Tempo a menos e tempo a mais

Eça de Queiroz tratou de quase tudo. Também de jornais. Dizia que para “vir no jornal é que os homens se arruínam, e as mulheres se desonram, e os políticos desmantelam a boa ordem do Estado”. É assim nestes atribulados tempos.

Quando a coisa aperta, o jornal é detestado. Faz política partidária. Entra na campanha eleitoral. Houve aí um político que tinha por dia feliz aquele em que, folheando o jornal, este o omitia. Deixava-o em paz.

No Ministério Público, trabalhei dezenas de anos. Não me sobrava tempo para mais nada. Idas e vindas para e da Procuradoria da República. Mais de quatro dezenas de anos. Divagações algo saudosistas, convocadas pelo PÚBLICO que, na celebração dos 25 anos, chamou o Tempo ao debate.

Da minha falta de tempo enquanto magistrado, caí agora no excesso de tempo. Tempo a mais. Experimentei a certeza de que o saudável vem mais da escassez do tempo, não do seu excesso. Os mais velhos ensinam que "a ociosidade é a mãe de todos os vícios". E maleitas de todo o género. Antepassada de depressões. Sentimentos de inutilidade social. Vazio intelectual e moral. Muito mais.

Leio o PÚBLICO há muitos anos. No papel, claro. Dá aquela sensação palpável de contacto físico com o jornal. Do PÚBLICO digital, à moda antiga, imprimo o que me interessa e arquivo. Sei lá se, um dia, vou precisar e não encontro!

Com o PÚBLICO me irritei muitas vezes. Falta de rigor. Escrevem sobre o que não sabem. Ou sabem de ouvir dizer. Por alto. Juízos aligeirados, sobretudo nas matérias que suponho dominar, sobre a Justiça e sistema judiciário. Nos tempos de falta de tempo, muito raramente, o PÚBLICO fazia-me o “jeito”! Publicava um texto que me tinha exigido dias e dias a escrevinhar. Cortar! Emendar! Esperava semanas. Lá vinha o artigo, uma carta ao director, com emendas do jornal. Mais cortes a corrigir a falta de síntese. Erros, imperfeições, a substituição da palavrinha. Insipiência. Envaidecido com o escrito no jornal. A razão de Eça de Queiroz. À minha pequenina maneira era assim. Apesar da suposta/imposta discrição de magistrado, que nunca foi das minhas grandes virtudes.

Agora com estatuto de homem com tempo a mais,  uma jornalista do PÚBLICO desafiou-me a escrever mensalmente um texto para o PÚBLICO online. Esperava, disse, que escrevesse com o “olhar diferente que lhe conheço” sobre a Justiça e arredores. Aceitei prontamente. Tinha ali um afazer. Foi há dois anos e meio.

Tempo de sobra e experiência fazem fluir muita coisa, até as ideias. A facilidade de as exprimir e transmitir. Quando as há. Em pouco tempo, escrevia todas as semanas. Sobre Justiça e outros temas. Na convicção de que escrevinhava alguma coisa/ideias claras e, quem sabe?, com alguma utilidade. Já não me emendam a escrita, cortam aqui e ali, alteram os títulos dos artigos que escrevo. Estatuto!

O PÚBLICO passou a ser mais o meu jornal. Suponho-me um dos da “casa”. As faltas de rigor, descuidos, parcialidades, obsessões temáticas mexem mais comigo. Do jornal exigimos qualidade, pluralismo, isenção e independência. Aversão a bisbilhotices. Tratamento cuidado e aprofundado de todas as matérias que versa. De que este texto não é modelo nenhum. Destina-se só a saudar o PÚBLICO nos seus 25 anos.

Procurador-geral adjunto

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