O famalicense Joaquim Alves Correia de Araújo, enviado como alferes-médico para a frente moçambicana em Maio de 1917, era um observador metódico e imparcial, virtude que tende compreensivelmente a rarear no cenário violento de um teatro de guerra, propício a emoções fortes e empolamentos patrióticos
Por isso mesmo é tão precioso o diário que nos deixou: um caderno de 77 páginas que uma sua sobrinha-neta, Teresa Araújo, historiadora e arquivista na Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, tem vindo pacientemente a decifrar, e que tenciona publicar em breve.
Destacado no posto de Chomba, onde se instalara um Hospital de Sangue, e depois no Hospital dos Combatentes, na ilha de Xefina, na baía da então Lourenço Marques, o jovem médico de V. N. de Famalicão esteve ainda noutros locais-chave do conflito e foi uma testemunha privilegiada da actuação das tropas portuguesas em Moçambique durante a I Guerra.
Um bom exemplo da sua objectividade, que em nada diminui a vivacidade dos seus relatos, é este passo do diário, transcrito por Teresa Araújo, no qual descreve o modo como se reagiu em Chomba à notícia de que “grossas colunas alemãs” tinham atravessado o Rovuma: “Às 5h de 22 [de Julho de 1917] tudo batia em debandada. Automóveis e carregadores transportavam continuadamente pessoal e bagagens, não esquecendo os penicos. Os lugares eram disputados (…). Todos os serviços ficaram abandonados. O director do Hospital pôs-se na alheta e deixou os doentes, de que a custo se evacuou parte. Os medicamentos ficaram encaixotados. Tomei a direcção, por nomeação dos meus colegas que ficaram (…). A desordem era enorme, a confusão não se descreve…”.
Nos apontamentos do médico, diz a sua sobrinha-neta, percebe-se que respeitava mais os adversários alemães do que os aliados ingleses. E irritava-se deveras com o amadorismo das forças portuguesas, lamentando a “figura tristíssima que muitos oficiais fazem”, chorando e implorando para os mandarem para casa.
Ma o diário também regista momentos felizes: uma noite de Natal com o indispensável bacalhau, ou a notícia do armistício, a 11 de Novembro de 1918, que o médico celebrou com champanhe no vapor que já o trazia de regresso a casa.
Nascido em 1889 em Requião, freguesia do concelho de V. N. Famalicão, Joaquim Alves Correia de Araújo era o segundo dos oito filhos de um casal de abastados proprietários rurais. O pai, Manuel, foi presidente da junta de paróquia local e vereador da Câmara de V. N. Famalicão antes e depois da implantação da República. E muitos dos seus familiares exerceram, em sucessivas gerações, cargos públicos na freguesia e no concelho.
O seu irmão Armindo veio a presidir à Câmara de Famalicão na década de 50, e um seu tio, Francisco Alves Correia de Araújo, fora o primeiro presidente da autarquia após o golpe de 1926 e voltou a sê-lo ao longo de quase toda a década de 30. Foi com o seu patrocínio, conta Teresa Araújo, que Manoel de Oliveira realizou em 1940 o documentário Famalicão. O intermediário terá sido um filho do autarca, Virgílio, que estudara com o futuro cineasta num colégio em La Guardia, na Galiza.
Manuel e a sua mulher, Bambina, eram suficientemente abastados para poder proporcionar uma educação cuidada a toda a sua extensa prole, e Joaquim não foi excepção. Licenciou-se pela recém-criada Faculdade de Medicina do Porto, tendo defendido tese em Fevereiro de 1917, já após ter sido mobilizado, com um trabalho intitulado O método de Carrel e o soluto de Dakin no tratamento das feridas infectadas. No preâmbulo à sua tese, diz a sua sobrinha-neta, exprime a sua perplexidade pelo facto de os jovens médicos sem tese de final de curso poderem ser mobilizados para exercer clínica militar, quando estavam impedidos de a exercer enquanto civis.
Chegado a Moçambique, é integrado na chamada coluna dos Macondes e colocado no posto de Chomba, onde fica cerca de um ano. É depois transferido para o hospital de Xefina, onde terá usado um medicamento da sua própria autoria que, segundo memórias conservadas na família, obteve resultados excepcionais na luta contra a febre biliosa.
Regressado a Portugal, trabalhou no Regimento de Sapadores do Caminho-de-Ferro e no Hospital Militar da Estrela, em Lisboa, tendo sido promovido a capitão-médico em 1922. Pediu depois transferência para uma unidade de Santo Tirso, e quando esta foi extinta passou formalmente à reserva, embora tenha continuado a exercer medicina, designadamente no Hospital Militar do Porto, onde se manteve até 1947. Morreu quase octogenário, em 1968.
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