Em 2007 o artista Christian Marclay atribuiu a si próprio uma missão impossível: criar um filme sobre o tempo que “representasse todos os minutos do dia e da noite”.
O resultado, que demorou três anos a ser produzido, a um ritmo obsessivo de dez a doze horas por dia, foi The Clock (o relógio), um filme feito de milhares de clipes de outros filmes. Num plano podemos ver três negros a atravessar a baixa de Nova Iorque em Shaft (1971) e, no plano seguinte, Jean-Pierre Léaud/Antoine Doinel à coca nas ruas de Paris em Beijos Roubados (1968), de François Truffaut, e, logo depois, um homem de gabardine fugindo por um beco num qualquer film noir. The Clock sugere uma continuidade entre eles, como se fizessem parte do mesmo filme. Agora imaginem isso durante 24 horas. Eis The Clock. Missão cumprida.
The Clock chega a Lisboa, depois de um percurso óbvio (Londres, Nova Iorque, Paris…) e não tão óbvio (Winnipeg) que o tornou uma sensação global e Marclay uma celebridade. No Museu Berardo, onde fez uma apresentação para a imprensa, um dia antes da sua inauguração (na quinta-feira, às 22h, integrado na festa dos 25 anos do PÚBLICO), Christian Marclay exibia a contradição de um artista simultaneamente grato e de certo modo “ultrapassado” pela sua criação, que ganhou vida própria. Quarenta anos de trabalho ancorado nas vanguardas artísticas e no experimentalismo para, agora, dar nisto: ser conhecido, primeiro, sobretudo ou apenas, como o autor de The Clock onde quer que vá.
Não admira que Marclay se sinta um pouco como os Pink Floyd, obrigado a repetir o seu êxito número um o tempo todo. “Suponho que é isso que acontece quando uma obra tem sucesso. As pessoas querem mais do mesmo. Querem mais Clocks”, disse ao PÚBLICO.
É só um desabafo. Marclay – alto, magro, olhos glaciais contrastando com uma calma gentil, cabelo aparado muito rente, sem que ninguém lhe dê os 60 anos acabados de fazer – diz que continua a descobrir coisas novas em The Clock até hoje e parece ter prazer em falar da sua instalação-vídeo.
The Clock é uma compilação de cenas de filmes contendo toda a espécie de referências ao tempo e à sua passagem – sejam elas um pêndulo ou os ponteiros de um relógio, um cigarro a arder, uma espera ansiosa, uma corrida para apanhar um comboio, um despertador a tocar.
Mas The Clock é também um relógio, sincronizado com o tempo real. Sempre que se vê as horas no filme, elas coincidem com a hora do dia em que estamos a ver essa imagem. 2h22 em The Clock são 2h22 na sala do Museu Berardo onde o filme está a ser exibido. Essa é a “magia” da peça, diz o artista. Apesar de várias pessoas lhe terem dito que tinham visto The Clock na sua totalidade ou quase, Marclay diz que não encoraja isso. “A decisão é vossa, se querem ver oito minutos ou duas horas. A vida do espectador torna-se parte da experiência porque ele tem de ir buscar os filhos à escola, ou ir à casa de banho.”
The Clock não tem um início nem um fim. Não existe uma hora ideal para assistir. O Museu Berardo vai proporcionar algumas sessões contínuas de 24 horas (na quinta-feira, a partir das 22h) e de 33 horas (este fim-de-semana e nos fins-de-semana de 28 de Março e 18 de Abril), que permitirão, a quem quiser, vê-lo inteiramente. Marclay recomenda que se vá e volte em diferentes alturas do dia, porque os segmentos e a representação do tempo são diferentes conforme a hora.
“Meio-dia e meia-noite costumam ser as horas mais procuradas pelo público porque são intensas, sente-se um crescendo. Eu tinha imenso material à disposição relacionado com a meia-noite. Das três às cinco da manhã é capaz de ser mais interessante porque é o período que menos pessoas viram.”
Marclay também gosta da ideia de a correspondência entre o que se vê no filme e a experiência dos espectadores ser mais intensa nessas horas da madrugada porque “estamos a ver alguém a bocejar às três da manhã e é muito provável que a essa hora também estejamos a bocejar de sono”. A diferença entre a realidade e o mundo imaginário do filme torna-se menos nítida.
Christian Marclay recusa a ideia de que é um videasta. A sua primeira exposição de trabalhos feitos depois de The Clock pode ser vista actualmente em Londres, na galeria White Cube, perto da Tate Modern. Uma das maiores impressões que ela deixa é de que é uma reacção a, ou mesmo contra, The Clock: a reafirmação de Marclay como um artista multidisciplinar (tudo foi convocado: performance, pintura, vídeo, instalação, colagem, som) e, se existe algum tema, é o da ressaca, literal e metaforicamente (uma das enormes salas brancas da White Cube tem uma estante ao longo das quatro paredes só com copos de cerveja de todos os feitios).
Uma das salas contém um contentor com uma prensa de discos vinis, lembrando que Marclay já foi um DJ nas primeiras décadas da sua carreira artística – não um artista e um DJ, mas um artista que usou o sample e a remistura, a manipulação e a transformação de discos, e com isso fez obra. The Clock é produto dessa experiência – a obra de um DJ visual, por assim dizer, mais do que de alguém que vem de uma tradição cinematográfica, o que talvez explique por que é que críticos e historiadores de cinema tendem a ser os mais cépticos perante The Clock.
Marclay reconhece que The Clock é, já, uma peça algo anacrónica. A selecção de filmes “citados” foi feita a partir dos títulos disponíveis em lojas de vídeo londrinas entre 2007 e 2010 e visionados por nada menos do que sete assistentes de pesquisa. “Se fosse feito hoje, teríamos trabalhado de outra forma, se calhar teríamos usado downloads de filmes.”
Os relógios que aparecem o tempo todo em The Clock também são uma tecnologia ultrapassada, de certo modo, à medida que passámos a ver as horas nos nossos telemóveis, iPhones e ecrãs de computador. “E horas mais precisas. Você sabe a que horas chegou um email ou a que horas recebeu uma chamada. Tudo tem um tempo exacto, de uma forma que não existia antes”, nota Marclay. “Antes, quando ainda mandávamos cartas pelo correio, o tempo de espera entre uma acção e o seu resultado era maior. Agora esperamos que a resposta a um email seja imediata.”
Existem alguns clipes com iPhones em The Clock, garante Marclay. “Mas não são tão cinematográficos quanto um bom tique-taque”, diz, fazendo estalidos com a língua. Além disso, não se pode dizer a alguém: “Oh, o meu iPhone está atrasado.” “Pode dizer isso sobre o seu relógio de pulso.” Christian Marclay ainda usa um. “É uma espécie de reflexo. Sinto-me nu sem ele. Tenho-o usado a vida toda.”
The Clock não pode ser visto de outra forma, a não ser ao vivo. Marclay não está a planear nenhuma edição em DVD, por exemplo. “Não iria caber num DVD”, ri-se. “Chegámos a pensar criar uma app onde se pudesse ver as horas tal como no filme. Mas a dimensão sonora ficaria comprometida”, diz o artista, sublinhando que The Clock “tanto é uma peça sonora como uma obra visual”. “Além disso, ia criar um problema em termos de direitos de autor porque a partir do momento em que fizesse uma app passaria a ser uma obra comercial. É o que é. A melhor maneira de ver cinema é numa sala escura com outras pessoas.” Palavra de DJ.
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