A filha, Maria da Conceição, de 65 anos, ri-se à gargalhada. O filho, António, de 80, também. Todos riem na sala de Manuel Rafael dos Santos. E ele fica satisfeitíssimo por continuar a animar as pessoas assim. Sempre foi um homem de festa. Tem 109, sabe disso. Porventura, às vezes esquece-se.
Na sua “mocidade”, havia bailes “todos os 15 dias”, ora na casa de um, ora na casa de outro. Tocava harmónio, bebia vinho com “a rapaziada” — “era até cair”, conta (o filho acha que ele exagera nesta parte), até que um dia decidiu que não beberia mais, porque os copos já não lhe davam só alegria, também o punham maldisposto.
E já que se fala de festa: “Que é feito da rapaziada agora?” Já não dançam? Já não bebem? “Não dou notícia de brincarem. O pessoal está diferente como a noite do dia.” E os velhos amigos, onde estão? A filha diz que ele nem sempre tem noção de que não viveram tanto tempo quanto ele, morreram. Ele tem outra teoria. “Querem lá saber de mim...” Pois se não aparecem.
Não é de alimentar tristezas. Também já não quer saber deles.
Manuel foi um dos quatro centenários que o PÚBLICO visitou nos últimos dias, em diferentes pontos do país. Aquele que é o grupo etário que regista maior crescimento demográfico na maioria dos países desenvolvidos suscita a curiosidade do público em geral e da comunidade científica. “Sabemos de alguns factores que afectam a longevidade humana. São factores bem conhecidos dos médicos, como o exercício, a alimentação, etc. No entanto, os centenários são particularmente interessantes porque muitos não têm um estilo de vida saudável. Ou seja, factores genéticos (e alguma sorte) são importantes”, diz o geneticista português João Pedro de Magalhães, investigador do Institute of Integrative Biology, na Universidade de Liverpool.
Enquanto em todo o mundo há cientistas, como João Pedro Magalhães, a estudar o envelhecimento, o que dizem os centenários? Como se relacionam eles com isto de viver tanto tempo?
Rafael Manuel dos Santos nasceu a 23 de Dezembro de 1905, era rei D. Carlos I, na aldeia de Roda, freguesia de Asseiceira, concelho de Tomar. Ainda não tinha nove anos quando a I Grande Guerra estalou, tinha 26 quando Salazar foi empossado no cargo de presidente do Ministério e 68 quando se deu o 25 de Abril. Já viveu tanto que o normal, diz, seria que o seu tempo já tivesse acabado. “Eu não faço milagres. Quem faz milagres é Deus. Ele é que sabe.”
Em Dezembro, foi notícia nos jornais. “Se não é o homem mais velho de Portugal é certamente um dos mais velhos”, disse à Lusa Carlos Rodrigues, o presidente da junta da Asseiceira, que lhe organizou uma festa de anos. Na semana passada, encontrámo-lo na casa para onde foi há 80 anos quando por volta dos 27 ou 28 deixou de viver com os pais e se casou. Fica numa pequena aldeia vizinha de Roda, alguns minutos de carro.
Aos 87, enviuvou, e desde então vive sozinho. Aos 100 ainda andava com uma enxada na terra, hoje já só vai apanhar umas laranjas. Veste-se, cuida da sua higiene, às vezes caminha até ao café que fica no fim da estrada que atravessa a aldeia — “Não é pelo café, é mais para passear”, explica. Movimenta-se sem bengala, aliás, irrita-se (sempre com um sorriso disfarçado) quando se fala de bengalas. “Bengala?! Deram-me uma, está ali encostada à parede. Quero lá usar bengala! Um homem com bengala, só tendo 100 anos!”
As refeições são na casa da filha, que mora perto. Só tem dois dentes mas não admite que lhe cortem as couves do cozido à portuguesa aos bocados como se não fosse capaz de as mastigar. E quando, há tempos, Maria da Conceição teve a ideia de o levar a um centro de dia, para ver se ele gostava — pois se está sempre a queixar-se da pacatez da aldeia, “ó menina, isto está tudo morto, é de mais” —, perdeu a paciência. Zangou-se. Recusa estar num sítio de velhos. Antes o tédio.
A memória do tempo
Recentemente, esteve nesta sala “uma cientista de Lisboa” que lhe fez uns exames e disse que ele tinha “um metabolismo de 80 anos”, diz a filha orgulhosa. O que fez para isso? Ele não sabe dizer. Fumou, ainda que pouco. Come de tudo. A filha acredita que o segredo foi “ralar-se pouco”.
“Temos de talhar a vida com calma”, diz ele.
Não pára de conversar. Não são as grandes guerras (conseguiu livrar-se de tropa), ou o Salazar (“parece que era de gancho”) ou o 25 de Abril que lhe interessam contar. E, sobre o tempo presente, a grande perplexidade de Manuel é mesmo esta: “Não há divertimento! Não há divertimento!” Do resto, dos dias que correm, não tem muita informação — não tem problemas de saúde, não toma medicamentos, mas a audição é fraca (“estou mouco como o catano”), por isso, apesar de a televisão estar muitas vezes ligada, não a ouve. Aquilo de que gosta de falar pertence a outro tempo: ir à escola para aprender a ler e a escrever com o professor Oliveira, contra quem a turma se virou um dia por ele querer bater num; o trabalho nas terras do pai; os bailes e as raparigas “que só queriam namoro”; o harmónio que deixou de tocar quando se casou; aquela altura em que foi para o Entroncamento fazer serviços de carpintaria para CP... Era jovem, muito jovem.
O fenómeno é conhecido. “Há uma quantidade desproporcional de memórias entre aproximadamente os 10 e os 30 anos”, explica Constança Paúl, catedrática do Instituto de Ciência Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto (ICBAS/UP), e presidente da divisão de Gerontologia Aplicada da Associação Internacional de Psicologia Aplicada. Afinal, prossegue, é nessa janela temporal que se concentram “as tarefas fundamentais relativas à educação, o casamento, o trabalho”, tarefas que acabam por constituir o “quadro de referência cognitivo-afectiva a partir do qual a pessoa orienta a sua vida, a relação com os outros, etc”.
Por outro lado, é conhecido que “alguns tipos de memória” entram em declínio com a idade — por exemplo, declina menos a “memória semântica” (factos, conceitos, vocabulário sem referência espácio-temporal) e mais a chamada “memória episódica” (acontecimentos com referência ao espaço e ao tempo). Há várias explicações para o declínio, “nomeadamente de índole neurobiológica”: dificuldades de atenção, de velocidade de processamento de informação; problemas de visão e audição, que têm implicações no desempenho mnésico; patologias.
Constança Paúl faz parte da equipa do PT100 — Estudo dos Centenários do Porto, um projecto desenvolvido pelo ICBAS/UP que envolveu, desde 2013, um total de 140 centenários. Já iremos a alguns dos resultados, relatados ao PÚBLICO em resposta por email, por três investigadores do PT100. Mas ainda a propósito da relação destas pessoas com o passado e o presente, Óscar Ribeiro, coordenador do estudo, acrescenta o papel do “futuro”: “Numa das entrevistas que fiz com uma das colaboradoras do projecto [101 anos], precisamente um dos casos que consideramos de ‘sucesso’ (níveis elevados de funcionamento cognitivo, funcional e de saúde), um dos aspectos que mais nos despertaram curiosidade foi o modo como o seu discurso tinha transversalmente orientação de futuro — seja no modo como descrevia tudo o que ainda tinha que fazer, como a nossa presença estava a alterar os seus planos para aquela tarde, seja no modo como se despediu com um até para o ano, fazendo questão de nos receber por essa altura.”
O investigador do ICBAS/UP admite que “esta orientação para o futuro pode ser uma variável psicológica de potencial influência na longevidade excepcional, nomeadamente na dita ‘bem sucedida’”. Algo a estudar proximamente, acrescenta.
"Que Deus vos dê saúde"
Benvinda Marques, 109 anos, não parece ter grandes planos para o futuro. Vive no lar da Santa Casa da Misericórdia de Alfeizerão, concelho de Alcobaça, desde 2012. Recorda os tempos em que teve uma mercearia em Lisboa, “à sociedade com um cunhado”, e diz: “Vendia de tudo um pouco, do arroz à massa, ao grão, ao feijão, mas havia muitas caloteiras. E eu não sabia assentar... São vidas que se passam.”
Helena Neto, directora técnica da instituição, corrige-a: “Ainda está a passar.” Mas ela encolhe os ombros. “Já passei o que tinha a passar.”
Encontramo-la pelas 11h30 da manhã na luminosa sala de convívio do lar, sentada numa poltrona com rodas, para que a possam mover mais facilmente. Já não é capaz de caminhar. Diz que tem “as pernas trôpegas dos joelhos para baixo” — “São coisas da vida que acontecem.” Tem colocados uns óculos escuros — não vê, mas a luz que entra pelas janelas incomoda-a. Ouve muito mal. A directora repete-lhe cada pergunta, várias vezes, ao ouvido, o esquerdo. Há uma para a qual Benvinda tem a resposta na ponta da língua: segredos para se viver muito tempo? “Trabalhar muito e comer pouco.”
E a vida como foi? Benvinda Marques resume desta forma: “Foi guardar gado, roçar mato e tratar da terra.” Como se perceberá, foi mais do que isso. Nasceu a 15 de Fevereiro de 1906 em Monte Frio, concelho de Arganil. Foi jovem para Lisboa, onde teve a tal mercearia, e, depois de ficar viúva, partiu para Moçambique, não sabe precisar em que altura. Diz apenas que o seu trabalho era cuidar dos netos. Gostou. Hoje, são precisamente os netos e nora as pessoas que lhe restam.
Costumam ir todos de Lisboa, “que é muito longe”, para visitá-la, faz questão de sublinhar. Estiveram juntos no último aniversário. Pena já não conseguir enxergá-los.
Benvinda cansa-se. Tentar perceber o que os outros lhe dizem aos gritos agasta-a. “Que Deus vos dê saúde para viver a vida da melhor maneira.” É assim que sabemos que a entrevista acabou. Vai agora almoçar. Pelas 16h lanchará, pelas 19h30 irá para cama. Os dias sucedem-se com as suas rotinas (e, tantas vezes, as suas dores), mas os centenários, em geral, “enfrentam com bonomia o tempo contínuo que está chegar ao fim”, nas palavras de Constança Paúl.
Segundo os últimos números de Instituto Nacional de Estatística (actualizados em Junho), haveria, em 2013, cerca de 3400 centenários em Portugal — mais 64% do que dois anos antes. Apenas 30% são homens. A esperança de vida das mulheres é maior.
A maioria dos 140 entrevistados para o PT100 (apenas 15 homens) têm níveis de escolaridade baixos (42% são analfabetos). Quase metade (45%) estão dependentes em pelo menos cinco actividades básicas da vida diária como vestir-se ou andar; e mais de metade apresentam “défices cognitivos em múltiplos domínios” compatíveis com “a presença de uma perturbação neurocognitiva”, diz Óscar Ribeiro.
Mais alguns dados: 64,3% recebem entre 250 euros e 500 euros de reforma; 57,9% vivem na comunidade, sobretudo com os filhos e os restantes em instituições. A maioria atribui a sua longevidade a Deus. O trabalho — no qual muitos se iniciaram logo em crianças, explica Lia Araújo, gerontóloga, entrevistadora do estudo PT100 — surge em segundo lugar.
Perdas várias
Emília Correia, 107 anos, é das que relatam uma vida dura de trabalho no campo (e não só). Nascida no Colmeal da Torre, concelho de Belmonte, a 6 de Dezembro de 1907, ficou órfã muito cedo e enviuvou aos 37, quando estava grávida e já tinha mais três filhos para criar. Vivia-se a II Guerra Mundial, passava-se fome em Portugal e ela passou, conta Ana Paula Martins, neta e também directora técnica da Fundação Mário da Cunha Brito, em São Pedro de Alva (Penacova), onde Emília vive desde 2002. Acredita que foi por se ter habituado a comer pouco que ainda hoje a avó come porções especialmente pequenas.
“Umas vezes fome, outras barriga cheia.” É a síntese que Emília faz da sua vida de 107 anos.
Sofreu perdas várias — desde logo de três dos quatro filhos. Mas disso, não fala. Ana Paula confessa que chegou a estranhar “uma espécie de frieza” da avó perante certas tragédias — “hoje chamam-lhe resiliência”. Mesmo agora, apesar do aspecto frágil, e do andarilho que a ajuda a mover as pernas curvadas, Emília revela-se assertiva. “Pois claro que rezo todos os dias”, responde quando lhe perguntamos sobre o assunto.
Por acaso, hoje deixou o terço na gaveta, mas vai benzer-se uma e outra vez quando o fotógrafo começar a disparar para o retrato que sairá no jornal. Que fique registada a sua fé. Já não vai à igreja. Mas não falta à missa celebrada no refeitório por um padre que vai ao lar. E se alguém ocupa a cadeira que está mais perto do altar, é sabido que haverá uma cena.
Não chegámos a perguntar a Delfina de Jesus, a quarta entrevista programada para esta reportagem, como são os seus dias. Encontramos a centenária num dia “menos bom”, diz Elisa Batista, directora do Lar Residencial Viscondessa de São Caetano, em Viseu, onde ela vive desde 2003. A 31 de Dezembro, foi lá a televisão. Delfina celebrava os 100 anos e os colegas do lar (e de outros lares de Viseu), que fazem parte de um coro chamado A Voz do Rock, fizeram-lhe uma festa com versões de temas rock. “Estava bem-disposta”, conta Elisa Batista.
No dia da visita do PÚBLICO, contudo, ainda se endireita para o retrato. Mas à primeira pergunta fecha os olhos. Tem dores nas pernas, os pés inchados.
Platão considerava o envelhecimento como parte da continuidade da vida de jovens e adultos. “Os prazeres do espírito vão progressivamente substituindo os prazeres físicos, como se de uma libertação se tratasse.” Já Aristóteles referia-se à última etapa da vida como sendo a da senilidade, a deterioração das capacidades. “Na heterogeneidade do envelhecimento, encontraremos sempre exemplos para ilustrar ambas as perspectivas”, diz Constança Paúl.
Mas os cientistas não desistem de procurar formas de manipular o processo. Por exemplo, “já se consegue prolongar a longevidade de ratinhos em quase 50% modificando apenas um gene”, nota João Pedro de Magalhães. “Aliás, não só esses ratinhos vivem mais, como têm uma menor incidência de doenças ligadas ao envelhecimento — como o cancro — e têm um declínio fisiológico mais lento.” O objectivo agora é “desenvolver medicamentos que, através destes genes, consigam abrandar o envelhecimento humano”.
Nem tão cedo deixaremos de morrer de causas naturais, mas o geneticista acredita que nos próximos cinco ou 10 anos já existam medicamentos para “abrandar (um pouco) o envelhecimento das pessoas”.
Comentários