Quem diria que os dotes de carpintaria que António Pereira dos Santos aprenderia na sua terra, no lugar de Amoínha Nova, concelho de Valpaços, lhe viriam a ser de valia em tempo de guerra. O percurso deste 1º cabo, nascido a 1895, contado pelo seu neto, Gil Manuel Morgado dos Santos, e bisneto, Gil Filipe Calvão Santos, foi feito de percalços. Esteve na famosa batalha de La Lys, sobreviveu, mas foi lá que pelas 12 horas do dia 9 de Abril de 1918, começou um longo episódio da sua vida em guerra – ali foi capturado pelas forças alemãs. Durante a guerra, mais de 7 mil portugueses foram feitos prisioneiros.
Ao todo, e ao longo de mais de um ano, teve passagem por cinco locais de aprisionamento. Primeiro foi transportado para a prisão de Lille, em seguida para Bruxelas, na Bélgica. A 16 de Abril chegou ao campo de prisioneiros de Friedrichsfeld, na região do Rhein, Alemanha; no dia 9 de Maio foi transferido para o campo de Ságan (actual Azagan, na Polónia), onde permaneceu dois meses. Seguiu então para o campo de Heilsberg (actual Lidzbark Warminski, na Polónia), onde ficou apenas quatro dias. A 15 de Julho foi levado para o campo de Stallupönen (actual Nesterov, na Rússia).
Havia de ser neste último campo que teria o seu contacto mais marcante com o “inimigo”. Cerca de três semanas depois da sua chegada, um professor procurou no campo alguém que lhe pudesse fazer uns trabalhos de carpintaria. A sorte calhou ao militar português. A requisição era apenas por alguns dias, mas o professor, a mãe e a irmã – com quem este vivia – simpatizaram com António Pereira dos Santos e, por isso, solicitaram ao oficial responsável pelo campo de Stallupönen que o prisioneiro ficasse até ao final da guerra. “O comandante autorizou a que o português permanecesse ‘por algum tempo’, avisando o professor de que, se ele escapasse, ‘não lhe ia ficar barato’”, escreve a historiadora Fátima Mariano, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, a quem os familiares do militar contaram esta história.
António Pereira dos Santos ficou então responsável pela lida da casa (excepto a confecção das refeições) e passou até a receber o salário da criada, que entretanto tinha sido despedida. Segundo os familiares deste 1º cabo português, terá sido durante este período que o militar começou a escrever o seu diário, onde conta a história de como “um professor prussiano acabou por amenizar os dias de cativeiro de um prisioneiro português”, resume a investigadora.
Após a assinatura do Armistício, António Pereira dos Santos é obrigado a sair de casa do professor e a regressar ao campo de prisioneiros, para poder iniciar a sua viagem de regresso a casa, também ela atribulada. Ainda permaneceu 15 dias em Stallupönen. No início de Dezembro foi transferido para Heilsberg, onde ficou até 3 de Janeiro de 1919. Neste dia, saiu do campo de prisioneiros inserido num grupo de italianos, fazendo-se passar por um deles. No dia seguinte, estavam em Dantzig (actual Gdansk, na Polónia) de onde, a 8 do mesmo mês, partiu num vapor em direcção a Copenhaga, na Dinamarca. Permanece na região até 22 de Janeiro, altura em que parte para Cherburgo, em França, onde chegou quatro dias mais tarde. Finalmente, a 2 de Fevereiro de 1919 zarpou com destino a Lisboa, onde desembarcou no cais de Alcântara três dias depois. Rumou depois a norte, tendo chegado à sua aldeia natal.
Foi com base no seu diário e noutros documentos, fotografias e memórias de conversas passadas que, como forma de homenagem, os seus dois descendentes publicaram, em 2008, o livro que dá conta destas suas atribulações em tempo de guerra. Decidiram chamar-lhe António Pereira dos Santos – De Chaves a Copenhaga – A saga de um combatente.
Pouco tempo depois do regresso a casa, António Pereira dos Santos mudou-se para a freguesia de Santa Leocádia, concelho de Chaves, para gerir a casa agrícola de uma tia materna, que enviuvara. Aqui conheceu Carolina Augusta Gomes, oito anos mais velha, com quem casaria a 24 de Outubro de 1921. Viveriam na mesma freguesia até ao fim dos seus dias. Tiveram quatro filhos: dois rapazes e duas raparigas.
No diário que chegou até hoje lembra agruras da guerra, recorda com ironia “uma lauta refeição três bolachas e um pouco de carne”. Mesmo apesar de todas as dificuldades este foi talvez o momento mais marcante da sua vida, o que explicará que quando morreu, a 7 de Janeiro de 1976, aos 81 anos, tenha querido ser enterrado com o capote que usou na guerra, para onde partiu com 22 anos, e que usava muitas vezes como almofada.
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