Dizem que as crianças de hoje têm muita facilidade em lidar com as tecnologias, mas Isabel Braz lembra-se de, desde muito pequenina, saber exactamente como pôr a funcionar aquele gravador de bobines, de o rebobinar para voltar a ouvir o bisavô António Braz a falar das suas histórias passadas na Primeira Guerra Mundial, em Angola e depois em França. “Os miúdos gostam de ouvir histórias”.
Nunca as ouviu de viva voz, quando o bisavô morreu, aos 92 anos, tinha ela 9 anos, mas aquelas histórias gravadas ficaram-lhe na cabeça. É assim que, quando Isabel Braz, licenciada em Gestão de Empresas, decidiu finalmente escrever um livro sobre a história do bisavô, tudo lhe saiu, naturalmente, na primeira pessoa, como se pudesse ter sido ele escrevê-lo, apesar lhe ter sido difícil “ter de se colocar no papel de um homem, militar, a viver uma experiência de guerra tão longínqua”, contou ao PÚBLICO.
Assim começa o livro as Memórias Esquecidas-A vida do capitão António Braz (Chiado Editora) que deverá ser lançado em Setembro: “O que eu mais temia concretizou-se praticamente três anos depois de ter iniciado a Grande Guerra. A ordem para mobilizar para França estava escrita nas minhas mãos (...) Parti de Elvas no dia 7 de Agosto de 1917”, escreve a bisneta, recriando os acontecimentos vividos por ele.
Quando terminou o livro, é como se Isabel Braz tivesse finalmente conseguido fazer a vontade ao bisavô que queria muito que alguém da família lhe escrevesse a vida, com princípio, meio e fim. Ele deixou muita coisa escrita em apontamentos, cartas, portais, mas achava-se sobretudo homem de factos, não se via capaz de contar uma história. O que deixou escrito em forma de livro, em 1936, fê-lo porque sentiu, naquele momento, que se impunha “repor a verdade”. O livro Como os Prisioneiros Portugueses foram Tratados na Alemanha, editado em 1935 pela Tipografia Popular de Elvas, é feito em resposta a Aquilino Ribeiro. Admirador do escritor, estava um dia a ler-lhe um escrito intitulado Alemanha Ensanguentada, sobre as impressões do escritor beirão durante uma viagem na Alemanha, no pós Primeira Guerra Mundial, quando, de repente, lê o testemunho de um alemão que tinha sido intérprete no campo de prisioneiros onde ele tinha estado, Breesen.
O alemão a quem Aquilino dava voz dava “a entender que entre nós havia rixas e desarmonias, o que não são factos verdadeiros. As horas tristes que passámos em cativeiro só nos permitiram ter sentimentos de solidariedade, estabelecendo elos de amizade que se vincularam pela vida fora. Quanto muito havia uma má disposição natural entre homens que tinham fome. Posso efectivamente testemunhar que a fome dá mau estar psicológico e uma irritabilidade difícil de disfarçar.”
Um dos documentos que deixou e que a família guardou documenta essa experiência no campo alemão, dando conta de como era meticuloso o capitão Braz. Criou um “gráfico da fome” onde diariamente foi apontando a sua perda de peso. O seu peso antes de ser preso era de 86 quilos. “A primeira vez que me pesei, no dia 10 de Julho, tinha 72 quilos, menos 14 quilos que o meu peso normal. Pesei-me de novo 16 dias depois e já só pesava 68 quilos.”
Como homem de factos quis dar a conhecer o que passava, ele que nas cartas que enviava para Portugal nem podia dizer abertamente à família que passava fome, por causa da censura alemã nos campos. Mandava fotos suas e a mulher, Adelaide, lá percebeu que ele vinha emagrecendo de imagem para imagem, conta Isabel Braz, passando então a eviar comida nas encomendas que mandava para a Alemanha. “Tendo recebido umas encomendas de casa, aumentei 500 gramas. Regressando à alimentação oficial, um mês depois voltei a perder um quilo”.
Em vida, acabou por ver reposta “a verdade” sobre a realidade dos prisioneiros portugueses nos campos alemães pela pena do próprio Aquilino Ribeiro. Em Abóboras no Telhado, o escritor acaba por contar a versão dos presos portugueses, das condições difíceis lá vividas. Isabel Braz termina assim o livro que escreve como se fosse o bisavô: “Fiquei satisfeito com o que li e tranquilo por se fazer justiça. Aquilino era um homem de bem e não podia deixar em branco tamanha imprecisão.” O escritor repôs a verdade em vida, a bisneta contou-lhe a história.
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