Memórias de Família

Memórias de Família

A mãe de Yolanda esperou uma década pelo seu “inimigo”

Quando se conheceram, o alemão Max tinha 17 anos, a mãe de Yolanda (a primeira criança à esquerda) tinha 10 anos

Naquele tempo parecia que a ilha do Faial era o centro do mundo e, de alguma forma, era. À época, as comunicações, feitas sobretudo por telégrafo, circulavam através de enormes cabos debaixo do mar mas que para atravessarem o oceano entre a Europa e a América precisavam de ajuda a meio do Atlântico. Para fazer funcionar este enorme vaivém de mensagens os grandes do mundo instalaram-se então na ilha açoreana do Faial.

Habituada a ser porto de marinheiros, agora chegavam técnicos de cabotelegrafia de todo o mundo. Primeiro instalou-se a inglesa Telegraph Construction and Maintenance Company, mais tarde  a americana Commercial Cable Company e a alemã Deutsch-Atlantische Telegraphengesellschaft”. Foram para o Faial técnicos vindos de Inglalerra, Alemanha, Estados Unidos, mas também de Itália, França, Canadá.

As famílias tradicionais da cidade da Horta apreciavam a vinda destes estrangeiros que se instalavam na ilha e que lhes pareciam respeitadores e de bom trato, e abriam-lhes as portas das suas casa, em cházinhos e bolinhos, lanches, piquenique e serões. Eles traziam animação e novos costumes, a empresa alemã, por exemplo, pedia aos seus funcionários que soubessem tocar um instrumento e eles até formaram uma banda, a Horta Band, os ingleses trouxeram consigo o ténis, o crocket, o futebol, as corridas de barcos a remos, as garden parties.

O jovem alemão Max Corsépius havia de chegar numa dessas levas, empurrado por uma mãe que pediu ao Estado alemão um emprego para o mais velho de quatro filhos, depois de o pai ter morrido. O emprego seria “numa ilha no Atlântico”. É já no Faial que o jovem Max surge, numa fotografia, muito hirto, com o boné da companhia, ao lado das crianças da família Goulart Silveira de Medeiros. Ele tinha 17, uma das menina ao seu lado, Hortênsia Medeiros, tinha 10. Brincavam todos. À medida que Yolanda Corsépius vai mostrando as fotografias daquela que é a origem da sua família é concisa a legendá-las: “a menina vai crescendo, o menino está sozinho, era bonito, tocava violino...”.

A Primeira Guerra Mundial apanha açoreanos e estrangeiros numa vida cultural intensa e um cosmopolitanismo que não se encontrava no continente, diz Yolanda, que tem 82 anos e vive em Lisboa. O conflito já tinha começado há quase dois anos, em 1914, mas a neutralidade de Portugal parecia deixar a guerra ao largo, tudo continuava nesta serena animação.

Num acto que precedeu a entrada de Portugal na guerra, a Inglaterra insta o seu tradicional aliado a “requisitar” todos os barcos alemães nos seus portos, na metrópole  e colónias. Assim fez Portugal, em 1916, com mais de 70 navios, em Março de 1916. Os tripulantes alemães foram presos, relembra Yolanda.

Daí em diante todos os alemães serão vistos como "inimigos". Alguma imprensa portuguesa da altura dá conta de um anti-germanismo que também ajuda a criar. Uma capa do Século Ilustrado mostra a caricatura destes “teutónicos”, aos pés têm copos de cerveja, mostra Yolanda num dossier com recortes e postais da altura. Os alemães entre os 16 e aos 45 anos seriam obrigatoriamente detidos. Escreve o jornal O Século que só assim “fica o país livre dos seus mais ferozes inimigo… Capazes das façanhas mais baixas e dos crimes mais tremendos”, cita um artigo do Expresso de 17 de Novembro de 2001, intitulado "O lado desconhecido da primeira Guerra".

O jovem Max Corsépius há-de ser um destes alemães que passa a ser visto como “súbdito inimigo”. Ele e outros compatriotas são, primeiro, obrigados a permanecerem no bairro do Faial  onde estavam instalados os funcionários da sua nacionalidade, depois são transferidos para a ilha Terceira, onde ficarão  no chamado Depósito de Concentrados Alemães, no castelo de São João Baptista, em Angra do Heroísmo. A um tempo chegarão a estar naquele espaço exíguo 700 alemães, mulheres e crianças incluídas, descreve no seu pequeno livro sobre este campo Yolanda, que tem nacionalidade portuguesa e alemã. Um campo igual será criado no continente para aprisionar os alemães, ficarão no forte de Peniche, refere o mesmo artigo do Expresso.

E Hortênsia? “A menina ficou no Faial, a chorar, mas muito activa, ficou a aprender alemão, a arte de desenho a carvão e o bordado e rendas tradicionais dos Açores”, e continuaram a escrever-se, continua Yolanda. Sobreviveu um postal dessa troca entre “prometidos”, que a filha guardou: “7/9/1916. Meu amor! A nossa chegada foi tal e qual como vês nesta vista. Podemos sair no castelo só para fazer passeios no Monte Brasil, os quais me fazem tão triste sem ti. Uma infinita saudade do teu, sempre teu, Max”.

A companhia de cabos submarinos alemã recomeçará a sua actividade em 1926. Desde 1916 que estavam separados. “Ela esperou dez anos por ele”. No mês seguinte à sua chegada casaram-se, ela já tinha 26 anos, ele 32, continua Yolanda. Da união nascerão três meninos de seguida e quando vem a menina, de tão ansiada, levará o nome de uma princesa italiana, Yolanda.

Os pais hão-de ficar juntos apenas dez anos, a mãe adoece, dela a filha reteve pouco mais do “um sorriso” e uma última prenda, “esta bonequinha é para a menina”, disse-lhe, já doente, será enviada para Lisboa, onde acabará por morrer em 1936, quando Yolanda tinha quatro anos.

Mais tarde, o pai de Yolanda viajará para a Alemanha com os três filhos mais crescidos, mas ela, por ser ainda pequena, tinha sete anos, é deixada com a avó materna. Corria o mês de Maio de 1939. Brevemente regressariam.

Em Setembro quiseram voltar à Horta mas estala entretanto a II Guerra Mundial e o pai e os três irmãos são impedidos de sair da Alemanha. Esteve um ano sem ter notícias da família. Todos os alemães foram-se embora, mais uma vez, ficou Yolanda. “A sua neta como tem 11 anos e não tem mais ninguém pode ficar”, disseram as autoridades portuguesas à sua avô materna, que foi quem a criou na Horta.

Já em plena Segunda Guerra Mundial, Yolanda lembra-se de o Faial continua a ser um sítio por onde o mundo passava. Lembra-se de haver espiões que ficavam hospedados na cidade, um deles, inglês, chegou a ser seu amigo, chamava-lhe carinhosamente Uncle Joe.

Com a morte da avó, aos 23 anos, vai tentar ser alemã na Alemanha. Esteve 14 meses mas não se adaptou. “O meu pai era um estranho para mim”. Haveria depois de ser enfermeira, de tirar a sua especialização em enfermagem pediátrica nos Estados Unidos e de correr mundo nas suas viagens.

Faz questão de sublinhar que a sua é uma história banal na Horta, onde houve dezenas destes casamentos mistos, resultado da época dourada dos cabos submarinos na Horta, ela contabilizou-os a todos e deixou-os registados em pequenos livros que tem deixado para memória futura.

A curiosidade pelo mundo que vinha até ela naquela ilha ficou. “Em nenhuma terra se conviveu tanto”. Durante a II Guerra Mundial lembra-se de ser pequena e abordar os estrangeiros que aportavam na Horta, para lhes fazer perguntas, cautelosa no início, com medo de ser encarada como uma pequena inimiga: “I'm german, do you mind if I talk to you?”, e os estrangeiros respondiam, afáveis, “how interesting, sit down”. E ela contava-lhes a sua vida, como fez com o PÚBLICO.
 

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