Os olhos de Maria Eduarda fixam-se, límpidos, em quem tem pela frente, enquanto conta a razão de ser Eduarda. “Chamaram-me assim em homenagem ao meu tio que não conheci.”
Maria Eduarda Pimentel tem 95 anos. É descendente directa de uma geração de portugueses que combateram numa guerra que durante décadas andou silenciada, com testemunhos dispersos, mal preservados e muitas biografias por contar. “No início do século XX o meu avô mandou os três filhos de Tavira para Coimbra, para estudarem. Entregou-os a um empregado de confiança”, continua Maria Eduarda. Um tornou-se médico, outro advogado e o terceiro estava a estudar filosofia e matemática quando foram convocados para embarcar para a Flandres. “O meu pai teve um problema de saúde e não pode ir, mas os meus dois tios foram. Um serviu como médico e foi feito prisioneiro pelos alemães, ou outro não era formado e foi para a batalha.” Chamava-se Eduardo e morreu em La Lys, em Abril de 1918. Durante o tempo que esteve na Flandres, Eduardo escreveu todos os dias à mãe, a avó de Maria Eduarda. Foram quase 500 postais, muitos com poemas e palavras a tentar sossegar a mãe.
A imensa colecção de postais de Maria Eduarda deixou agora de ser privada para constar de um colectivo a que faltam muitas peças para que possa ser transmitido e entendido na sua complexidade, como reconhece Maria Fernanda Rollo, do Instituto de História Contemporânea da Universidade (IHC) Nova de Lisboa. “Não é possível traçar o retrato da participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial sem o testemunho de milhares de pessoas através das histórias de família, partilha de objectos, fotografias, cartas, documentos. Isso é precioso para quem trabalha com a história contemporânea”, continua Fernanda Rollo, sem esconder a surpresa com a afluência e riqueza dos testemunhos que desde a passada sexta-feira (e até domingo) têm surgido no Parlamento na iniciativa Os Dias da Memória. Integra-se na evocação do centenário do conflito de 1914-18, no âmbito da Collection Days, da biblioteca digital europeia, responsável pelo lançamento do European 1914-1918, que pretende recolher material de estudo em toda a Europa.
Maria Eduarda nasceu um ano depois da morte do tio, numa família onde não se falava no assunto. “Era tabu em casa. Correspondeu a um período de tragédia familiar. Um filho doente, dois na guerra, um deles nunca voltou. O meu avó morreu dois meses depois do meu tio, com insuficiência cardíaca. Os médicos disseram que foi consequência do desgosto.” Já era adulta quando a história lhe foi sendo contada pelos pais. Tem doado o que ficou dessa época ao Museu de Tavira. É para lá que segue a colecção de postais depois de digitalizada pela equipa do IHC.
O silêncio de que fala Maria Eduarda Pimentel é comum a quase todas as histórias partilhadas no edifício de S. Bento. “Quem é que quer reviver a dor?”, questionava Maria Guilhermina Estevinha, contadora da história de um tio-avô, o capitão miliciano Álvaro Marques Machado, nascido no Rio de Janeiro em 1885, e que morreu de cancro em 1944, diz-se que em consequência dos gases tóxicos que respirou na Flandres. Também veio trazer uma colecção de postais que ele escreveu à mãe. Em muitos lia-se apenas uma frase: “Continuo bem.”
Até ao início da tarde de ontem, tinham passado pelo espaço que Parlamento cedeu a’Os Dias da Memória mais de cem pessoas que quiseram partilhar as suas memórias da Primeira Guerra Mundial. Muitos trazem fotografias de rostos para os quais procuram um nome, cartas e postais escritos em caligrafia certa, mensagens inócuas para passar o filtro da tal censura que pouco mais serviam do que para dizer que se está vivo. “Que as festas sejam o melhor possível”, lê-se num postal de 20 de Dezembro de 1917. A assinatura é ilegível. “Espero que as coisas com a propriedade vão a contento”, escreveu-se noutra.
Em frente a uma câmara, Tomás Fernandes Pereira fala do avô, quase o mesmo nome a que se acrescentava o apelido Wylie. Era português, filho de uma escocesa. “Os portugueses aproveitaram o facto de o meu avô ser bilingue para contactos com os ingleses durante a fase de preparação da guerra”, conta o neto, sobre uma vida que, durante a guerra, se dividiu entre Paris e Londres. Era ali na capital inglesa que estavam no dia do armistício. A mãe era pequena. Estava na escola. E contava que o professor mandou os alunos irem à janela e, se vissem fumo branco, tinham autorização para atirar coisas, partir vidros. Passaram quase 96 anos, o homem que hoje conta essa história não a viveu, mas não resiste a uma lágrima, quando narra a felicidade da mãe sobre esse dia a que sempre se referiu como um dos mais emocionantes da sua vida.
Conheceu o avô, mas também ele não falava desses anos. Republicano, casado com uma adepta da monarquia, o então adido militar nomeado pelo ministro João Chagas, fez como muitos depois da guerra e durante os anos do Estado Novo: calaram esse tempo.
As gerações do pós-trauma
Havia o trauma de uma guerra que fez mais de 7500 mortos e desaparecidos só num dia em La Lys, entre os portugueses, e muitas mais vítimas nas colónias de África, em Angola e Moçambique, onde os combates foram mais prolongados e a fome e a doença fez milhares de baixas. Houve a fome causada pelo racionamento, houve a pneumónica, mas houve também as questões políticas, como o Sidonismo e os primeiros anos de outra ditadura que, de forma mais ou menos demagógica, usou a participação portuguesa na Guerra como argumento para se legitimar como alternativa e justificar a neutralidade portuguesa na II Guerra Mundial. Resultado de tudo isto, uma geração que foi calando e escondendo as marcas de um tempo com pouco de bom para recordar. “Talvez agora, com as gerações que não testemunharam esse momento, seja possível tentar recuperar algo que, se passar mais tempo, se irá perder definitivamente”, espera Fernanda Rollo.
José Luís Falcão Vasconcelos tem na mão uma fotografia do “Tio Henrique”. Sabe pouco daquele homem fardado a rigor, exibindo uma patente que “talvez seja de sargento”. Sabe que era da Póvoa do Varzim, da família da mulher. O resto, talvez se vá encontrando, espera este professor de História do Liceu Camões, em Lisboa, uma das escolas a par com a Josefa de Óbidos, que se juntou a esta iniciativa, estimulando os alunos a recolherem histórias junto das suas famílias, sobre eventuais participações na I Guerra. Não é tão incomum ter antepassados com essa história. Mais de 100 mil portugueses participaram no conflito.
João Tomé Mendonça, 15 anos, é aluno do Liceu Camões e sempre soube desse seu passado familiar. Filho, neto e bisneto de militares, traz num saco um conjunto de objectos que testemunham a passagem do bisavô por Angola, Moçambique e em França durante o conflito, e de um tio-bisavô que esteve na Flandres. João Tomé é uma espécie de estrela numa sala repleta. O seu saco revelou-se um tesouro. Abre-o e revela parte de uma farda militar. Um cantil e um revólver desactivado estão entre o seu espólio, cobiçado por fotógrafos e jornalistas. “Só não trouxe uma espada porque era complicado”, mas já a fotografou e digitalizou. Já não sabe com quantas pessoas falou, mas repete a história como se fosse a primeira vez. “A minha bisavó escondeu o revólver do meu bisavô porque achava que ele se podia suicidar. Ele acordava de noite em sobressalto desde que voltou da guerra.”
O discurso comum a todos os que aparecem pelo parlamento com objectos ou uma história para contar é o da partilha. José Luís Falcão de Vasconcelos, o professor de História do Liceu Camões, sublinha essa troca de passados como um dos aspectos mais positivos destes três dias, e o de se estar ali a tentar reconstituir biografias pessoais e o tal colectivo que só agora está a deixar esse trauma. Porque houve outros desde esse. “A I Guerra Mundial ainda é um problema para os republicanos”, continua. E cita aqui o historiador Fernando Rosas quando disse que a Guerra destruiu a República.
Parece uma frase simples de desmontar quando se conhece a história que se seguiu. Para o republicanos, então, entrar na guerra era uma questão de prestígio para um país pobre e periférico com o problema das colónias ultramarinas por resolver. Mas La Lys não resolveu esse problema. O país estava mais pobre e de luto.
Sentado numa cadeira, com uma fita verde ao peito que o identifica como um “contador de histórias”, outro professor, agora da Josefa de Óbidos, espera a sua vez para digitalizar uma fotografia. Diz que não é ele que interessa mas o homem de quem veio falar. Não é da sua família, mas conheceu-o em Cabo Verde, na Ilha de S. Nicolau. “Eu era um miúdo e ele era um dos homens mais respeitados e carismáticos que conheci”, recorda. A esse homem chamavam-lhe o Dr. Camões. “Nunca troquei uma palavra com ele, mas lembro-me de me interrogar sobre o que fazia um branco, metropolitano (era assim a que nos referíamos a pessoas com ar distinto), naquela ilha. O nome dele era Manuel Germano Camões. Foi oficial miliciano na I Guerra Mundial. Regressou, conspirou contra o regime que então chegava ao poder, participou na revolta da Madeira em 1931 e fez parte de uma série de deportados para Cabo Verde onde passou a exercer a sua profissão: médico. Morreu em 1968. A sua história merece ser contada”, refere este professor, sublinhando, mais uma vez, a importância da biografia pessoal na construção da história do país.
Bem perto, junto a uma janela, Ana Pérez-Quiroga junta postais como quem monta um puzzle. São dez até se ler o nome da figura que eles compõem: Jeanne D’Arc. “São do meu bisavô, Manuel de Matos Castanho, capitão de infantaria”, conta a artista plástica que acabou de acompanhar a sua digitalização. “Ele foi de Viseu para a Flandres e foi enviando várias colecções de postais. O último é de 2 de Janeiro de 1918.” São sempre dirigidos à filha e sempre com mensagens simples para passar na censura. Ana olha essas colecções como o registo de um lugar por onde se passa e do qual se quer trazer uma memória. Por isso está ali. Por isso também já enviou cópia deles para o The Guardian, quando o jornal pediu testemunhos da Europa na I Guerra.
Não há um fim nestas histórias. Juntá-las até fazerem um sentido, até se encontrarem nomes para os rostos e a tal biografia. Um professor exige uma máscara de gás que pertenceu a um antepassado seu e conta como ele sobreviveu à guerra, mas sobretudo ao regresso, como para explicar as contingências históricas. A primeira mulher estava com pneumónica e recebeu-o com um revólver. Disse-lhe que se ela ia morrer ele teria de morrer também. Disparou contra ele, mas a arma estava descarregada. Ela acabaria por morrer da doença. Ele casou outra vez e por isso a história agora se conta desta forma.
Maria Luísa Boléo chega no sábado de manhã. Não traz o que gostaria mais de trazer sobre a participação do seu avô na guerra, mas traz uma fotografia que foge ao comum: um homem com outros homens num gabinete, em 1918 ou 1919. Não sabe bem. “Ele era responsável pela estatística”, conta. "Já tinha família quando foi enviado para a Flandres. Depois da guerra e antes de ele regressar, a minha avó foi autorizada a visitá-lo e levou duas filhas. Ficaram na casa de familiares em França. Por essa altura houve um casamento e toda a gente da aldeia foi convidada. A alegria do pai da noiva era tão grande que ele ofereceu um anel de ouro a cada rapariga. A minha mãe estava lá e trouxe um. Era também para celebrar o fim da guerra.”
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