ser um livro é mais raro, especialmente se a história que nos conta vem de um tempo, ou de uma realidade, que julgávamos esgotada de discurso directo. Subitamente, alguém está verdadeiramente dentro de um segredo. Uma coisa de conhecer e sentir. Um observador que lida ainda com a sua própria estupefacção, como todos quantos viram uma demasia.
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