Memórias de Família

Memórias de Família

A lembrança de uma velha senhora francesa que lhe serviu café sob fogo

José Ferreira sofreu com os gases inalados na frente de batalha

Tinha José Ferreira 20 anos quando foi considerado “apto para o serviço”. Corria 1915 e ele passava ainda os seus dias a calçar a aldeia de Lomba, concelho de Paredes (distrito do Porto). Era tamanqueiro de profissão, um calçado de madeira que era comum entre os mais pobres, e ainda estava longe de saber que um dia lhe iriam atribuir o número 321 e fazê-lo embarcar para muito longe dali. Quando é chamado para a instrução ainda tem tempo de pedir uns dias de licença para se casar, a 2 de março de 1917, antes de partir para Brest, a povoação francesa que era para muitos a primeira vez que viam França, a 22 de Julho de 1917.

No ano seguinte haveria de ser um dos que participaria naquela que ficou conhecida como a batalha de La Lys. É engraçado que ao neto, Afonso da Silva Maia, pouco tenha contado sobre o que viveu nesse combate que aconteceu a 9 de Abril de 1918. Marcou-o mais a história de uma figura que encontrou quando foram obrigados a fugir da frente, “depois de resistirem o mais que podiam”. Para trás tinham ficado muitos portugueses feitos mortos ou prisioneiros. Debaixo de fogo ele e um camarada, durante uma curta acalmia nos bombardeamentos inimigos, conseguiram abrigo numa casa quase em total ruína, pensando que se encontrava desabitada. Lá dentro consta que uma velha senhora francesa que, segundo o soldado contou ao neto, lhes ofereceu café e sorriu. A senhora tinha preferido ficar ali a partir com os outros habitantes, por não conseguir nem andar nem deixar a sua casa, contou o neto à historiadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, Margarida Portela.

Quando ficam novamente sob fogo – escutam-se bombardeamentos e zumbidos dos tiros de metralhadora – os militares portugueses decidem sair da habitação arruinada. José Ferreira contava sempre que tentaram convencer a velha senhora a fugir com eles mas que ela recusou, convencendo-os eles a serem rápidos a escapar do local. Ainda terá ficado a vê-los partir, a velha senhora, de uma janela, e no mesmo instante em que se afastam, a casa é bombardeada e tudo é reduzido a pó. Anos depois José Ferreira contava que considerava aquela velha senhora o seu “anjo da guarda”.

O então soldado do Corpo Expedicionário Português desembarcará em Lisboa a 3 de Agosto de 1918. Voltará a Lomba, terá oito filhos com a mulher, Olinda Torres Maia, com quem mal tinha tido tempo de estar casado. O neto conta que no resto da sua vida, morre em 1960 com um tumor pulmonar, terá tido sequelas relacionadas com os gases inalados na frente de batalha. Voltará a passar os seus dias a fabricar tamancos.
 

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