Sempre se ouviu falar do “tio António” lá em casa. Havia dele uma foto e uma história longínqua de que tinha estado a lutar em França na Primeira Guerra Mundial, sabia-se que tinha morrido, mas não se sabia onde estava o seu corpo. Mas na família tinha sido passada, de geração em geração, a obrigação de nunca o esquecer, a este tio que era uma figura quase fantasmagórica. A mãe do militar, Aparecida, tinha passado esse dever de lembrança ao seu filho, Manuel Domingos Francisco e este, por sua vez, tinha-o feito aos seus quatro filhos.
Para o mais novo dos quatro, José, o único nascido já em França, para onde o pai emigrou no início dos anos 1960, o tio António ajudou-o. Na sua infância e adolescência no país que era o seu mas não era bem, chegou a surgir-lhe como resposta pronta sempre que ouvia um comentário xenófobo, do estilo "os portugueses vieram para França ‘tirar o pão aos franceses’”. Ele retorquia com essa figura quase mítica, um tio português que tinha desaparecido em França a defendê-los também a eles, aos franceses, contou ao jornal Le Monde.
“Quando eu era pequeno o meu pai falava-me muito do tio António. Mostrou-me uma foto dele, tirada em 1916. Ele sonhava saber onde ele estava”. O que se sabia era que tinha saído de Lisboa a 21 de Outubro de 1917, um dos cerca de 50 mil homens enviados pelo governo português para França a partir de 1917. Nunca deu notícias, era analfabeto. Depois do Armísticio, a família esperou-o em Alcaria do Coelho, uma aldeia do distrito de Beja. Uma carta expedida da Bélgica, com uma mecha de cabelo e umas palavras em francês, que a professora da aldeia traduziu, anunciavam que António tinha morrido de peritonite num hospital de Liège, a 22 de Janeiro de 1919, com 25 anos. Os pais de Francisco morreram sem nunca saberem onde foi enterrado o filho.
Foi José, hoje com 44 anos, quem deslindou o mistério do tio desaparecido. Tornou-se professor de liceu e com os estudos que o pai não teve e a ajuda da Internet andou à procura do tio-avô. Descobriu primeiro os seus papéis militares, mas não o sítio onde estariam os seus restos mortais. Durante a sua pesquisa soube que havia um cemitério onde os portugueses tinham sido enterrados, foi até lá em Fevereiro deste ano. “Olhou por cima do muro e a primeira campa na qual o meu olhar caiu, na primeira fila à esquerda, estava o nome António Francisco”. Encontrou o tio avô. Ligou ao pai, Manuel Domingos Francisco, hoje com 90 anos, e sentiu-lhe a voz a tremer do outro lado da linha.
Foi no cemitério de Richebourg que ao jornalista do Le Monde, Benoît Hopquin, o foi encontrar, a 9 de Abril deste ano, na primeira vez que viu a campa do tio António, uma das 1830 estrelas que têm escrito “morto pela pátria”. Um enigma familiar que demorou quase um século a ser deslindado.
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